Tudo gira à volta de uma palavra. Como. “O 'como' é a grande questão. Temos de ver em conjunto o 'como'? Como vamos fazer? Como vamos acolher? Como vamos integrar? Como é que vamos fazer com que estas pessoas se sintam em casa quando estão tão fora da sua zona de conforto e tão longe de casa, sobretudo pessoas com um grau de sofrimento grande e em situações dramáticas”.

As interrogações foram colocadas por Laurinda Alves, vereadora dos Direitos Humanos e Sociais da Câmara de Lisboa, durante uma sessão de esclarecimento sobre acolhimento a famílias ucranianas que decorreu no auditório Fórum Lisboa, sede da Assembleia Municipal de Lisboa.

À entrada de uma semana considerada “crítica” com a “chegada de mil pessoas”, a vereadora pediu a todas as “famílias acolhedoras que não o sejam de semanas, mas sim até ao verão”, lançando o repto às mais de 100 pessoas presentes na sala e ao milhar que seguia a sessão via streaming.

Rosário Farmhouse, na qualidade de presidente da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens (CNPDPCJ), atestou ser esta uma “causa de todos e todos somos poucos”, atirou no início da intervenção. “É colocar toda a vida numa mala para procurar a paz”, ilustrou antes de passar a explicações práticas sobre todo o processo de acolhimento de famílias, no geral, e crianças, em particular.

“É um fenómeno inesperado e um fluxo gigante. Até aqui tínhamos refugiados programados. Agora temos a pressão de chegarem a toda a hora. Temos a generosidade de ir buscar, mas temos de estar articulados”, alertou ao mesmo tempo que pediu a quem assistia: “Podem e devem inscrever-se no site Portugal For Ukraine".

Farmhouse deixou um alerta especial em relação às crianças. “Para as famílias que querem acolher crianças, há um cuidado a ter. Estão separadas da família e o Estado tem de saber onde ficam e as condições”, avisou.

Para o acolhimento de crianças não acompanhadas vindas da Ucrânia, situação que diz não existir oficialmente nenhum registo, alertou ser obrigatório uma deslocação presencial ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) para formalizar o registo, visando a proteção destes menores afastados das suas famílias e evitar “falsos resgates” e o desvio para redes de tráfico humano. Uma preocupação igualmente destacada por Laurinda Alves ao chamar a atenção para “os falsos resgates e redes de tráfego humano perversas”.

Rosário Farmhouse antecipou cenários e deixou avisos. “Não se pode acolher por um mês e depois não se poder mais. Para a criança ir para uma família, esta tem de saber se pode acolher por muito ou pouco tempo, tem de haver disponibilidade de tempo sem saber quanto tempo será. Temos a consciência que pode ser acolhimento temporário ou longo. As famílias têm de ter coração elástico”, implorou a presidente da CNPDPCJ.

“As crianças e adultos viveram situações traumáticas. Necessitam de espaço e tempo”

Diversos aspetos práticos do relacionamento com quem chega foram realçados na sessão aberta a perguntas e respostas. “Poucos falam inglês e é um desafio à nossa linguagem verbal e facial. Podemos transmitir medo”, disse perante a plateia de representantes de diversas associações e organizações e alguns particulares que se deslocaram ao Fórum Lisboa para esclarecer dúvidas sobre o acolhimento.

“As crianças e adultos viveram situações traumáticas. Necessitam de espaço e tempo. Alguns sons fazem lembrar o ambiente de guerra do qual saíram. Uma sirene de bombeiros ou um avião. É necessário ter cuidados, porque há marcas que ficam”, reforçou Rosário Farmhouse ao SAPO24, à margem da sessão.

Laurinda Alves recordou um dado do qual não devemos estranhar. “Crianças e adultos chegam e dormem vestidos para estarem preparados para fugir”. Deixa conselhos e pedidos à audiência. “Quem chega, necessita de espaço e tempo. Não lhes façam muitas perguntas. Não falam outra língua que não o ucraniano e repetem a palavra obrigado vezes sem conta. Devemos deixá-los encontrar um espaço em casa para eles”, aconselhou.

“Culturalmente somos intensos e não devemos estranhar quem se feche no quarto a chorar. Não devemos mostrar tudo no mesmo dia”, suplicou Rosário Farmhouse. “Estar recolhido não é fácil, bem como não sentir que estão a ser um peso para os outros. É preciso ter cuidado e não sufocar com tanta coisa”, implorou.

“É uma experiência nova para as migrações”

Margarida Castro Martins, diretora do Serviço Municipal de Proteção Civil de Lisboa (SMPC) fez um balanço da resposta de acolhimento de emergência. “Foram chegando de forma avulsa e não tinham um sítio de apoio para as necessidades”, começou por dizer.

“Ninguém tinha a certeza do que ia acontecer”, disse, comparando com o processo de vacinação. “Nunca ninguém tinha feito”. A ideia foi “abrir um centro de acolhimento. Está aberto e a funcionar”, sublinhou.

“500 pessoas vindas de forma própria. Comboio, autocarro, vieram referenciadas. Tem ali (o Centro) um porto de higiene, descanso e uma ponte com a Alto Comissariado das Migrações (ACM). O suporte é dado a quem não tem suporte em Portugal, apesar da vasta comunidade ucraniana” cá residente, explicou. “O nosso trabalho é para quem não tem ninguém. Depois encaminhamos para o ACM e Segurança Social”, assegurou.

Marlene Jordão, representante do Alto Comissariado para as Migrações (ACM), atestou a “ligação com a sociedade civil no processo de integração” e explicou como acolhem e integram.

“É uma experiência nova para as migrações”, confidenciou. Pusemos a nossa experiência à frente da porta de entrada dos nossos centros nacionais: Lisboa, Porto, Faro e Beja”, sublinhou.

“Temos chegadas de madrugada e ninguém fica sem resposta no acolhimento. Sempre que é sinalizada uma chegada, é acionada a Proteção Civil”, disse, garantindo que todos os que cheguem e não tenham acolhimento, seguem os “trâmites legais” em relação à documentação.

Marlene Jordão desenhou então verbalmente o percurso de um refugiado nos corredores da receção. “Nos centros, temos um circuito: um gabinete de acolhimento e triagem onde é feita uma pequena entrevista para ver as necessidades, é encaminhado para o SEF e depois para os serviços sedeados nos nossos centros – assuntos sociais e inclusão. Segue-se uma entrevista social e partilha com grupos de apoios, e, por sua vez, com a CML e outros parceiros, fazendo um match (correspondência) de necessidades dos agregados e as respostas que temos”, pormenorizou. “ O ACM não se descarta da responsabilidade. Apoia-se na sociedade civil para a integração”, alvitrou Marlene Jordão.

Quem chega, “num dia tem várias respostas”, garantiu. “E fica com os números de NIF, Segurança Social e SNS, números de processos automáticos. O SEF faz essa documentação e tem garantido esses números para as famílias terem acesso a todos os benefícios: área de emprego e saúde”.

A representante do Alto Comissariado para as Migrações fez questão ainda de relembrar a existência de “serviços jurídicos, assuntos sociais, emprego, qualificação e empreendedorismo ao dispor de todos. Temos SEF, autoridade tributária, segurança social, espaço cidadão e uma panóplia de serviços e respostas. E quando não temos respostas, fazemos pontes com a sociedade civil”, assegurou.

Para além dos quatro centros nacionais, relembrou ainda a existência de “uma linha de apoio alargada a falantes de várias línguas – ucraniano e russo – e serviço de tradução telefónica quando não seja possível comunicar de forma clara, para derrubar a barreira da língua”, destacou.

Alojamento, escola, desporto e animais de estimação num plano

A chegada a Portugal deve ser preparada a leste. “São 40 horas de autocarro e dá tempo para fotografar documentos, enviar e nós, Câmara de Lisboa, articulamos com o ACM”, garantiu Laurinda Alves. “Temos de pensar na chegada. Facilita a vida de quem chega e evita o que ainda não aconteceu – criar centros de refugiados espontâneos. Tal não vai acontecer”, rematou a vereadora dos Direitos Humanos e Sociais.

“Depois de aprovado por unanimidade (o programa municipal de emergência "VSI TUT - TODOS AQUI"), vamos criar um plano de integração, uma segunda linha que não é só à chegada e tem a ver com as áreas da saúde, alojamento, educação, mobilidade, desporto, cultura e bens de primeira necessidade”, explicou ao SAPO24 Laurinda Alves após o encerramento da sessão de esclarecimento, que durou mais de duas horas.

“É um plano em construção que terá oito eixos e terá em princípio a validade de um ano, sendo renovável em consonância com a resolução do Conselho de Ministros”, continuou. “Estamos a tentar criar um fundo de alojamento porque é a necessidade mais urgente. Mas também é a saúde, alimentação, cultura, desporto. Desporto e cultura unem-se, e haverá integração nas escolas e mobilidade. Está tudo ligado”, explicou. Um plano no qual os animais de estimação não são esquecidos.

“O executivo da CML está todo unido a construir o plano e a encontrar formas de o implementar. Será levado a reunião extraordinária de câmara, dia 23, onde se aprovará o plano municipal. Não se constrói de hoje para amanhã”.

Durante a intervenção sustentou ser “extraordinário este abraço” no alojamento, mas remeteu para uma procura de “soluções diferenciadas, uma bolsa de alojamento temporário”, referiu. “Uma das hipóteses é arrendar a custo mais baixo. Os Airbnb podem ajudar porque estão equipados e a sociedade civil pode ajudar”, afirmou.

Interrogada sobre as soluções de educação para quem chega, Laurinda Alves informou existirem “160 vagas e oito turmas no Liceu Camões para ensino do português”.

Do lado da vereação da CML deixa uma garantia na resposta a todas as dúvidas que possam surgir. “A nossa linha é sosucrania@cm-lisboa.pt”, garantindo que o email enviado “não cai em saco roto”.

Quase no final da sessão de esclarecimento, um particular (Carlos Madeira), em preparativos de viagem até à Polónia para trazer pessoas, interrogou se podia acolher “uma família russa com um filho, porque nem todos os russos são maus”, realçou. Rosário Farmhouse foi lapidar. “Sim, desde que seja residente na Ucrânia”. Um sim alargado a outras nacionalidades. “Se uma família russa, que há muitas, residente na Ucrânia, ou outra nacionalidade qualquer, pedir ajuda em Portugal, desde que prove a residência na Ucrânia, é parte das vítimas da guerra e será tratada da mesma maneira”, acrescentou ao SAPO24.