Nos dois últimos anos o arquipélago dos Açores foi considerado o destino turístico mais sustentável da Europa, uma distinção calculada a partir de indicadores como a qualidade da natureza e do ambiente - ar, água e vida selvagem -, questões sociais, economia verde ou herança cultural.

Até hoje existem apenas nove regiões certificadas em cinco continentes, algumas ilhas – os destinos preferidos dos turistas -, mas nenhum arquipélago inteiro. Essa classificação acontece pela primeira vez em território português, mais exatamente nos Açores. Os critérios são apertados e o certificado é avaliado e renovado todos os anos e pode perder-se. Conquistá-lo, primeiro, e mantê-lo, depois, exige um trabalho permanente de todos: autoridades locais, empresas e habitantes.

O que aqui lhe contamos são as histórias de cinco projetos com um denominador: Açores, a terra a que tantos regressaram e onde muitos reinventaram saberes antigos. Do voluntariado ao café, do vinho à agricultura, tudo pode ser pretexto para turismo. Basta que seja feito com qualidade, paixão e respeito pelo ambiente. Por quem chega e por quem está.

#1 Fazer turismo a ajudar o próximo

Chama-se Impactrip e foi apresentada ao público pela primeira vez pelos seus mentores, Rita Marques e Diogo Areosa, no programa de televisão Shark Tank. “Foi de loucos”, conta Diogo. “Os tubarões acharam a ideia muito gira, mas disseram que não iria funcionar. A Susana [Sequeira], da Partners, ficou connosco e penso que até hoje não se arrependeu. Estamos a abrir um hostel na rua onde tem a agência e cruzamo-nos diariamente, ficámos com uma relação de amizade. Foi ela que fez a imagem da empresa, que pagámos com serviços, e o nosso site ganhou um galardão de ouro na área social”.

Afinal, o que faz a Impactrip? A ideia surgiu com uma viagem da sua co-fundadora, Rita Marques, à Ásia, como voluntária. Onde descobriu um modelo de turismo inexistente em Portugal. De regresso, tentou replicar o exemplo: conciliar o turismo com o voluntariado, adaptando-o à realidade europeia e, concretamente, ao país. Que tem necessidades muito diferentes das da Ásia ou de África.

“O primeiro ano foi para desenhar o produto, testá-lo, perceber o modelo de negócio a preparar tudo para o lançar no mercado. Errámos claramente com algumas experiências de meio dia, de um dia. Fomos bater à porta de diversas organizações sociais e explicar o nosso objectivo, argumentando que as poderíamos ajudar levando-lhes voluntários – sem cobrar nada. As organizações nunca acreditaram, mas disseram-nos sempre que sim”, explica Diogo Areosa.

Depois foi preciso comunicar, fazer a mensagem chegar além-fronteiras, ao turista alvo. E criar parcerias internacionais. “O nosso melhor parceiro está na Nova Zelândia. Foi muito engraçado ouvir o David Simmons [responsável pelo programa de turismo da Universidade de Lincoln] falar, a filosofia dele é muito igual à nossa. Isto é aprendizagem pura e dura, a Nova Zelândia é o país menos corrupto do mundo e este é um parceiro que nos põe na linha”.

Diogo e Rita riem-se daquilo que fizeram no início. Os processos de aprendizagem são assim mesmo. Hoje o pacote turístico combina o voluntariado com o turismo ambientalmente responsável e a pegada ecológica zero ou reduzida. São programas feitos por medida. E é negócio, não é coisa para viver de subsídios.

“No princípio ninguém acreditava em nós. Hoje somos um caso de sucesso, um caso de estudo no Turismo de Portugal. Somos uma empresa sem passivo, que começou de bolsos vazios - e não tem os bolsos cheios nem nada que se pareça, temos ordenados baixos, uma equipa de oito pessoas -, mas começámos por ser dois e tivemos muitas ofertas de crédito e os únicos apoios que aceitámos foram do 2020, que não nos dá dinheiro para fazer o que queremos, só o que gastamos, depois de gastarmos e não na totalidade. Tivemos apoios à internacionalização, porque o nosso mercado vem de parcerias internacionais, de estarmos lá fora, de promover Portugal no estrangeiro. Tudo o resto é feito com capitais próprios”, resume Diogo.

O dinheiro que o negócio está a gerar é reinvestido no negócio, que está a crescer e cujas perspectivas deixam os sócios “bastante alegres”. No primeiro semestre de 2017 a Impactrip trouxe a Portugal mais de 300 turistas, quando em 2016 vieram 280 no total. O objectivo era duplicar.

Os programas turísticos podem variar entre uma visita ao castelo de Palmela, um piquenique na Arrábida, uma prova de vinhos na Bacalhoa e umas horas de voluntariado na Refood, a combater o desperdício alimentar, ou a apanhar lixo no fundo do mar – em 2016 fizeram 9554 horas de voluntariado e recolheram 588 kg de lixo. “Convivemos com os turistas o tempo inteiro, passamos o dia a banhos, só não provamos os vinhos porque temos de trazer as carrinhas para Lisboa. Isso cria uma grande proximidade e conheço os meus clientes pelo nome, dou-me com eles nas redes sociais, falamos com frequência. Sentem saudades de cá vir e estamos a criar um programa de embaixadores, pessoas que estiveram connosco, gostaram e querem promover ou voltar com grupos de amigos”, avança Diogo.

A verdade é que alguns gostaram tanto da experiência que deixaram de ser turistas e ficaram em Portugal. Definitivamente. Aconteceu com Tracy, canadiana, e com Maria e Anna, duas norte-americanas. Todas abraçaram o projecto da Refood e continuam por cá a trabalhar e a fazer voluntariado. Radek passou de turista a estagiário da Impactrip, primeiro por um trimestre, depois por mais seis meses. Neste caso, não se sabe o que pesou mais, se a paixão pelo país, se por uma portuguesa. Mas foi amor à primeira vista.

#2 A única plantação de café da Europa

A história que vamos contar não é a da Delta. Esta não é a família Nabeiro, não estamos em Campo Maior e nem tão pouco no Continente. Trata-se da ilha de São Jorge, nos Açores, e é preciso recuar muito no tempo, talvez ao século XVIII, quem sabe mais, altura em que muitos açorianos emigraram para o Brasil, para chegar ao início da meada.

“A ilha é conhecida pelas laranjeiras e pelo chá. A nós calhou-nos o café”, diz sorridente Dina Nunes. A família Nunes é hoje a detentora dos Cafés da Fajã dos Vimes e esta é uma história fora do comum, feita de coincidências e de gente com vontade de andar para a frente e de se meter por caminhos já navegados, embora pouco conhecidos. Não há referências bibliográficas e calcula-se que algum emigrante terá trazido um pé da planta do café de uma fazenda do Brasil, onde possivelmente trabalhou de sol a sol.

Dina fala pelo pai, que é de poucas conversas e de mais acção. Como tudo começou ninguém sabe ao certo, e a avó de Dina, com 93 anos, é actualmente a testemunha mais antiga de que ali, nas fajãs, já se cultivava e torrava café no tempo dos seus avós e bisavós. São dela as memórias e os cheiros.

A família Nunes nunca pensou que o negócio atingisse a dimensão actual. E tudo por acaso. Donos de um café local com um terreno nas traseiras onde existiam plantados meia dúzia de pés de café - aos quais não sabiam o que fazer – todos os anos ouviam os clientes queixar-se da falta de um “cafezinho caseiro, como aquele que a sua esposa serve na casa de artesanato [também da família] aos visitantes”.

Um dia o pai resolveu fazer a experiência e quando os clientes pediam um café perguntava: “Do industrial ou café da fajã?” Ao princípio muitos queriam saber a diferença e lá vinha a explicação. Depois era a vez da prova e, como se alguns desconfiassem, seguia-se muitas vezes a visita aos terrenos atrás da casa, onde estavam plantados os pés de café, acompanhada da aula a sobre a apanha e a torra dos grãos. A receita fez sucesso.

Por esse tempo, diz Dina, nem a família sabiam as quantidades de café que existiam ao certo. “Apanhávamos o que havia, nunca se fez uma gestão, nunca se soube quantos quilos por ano, os hectares plantados… Quando os meus pais casaram compraram o terreno com meia dúzia de pés de café. Que, entretanto, foram podados, arranjados e passámos a uma dimensão um pouco maior. Chegámos aos dias de hoje com mais de 500 pés de café”.

“Ainda há muito trabalho pela frente”, garante. “A ideia de termos registado a marca foi tornar a coisa mais real, mais oficial. Até há pouco não pensávamos que queríamos chegar a este ponto, mas depois apercebemo-nos da dimensão que estava a ganhar e sentimos necessidade de crescer, de organizar, de consolidar.”

Hoje há quem venha de fora de propósito para beber o café. Para comprar o café. O processo da embalagem também tem história. “Era preciso começar a pensar numa embalagem para quem queria levar o café. A minha mãe e a minha madrinha começaram a pensar em fazer uns saquinhos no tear. Primeiro pensou-se em algodão, depois em estopa de linho, para deixar a saqueta mais rústica, com um toque especial. Um bordado que fosse o logotipo. E veio o Facebook e os saquinhos de 50g ou de 100g, porque não podíamos vender quantidades muito maiores. Tivemos alturas em que não tínhamos café – estava a secar entre os meses de Maio e Agosto e no mau tempo foi preciso parar a venda”, lembra Dina.

O café pode não render muito dinheiro, mas “é mais uma coisa” para acrescentar ao portfólio. Viver disto dá muito trabalho. O processo desde a apanha até chegar à chávena demora um mês e da floração ao fruto maduro são cerca de oito a nove meses. A apanha começa em Maio – mais cedo se o calor chegar antes - e termina em finais de Agosto, princípios de Setembro.

A torra é feita em meia hora. É manual e exige sabedoria. É preciso ter paixão, paciência e olho, porque como é manual, mexendo os grãos ao lume com uma colher de pau, na frigideira, não é tarefa para amadores: a torra tem de ficar uniforme e os grãos têm de atingir a cor desejada.

É um negócio familiar: mãe, pai, dois irmãos, madrinha e tios. A avó, já nonagenária, era quem até há pouco tempo escolhia os grãos de café. Agora está acamada, mas nada se faz sem a sua opinião. Só demora mais tempo na escolha e até há pouco era ainda ela quem torrava o café.

Dina Nunes conta que avançam “um dia de cada vez”. Agora os Cafés da Fajã dos Vimes estão a iniciar o processo para aderir à certificação Açores. É um produto biológico, sem químicos e que reutiliza uma parte de si próprio no ciclo de produção, já que as cascas e as borras voltam para a terra. A venda é feita exclusivamente no Açores, em Fajã dos Vimes. Um café/chávena custa um euro, as saquetas de 50g, custam 20€ e as de 100g custam 30€. O cliente pode optar por café em grão ou já moído (100g de café equivalem a entre 12 e 14 cafés/chávena).

#3 Solidariedade e inclusão social no turismo

A Cresaçor é uma cooperativa regional de economia solidária com 25 cooperadores que promove a inclusão social e aposta na formação, na educação e nas competências de pessoas em risco de exclusão social. “Uma exclusão que assume muitos domínios e o acesso ao turismo é um deles”, assegura Célia Pereira, responsável pelo projecto.

A preocupação é “democratizar o turismo”, tornar o turismo acessível a todos, “nomeadamente às pessoas que por razões socio-económicas ou por handicap, necessidades especiais, não têm acesso ao turismo da mesma forma”. A ideia surgiu em 2014 e um ano depois assumia o estatuto de empresa de animação turística. Desde então procura promover o acesso ao turismo de todas as pessoas independentemente das suas condições.

Actualmente a Cresaçor conta com um posto de ecoturismo na freguesia de Sete Cidades e um posto de turismo cultural em Ponta Delgada. É sustentável porque “se destina a todas as pessoas e nada é deixado ao acaso”, diz Célia Pereira. “As nossas actividades são desenvolvidas com as pessoas que habitam os territórios locais, de modo a que as receitas fiquem nesses territórios, e utilizam produtos e matérias locais”.

São produtos feitos à mão, de elevada qualidade e que têm os princípios da economia solidária presentes desde a produção à comercialização. “Procuramos integrar nas nossas unidades produtivas processos de formação on job para pessoas que estão em risco de exclusão social. Ou seja, criamos postos de trabalho para estas pessoas, promovendo o seu acesso ao mercado de trabalho e a sua empregabilidade”.

Um exemplo são os produtos com a marca Cores, certificados com o selo de garantia de economia solidária, que pelo seu modo de produção preservam a identidade e a tradição do território, ao serem feitos a partir de produtos locais e por locais, ao mesmo tempo que têm preocupações ambientais e procuram manter viva a tradição e a identidade de quem os produz.

“Temos uma grande diversidade de empresas de economia solidária e já criámos mais de duas centenas de postos de trabalho”, garante Célia Pereira. O preço dos produtos é muito variável, tanto pode ser um licor na casa dos cinco euros, como um pacote de biscoitos por um ou dois euros, passando por uma cadeira de jardim por 60 euros. E também há os serviços de turismo certificados com o selo Cores, “porque têm os mesmos princípios e valores a fundamentá-los”.

A Cresaçor é a entidade certificadora e é por aqui que passam todos os cooperadores, que são sujeitos a uma avaliação criteriosa, mas célere. “Não basta dizer que é de economia solidária, tem de provar que é de economia solidária”, afirma Célia Pereira. E a cooperativa já provou ter impacto social, além do lucro que gera, e que não é para ser distribuído por accionistas, mas para ser reutilizado na promoção destes postos de trabalho e para alimentar as unidades produtivas. Além disso, tem diversos gabinetes de apoio técnico especializado (ao migrante, alcoolismo, psicossocial, entre outros), que ajudam a lutar pela igualdade e promovem emprego, habitação, saúde e bolsas de estudo.

#4 Ai, era o vinho, era o vinho!

António Maçanita tem um percurso atípico no sector dos vinhos. Quase tão invulgar como a história vitivinícola açoriana. “Não tenho família nos vinhos. O meu pai é professor de Química no Técnico e a minha mãe é responsável pelo arquivo da biblioteca do Exército. Eu sempre gostei de ciências, de biologia marinha, e estava muito ligado ao mar por causa dos Açores e um professor recomendou que fosse para Agronomia. Entusiasmei-me com a viticultura e mesmo antes de ter conhecimento suficiente para fazer alguma coisa tentei plantar uma vinha nos Açores, em 2000, na Rocha da Relva”, conta.

“Sou meio açoriano. Se passar ali à beira da estrada vê a AgroMaçanita, de um tio, e tenho aqui uns 30 primos. E, embora na altura eu não soubesse, há nos Açores uma tradição de vinha de um período anterior ao das laranjeiras e dos chás. O que aconteceu foi que em 1857 abateu-se sobre a Europa uma praga, a filoxera, e também oídio, que são fungos. Nos Açores os fungos, que com a humidade e o calor encontram o clima ideal, funcionam como uma chama. Para dar uma ideia, a produção de vinho passou de 10 milhões de litros em 52 para 25 mil litros em 59. Foi como uma bomba atómica. A parte da vinha que se recompôs, recompôs-se em vinho de cheiro, o vinho que hoje se bebe nas festas locais - e tem uma profusão significativa”, explica António Maçanita.

Na altura, António “nem estava com essa agenda tão profunda”. Queria fazer vinho nos Açores “porque sim”. “A minha família é dos Açores e um tio tinha um terreno na Rocha da Relva ao qual só se tinha acesso a pé e onde existia uma antiga vinha. Pensei: “Porque é que eu e um grupo de amigos, todos enólogos, um do Esporão, outro da Companhia das Quintas, não vamos lá plantar uma vinha, uma enxertia? Mas só fazíamos asneiras, tudo errado.”

Em 2001 António Maçanita foi para a Califórnia tomar conta de uma adega, em 2003 para a Austrália, depois para França – era jogador de rugby e foi via currículo desportivo. No regresso a Portugal quis começar por conta própria. Conheceu David Baverstock, o enólogo do Esporão, e perguntou-lhe se o podia seguir. Mas sempre com a ideia dos Açores. Enquanto isso, foi ao Pico, visitou produtores, foi tentando perceber o terreno.

Os anos foram passando e em 2009 Maçanita é convidado para fazer uma formação para futuros chefs na escola hoteleira local sobre harmonização de comida e vinhos. “A pessoa que me convidou nem sabia que eu tinha uma ligação aos Açores. “Quanto cobras?”, perguntou-me. “Nada. Pagas os voos e fico em casa dos meus tios.” Numa dessas visitas tomei conhecimento de uma casta em vias de extinção, o Terrantez do Pico. Os serviços agrários só tinham encontrado 89 plantas desta casta e fizeram um campo de selecção baçal para tentar preservar a casta”.

António interessou-se lançou um desafio aos serviços agrários: fazer um protocolo para recuperar o Terrantez do Pico. Ele fazia o vinho e se tivesse êxito ficava com uma parte para si – “estávamos a falar de uma brincadeira de 600 garrafas”. Para os serviços ficaria ainda toda a bibliografia. “Havia máquinas de tal maneira, que para uma delas foi preciso mandar vir um ferreiro, que o surro era tanto que nem ninguém sabia que dava para abrir”, recorda.

E foi como abrir a caixa de Pandora. “Sai o primeiro vinho e… É fresco, salino, mineral! Foi muito bem aceite pela crítica. Em 2013 sou convidado para ir ao Pico fazer uma formação de marketing, mas eu não sabia nada de marketing. E dizem-me de lá: é de enologia, mas se dissermos isso ninguém aparece. A formação começou rija, já o Pico estava chateado porque o Terrantez tinha sido recuperado em São Miguel… Eu não queria discutir aquilo, o importante é que uma casta estava em extinção e tinha sido recuperada”.

Mais concluiu-se que também o Verdelho, uma casta emblemática para a Madeira e que tem hoje 20 mil hectares na Austrália, nasceu nos Açores. “A origem é Açores, dos Açores foi para a Madeira e da Madeira para o Continente. Já estamos a reclamar isso”, avança António Maçanita. “Nos escritos, as vinhas velhas da Madeira só existem 200 anos depois dos Açores”, assegura.

Hoje António Maçanita tem um projecto com Paulo Machado, que envolve outras castas e que não se limita à ilha de São Miguel. Paulo Machado, do Pico, largou a escola de hotelaria para se dedicar aos vinhos por inteiro. Conhecia os produtores, as vinhas, os muretes de pedra que as rodeiam. Isso e um “musculado” sistema de incentivos para recuperar vinhas implementado em 2004, altura em que o Pico foi feito património da UNESCO. Em dez anos foram recuperados dez hectares.

Estava-se agora em 2014 e o projecto implicava 33 hectares. “Ninguém tinha experimentado tamanha empreitada. Hoje estamos com 60 hectares recuperados, a caminho dos 120. O objectivo é chegar às 250 mil garrafas, sendo que a produção dá, no máximo, 2 mil quilos por hectare, uma produção muito baixa”.

A vinha própria é muito pouca, as uvas são quase todas compradas a produtores locais. O preço já variou entre os 70 cêntimos e os 5 euros, valor que poderá atingir este ano. A produção também é sempre uma incógnita: “Já tivemos dois anos de produção de 700 kg e de 1000 kg por hectare. É uma loucura, mas andamos assim. O custo de produção varia entre os 4 euros e os 5 euros. Uma garrafa é vendida a 10 euros ou 20 euros para exportação e chega ao consumidor ao dobro do preço. Primeiro eram produzidos apenas brancos Terrantez do Pico, Verdelho, Arinto (monocastas), depois passaram aos tintos (Vinha Centenária, Tinto Vulcânico e Isabela, a Proibida).

“A minha ideia não era fazer tintos. O negócio com os produtores era para a compra de uvas brancas, mas chegavam todas misturadas, brancas e tintas. Reclamei e os produtores responderam: “Pois, quer as brancas, mas nós também temos tintas. Se quer umas…” Foi assim que decidi fazer vinho tinto, foi preciso encontrar uma solução”, conta Maçanita.

Que explica que estes vinhos têm uma particularidade, é que quando se bebem, “bebe-se” os Açores. “Sente-se o ananás, o terroir, esta coisa salina. Quem prova os vinhos sente de onde vêm. Há duas componentes: a dos solos vulcânicos, dos sais muito pungentes, e do Pico, no meio do Atlântico, que é spray constante. E sete metros abaixo da terra, é mar. As vinhas estão ligeiramente intoxicadas, a puxar água salobre. O dá um perfil de vinhos particular, esta coisa dos vinhos dos ritmos do mundo. E temos a sorte de o mundo estar num ritmo em que damos valor à história, à autenticidade”.

Sabores, um restaurante nos Açores
créditos: DR

#5 Servir na cozinha o que cultiva no campo

Inês e Paulo viviam em Lisboa, num 11.º andar. Os empregos não eram maus, a casa era boa, mas não deixava de ser um apartamento. Inês foi criada no Alentejo, subia às árvores, rasgava os joelhos a andar de bicicleta, olhava agora para o filho pequeno fechado entre paredes e pensava: “Quero mais filhos e não é nada disto que pretendo para eles”.

A história é contada por Inês Sá da Bandeira. Ela é a prática, e Paulo, o marido, o teórico. Completam-se. Os pais de Paulo são dos Açores e tinham a terra, mas nenhuma vocação para o negócio ou, pelo menos, para a aventura. Filho e nora desinstalaram-se, deixaram tudo e voaram para Ponta Delgada, São Miguel. O sonho era ter um restaurante onde servissem a comida que cultivavam. Há três anos abriram um.

Quando chegaram aos Açores passaram a ter a agricultura como actividade principal. O investimento inicial na quinta rondou os 100 mil euros e foi preciso ir buscar fundos comunitários para os tractores e as alfaias agrícolas. Para a casa, como a maioria dos casais, Inês e Paulo pediram um crédito à habitação, que está a ser pago com o alojamento da quinta, que hoje pode encontrar-se no Airbnb, mas que inicialmente era só alugado a amigos e amigos de amigos.

O dinheiro nunca sobra, é sempre preciso comprar mais alguma coisa para a quinta, acrescentar estufas, que já são seis, e em 15 hectares há sempre o que fazer. O facto de cultivarem os seus próprios produtos hortícolas fez crescer em Inês a vontade de ter um espaço com cozinha onde os pudesse servir.

Inês tem um lema: “Querer é poder”. E o que quer consegue. Com muito trabalho. “Nunca gostei de estudar, mas soube disso muito cedo. Cá em casa o académico é o Paulo. Eu trabalho no campo, na cozinha, nas estufas e ele lê as leis e trata da papelada e da burocracia. Este ano houve uns acidentes de percurso, tive um cancrozinho, terminei agora a radioterapia, tudo apanhado a horas, estou a acabar os tratamentos. Sempre fui muito anarca e tenho a sorte de ter o Paulo, que adora a parte mais formal”.

E há três anos chegou o Sabores, o restaurante, mais cerca de 100 mil euros de investimento, para aproveitar os produtos cultivados na quinta. “Na quinta temos de tudo um pouco e fazemos rotação, deixamos alguns terrenos em pousio. Este ano começámos a ter maracujás, que já não tínhamos há cinco anos, estivemos a descansar a terra.”

Arrancar com o Sabores foi um pouco como ter uma criança – e Inês e Paulo agora já têm duas: “Até começar a andar toda a nossa energia é canalizada para lá”. Agora as coisas já funcionam quase automaticamente, com compotas, patés e picles próprios. “Não há desperdício, tudo é reaproveitado”. Os cães Zigui e Salsicha abanam a cauda, como que a confirmar o que a dona diz.

No fundo, o restaurante Sabores é uma extensão da casa de Inês e Paulo, muito acolhedor. “Quisemos criar um ambiente em que as pessoas se sentissem mimadas, como se estivessem em casa. Penso que conseguimos, saem daqui felizes. Só estamos abertos para jantares e o que servimos é comida portuguesa. Eu venho de uma família muito grande, a minha avó teve 15 filhos, fui criada no Alentejo, onde todos os fins de semana havia uma mesa enorme, não sei quantas cozinheiras a fazer comida para toda aquela gente. Parte das receitas que servimos são da minha avó”, conta Inês.

O Sabores não tem cozinha à carta e funciona quase sempre por marcação. O menu é sugerido, “mas nunca repito o que já servi a um grupo uma segunda vez, a menos que me peçam. Já me aconteceu ter três grupos diferentes e três menus diferentes na sala, porque uns vinham pela primeira vez e outros já estavam a repetir. A sala não é muito grande, mas se tiver um grupo a jantar e me baterem à porta, explico o funcionamento e convido a ficar, não mando ninguém embora”. Actualmente, Inês já tem ajuda na cozinha, mas, ainda assim, recomenda-se reserva. A não perder.

[Notícia corrigida às 17:26]