O diretor do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), João Goulão, disse hoje no parlamento, onde foi ouvido no âmbito do grupo de trabalho que vai avaliar a utilização da canábis para fins medicinais, ter “algumas, para não dizer muitas dúvidas” sobre alguns pontos das propostas do Bloco de Esquerda e do partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN) no que diz respeito ao uso da canábis na forma fumada e ao autocultivo.

Começando por afirmar que o SICAD não tem “qualquer tipo de resistência” à introdução da canábis para fins medicinais “para determinadas condições clínicas, bem determinadas e da mesma forma como são introduzidos outros medicamentos”, ou seja, sob supervisão do Infarmed e sujeito aos pareceres habituais, João Goulão mostrou reservas ao uso terapêutico da planta fumada, algo que nenhum país europeu onde a canábis seja legal para fins medicinais prevê na sua legislação, sublinhou.

“A questão do autocultivo para fins medicinais pressupõe a utilização da planta fumada e é isso que me suscita francamente algumas dúvidas. Algumas, para não dizer muitas dúvidas. E isso é transversal a ambos os projetos”, disse.

João Goulão considerou fazer “pouco sentido” a proposta do PAN para que seja a Direção-Geral de Saúde (DGS) a controlar o autocultivo, sobretudo quando se está a falar de medicamentos, e que a haver um controlo este deveria caber ao Infarmed, a autoridade do medicamento.

“Fica uma ideia de alguma imprecisão acerca das formulações e apresentações propostas para estes produtos de canábis para fins terapêuticos e a previsão do autocultivo, por não garantir uma certa estabilidade [no controlo de qualidade], no contexto da utilização terapêutica faz pouco sentido. Aquilo de que enfermavam propostas anteriores, que de alguma forma misturavam o uso terapêutico com o uso recreativo, deixam aqui algum traço, alguma reminiscência dessa mistura de discussão”, defendeu João Goulão.

O deputado do Bloco de Esquerda Moisés Ferreira, a coordenar o grupo de trabalho, disse, na defesa da proposta do seu partido, que a questão de a canábis para fins terapêuticos “ser fumada ou não” é uma “não questão”, uma vez que caberá sempre aos médicos a decisão sobre a forma de prescrição, e que o acesso ao autocultivo estaria sempre dependente de uma receita médica, e que se justifica por questões de “acesso dos utentes”, mas manifestou abertura do Bloco para alterar o projeto e “apertar mais a malha”.

No período de respostas aos deputados João Goulão reiterou que o autocultivo “esbarra” na dificuldade de controlo de qualidade e rigor.

A deputada socialista Maria Antónia Almeida Santos defendeu que os projetos em discussão “têm mérito, e mais mérito que preocupações”, e que “há alguma hipocrisia” em não legalizar o uso terapêutico da canábis em Portugal, sendo o país produtor e exportador da planta.

João Goulão recusou que “haja qualquer tipo de hipocrisia”, uma vez que a produção se destina à indústria farmacêutica e ao uso medicinal.

O PCP, por seu lado, insistiu, pela voz da deputada Carla Cuz, que não há na atual legislação qualquer impedimento à prescrição de medicamentos à base de canábis, e que isso já é feito, ainda que de forma residual, com um medicamento, entendendo, por isso, não haver necessidade de nova legislação, uma leitura da lei que João Goulão acompanha, dizendo que formas de tratamento como pílulas, medicamentos, formas inaladas, “são admissíveis à luz da legislação atual”.

Isabel Galriça Neto, do CDS-PP, defendeu que a posição do partido e do SICAD são a mesma, ao colocarem reservas quanto ao uso da planta na forma fumada devido a preocupações de qualidade e rigor.

“Não há nenhuma premência em dizer que a canábis medicinal tem algum valor acrescido face a outros medicamentos que já temos disponíveis”, defendeu a deputada, que alertou para o risco de “algum branqueamento” que este debate possa fazer em relação aos riscos associados ao consumo.

João Goulão enalteceu a separação da discussão do uso medicinal da canábis do uso recreativo, uma discussão “que se avizinha e que terá a mesma dignidade, mas que tem a ganhar com o facto de ser separada”.