Em declarações à agência Lusa, o especialista em Geografia Humana e ex-secretário de Estado do Ordenamento do Território e das Cidades considerou que os centros históricos das cidades portuguesas “estavam sob uma pressão excessiva de turismo”, ficando muito organizadas em função do setor.

“O turismo, a partir de certa altura, se é demasiado intenso, se começa a aumentar os preços, se começa a expulsar as pessoas que lá vivem, é mais negativo do que positivo. Portanto, este contexto em que nós vivemos parou ou suspendeu esse processo e devíamos aprender com isso”, lembrou João Ferrão.

Para o investigador, não se trata de estar contra ou a favor do turismo, porque Portugal necessita de turistas, mas, sim, olhar de uma outra forma para os centros das cidades e pensar em novas soluções aproveitando os benefícios do setor, “sem que o remédio se transforme em veneno”.

“O alojamento local hoje está numa grande crise, porque não há turismo. Quando o turismo voltar, parte desse alojamento local vai outra vez ser ocupado. Mas será uma parte ou todo? Essa é a grande dúvida”, observou.

A procura turística e o alojamento local, sublinhou, foram determinantes na recuperação de muitos edifícios antigos, mas as cidades têm “vida sobretudo com as pessoas que lá vivem” e isso não pode ser esquecido.

“Penso que muito daquilo que foi recuperado para o alojamento local, no futuro, não vai poder ser para alojamento local, porque nós não vamos voltar a ter aquela enchente de turistas. Também o próprio conceito de massa vai provavelmente mudar um pouco. Se é assim, uma parte vai voltar para as atividades turísticas, outra parte fica liberta, por exemplo, para o mercado do arrendamento, que é fundamental”, explicou.

João Ferrão salientou ainda a importância de levar outro tipo de pessoas para o centro das cidades, para nele viver, e não apenas as que as visitam.

“Não é ser contra o turismo, não é também ser a favor de qualquer solução desde que traga turistas. […] Sabemos como é penalizador para a cidade o excesso de turismo e sabemos também como é penalizador para a cidade não ter turismo nenhum”, sustentou.

Recordando os riscos dos extremos, o especialista reforçou que deve ser encontrado um balanço no sentido de o turismo e o repovoamento dos centros das cidades coabitarem, com o arrendamento a estudantes, a jovens casais e a famílias.

“Se nós voltarmos outra vez para o extremo do ‘muito turismo’, mais tarde ou mais cedo, numa outra situação idêntica à que nós vivemos agora, vamos ter outra vez o problema de o turismo desaparecer de um dia para o outro e haver uma nova crise”, apontou, acrescentando que “o repovoar os centros das cidades é um fator fundamental”.

Futuro do urbanismo em Portugal poderá passar pelas cidades de 15 minutos

Em declarações à agência Lusa, dois investigadores portugueses sublinharam que, no último ano, as pessoas foram impulsionadas a recorrer ao comércio e outros serviços mais próximos a uma distância de circulação a pé ou em bicicleta.

“A cidade dos 15 minutos é: todas as pessoas - todos os residentes nas cidades - devem poder ter acesso a equipamentos, comércio e serviços essenciais até uma distância a andar a pé de 15 minutos”, explicou João Ferrão.

De acordo com o especialista, o novo conceito de cidade de proximidade foi idealizado por um académico franco-colombiano, Carlos Moreno, e pretende terminar com a fragmentação dos grandes centros urbanos, em que muitas atividades estão dependentes de viagens longas em viatura própria ou de transporte público.

“Tem a ver com a ótica do planeamento urbano e com quem intervém nesse planeamento urbano, que são basicamente as autarquias. Há exemplos muito interessantes, […] mas há muito essa ideia de cidade de 15 minutos, que é olhar para cidade com uma visão oposta à cidade da mobilidade, em que as pessoas circulam muito – moram num sítio, trabalham no outro, vão fazer compras no outro”, referiu, lembrando o exemplo de Carlos Moreno, que ajudou a presidente da Câmara de Paris, Anne Hidalgo, a aplicar o conceito na capital francesa.

Para João Ferrão, este novo ideal de cidade, que foi desenvolvido pela cidade de Paris durante a pandemia, propõe um esquema de vida comunitária e de micromobilidade como se se passasse a viver numa nova aldeia ou vila.

“Estes espaços são abertos, porque todos nós hoje vivemos mesmo nos vários mundos virtuais. Não é a velha vila com uma muralha à volta, não há muralha nenhuma, o que há é a possibilidade do ponto de vista da oportunidade das pessoas. O que há é a possibilidade de a pessoa, andando até 15 minutos, encontrar nesse raio – o raio dos 15 minutos a pé – aquilo que é essencial”, indicou.

Também o professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa João Seixas considerou que a pandemia “veio colocar uma nova camada de questões às pressões e às problemáticas e até às ansiedades que já vinham de trás”, e que poderá “haver uma revalorização de uma proximidade com muita diversidade humana”.

“A biodiversidade também é muito importante nos habitats da Humanidade. Esta possibilidade de usos mais diversos à pequena escala em cada bairro pode aplicar-se também às mais pequenas escalas, desde a escala de uma rua até a uma escala, por exemplo, dos equipamentos, uma escola, uma universidade, uma estação do metropolitano, teatros, centros de saúde até - podem multiplicar-se em diferentes tipos de atividade. O urbanismo deixa de ser gerido por critérios meramente monofuncionais”, analisou.

Neste contexto, esses espaços podem ter, além dos seus usos específicos e originais, atividades de acolhimento e agregação de comunidades.

Segundo João Seixas, mestre em Geografia Humana e doutorado em Geografia, a União Europeia já está a preparar “há muito tempo”, com consultores e especialistas, a adoção do conceito da cidade de 15 minutos noutros países.

“É um urbanismo que já não é apenas de gestão do espaço do território, mas é também do tempo, do tempo dos quotidianos, do tempo dos fins de semana, dos tempos dos meses, [do tempo] das pessoas. Isto é uma verdadeira revolução silenciosa, mas com um enorme impacto para o nosso futuro, porque pode, de facto, fazer com que haja efeitos profundíssimos, desde logo nas questões ecológicas”, frisou.

Alertando para a urgência de as cidades tratarem das estratégias para o futuro, João Seixas ressalvou que “é muito importante” as sociedades desenvolverem o sentido de comunidade e que haverá “ganhos na ecologia absolutamente extraordinários”, porque as pessoas não vão precisar de se deslocar de uma forma muito distante, reduzindo-se as emissões poluentes.

“Mesmo que as pessoas estejam mais frágeis, menos capacitadas ou com menos posses próprias, se tivermos um sentido de bairro e de comunidade há outro tipo de segurança, outro de tipo de resiliência muitíssimo significativo”, assegurou.

Geógrafo defende aposta na biodiversidade e redes de apoio nas cidades

João Seixas explicou também que é necessário misturar a biodiversidade com o edificado, lembrando que os “seres humanos fazem parte da natureza”.

“Há estudos que confirmam, de facto, que os cidadãos, se se sentirem mais integrados nas comunidades, se sentem mais realizados, mais ativos, mais informados e com uma consciência cívica mais madura [do que se estivessem] todos separados uns dos outros”, indicou, referindo que, em plena era digital, “estas questões da cidadania e da comunidade são extraordinariamente importantes para o futuro”.

Para o também economista, as teses do conceito de comunidade têm vários impactos ecológicos, sociais, políticos e económicos, e as pessoas necessitam, atualmente, de desenvolver confiança no futuro para entender o espaço, o tempo e a comunidade que as rodeiam.

“Mesmo que eu esteja numa grande metrópole como Lisboa, a minha casa, a minha rua é uma escala tão identificável como se eu estivesse numa vila muito pequena. […] Esta educação – esta maturação – para a confiança vem de determinadas fontes, vem da nossa formação, vem da nossa família, vem da escola e vem também da rua […]. E se nós usufruirmos da rua de uma forma mais plena, mais participativa, e percebermos as diferenças e os outros […], teremos uma maturidade muito maior”, adiantou.

De acordo com João Seixas, os hábitos interpessoais mudaram com a pandemia de covid-19 e, a par da ecologia, é cada vez mais importante estudar as dinâmicas sociais.

“É muito importante pensarmos no ‘social deal’, o social, claro, porque, de facto, há muitas vulnerabilidades sociais que vinham de trás e agora com a pandemia acentuaram-se, os mais precários, os mais vulneráveis ficaram ainda mais”, salientou, apontando para a importância das redes de solidariedade, que estavam “muito latentes na sociedade”.

O geógrafo está a desenvolver um projeto internacional sobre a “maturação das redes de solidariedade”, na Universidade Nova de Lisboa, em conjunto com investigadores da Universidade de Aveiro e de países como Espanha (Madrid e Barcelona), Itália, França, Brasil e México.

“A questão do apoio social é muito importante, porque nós estamos num país com grandes desigualdades, em Portugal. A pandemia está a acentuar muito as vulnerabilidades, desde os mais idosos… Há muita pobreza infantil, mas também pobreza de classes sociais, dos empregos mais precários. Há muita precariedade e vulnerabilidade na habitação”, considerou.

João Seixas defendeu, por isso, a necessidade de se criarem políticas de habitação mais robustas, no sentido de apoiar os grupos mais precários.

“É evidente que isto necessita de políticas setoriais muito fortes, políticas de habitação, de proporcionar habitação acessível, de proporcionar apoio aos idosos, mas, ao mesmo tempo, também esta política de fomento de bairros e da comunidade será uma alavanca também muito poderosa de apoiar estas pessoas e estes grupos mais vulneráveis”, realçou.

Segundo o especialista, nas últimas décadas os bairros adotaram diferentes tendências de especialização - umas mais comerciais e outras mais residenciais – e a sociedade deve agora “contrapor uma tendência de maior diversificação” nos centros urbanos.

Os dois primeiros casos de pessoas infetadas em Portugal com o novo coronavírus foram anunciados em 02 de março de 2020, enquanto a primeira morte foi comunicada ao país em 16 de março. No dia 19, entrou em vigor o primeiro período de estado de emergência, que previa o confinamento obrigatório, restrições à circulação em Portugal continental e suspensão de atividade em diversas áreas.