Durante muitos anos, foram inúmeras as crianças que viam um título discriminatório no seu registo de nascimento. Até ao Estado Novo manteve-se a figura jurídica de pai incógnito para abafar muitos casos de filhos nascidos fora do casamento. Contudo, com a Constituição de 1976, deu-se a mudança: passaram a não poder existir “designações discriminatórias relativas à filiação”. O Código Civil do ano seguinte veio reforçar esta ideia, implantando a “investigação da paternalidade” pelo Ministério Público e, a partir daí, a lei portuguesa não permite a existência da designação de filhos de pai incógnito. No entanto, os casos de crianças sem o registo do nome do pai continuam a suceder-se, visto que algumas mães optam por não o divulgar ou os pais se recusam a assumir a paternidade.

Maria nasceu em 1939, numa pequena aldeia. Desde o primeiro dia, viveu numa quinta que pertencia a famílias de Lisboa, rodeada por vinhas, e sempre se lembra de ajudar nas tarefas do campo. A sua mãe teve mais oito filhos, seus meio-irmãos. Quanto ao pai biológico, nunca o conheceu. É filha de pai incógnito, mas isso não é motivo para guardar segredo.

“Estava tudo muito escondido, as pessoas tinham vergonha”

“Não tenho problema nenhum em falar sobre isto. Toda a gente sabia o que era, naquela geração. Mas as pessoas não falavam muito no assunto. As pessoas da minha idade, que trabalharam aqui comigo, também não falavam muito nisso. Estava tudo muito escondido, as pessoas tinham vergonha e não queriam dar a saber. Não é como agora, que ninguém tem problema em dizer que está grávida, mesmo solteira. Apareceu, apareceu!”, diz.

Quanto à sua história, diz que tudo começou com um namoro secreto. “Eles namoravam às escondidas, ninguém sabia de muito. A minha mãe nunca disse nada a ninguém. Uma tia da minha mãe contou-me que ela chegou a estar fechada, não saía à rua. Perguntavam-lhe porque não saía e ela dizia que lhe doía a cabeça ou a barriga e pronto, ia ficando. A própria mãe dela - a minha avó - também só soube quando já não dava para esconder. O pai é que reagiu muito mal. Perguntava sempre porque é que ela não saía, mas também pensava que eram coisas de raparigas. Quando soube, foi uma guerra medonha. Só lhe contaram quando eu estava quase a nascer. O meu avô esteve três meses aqui fechado na quinta, nem ao portão ia com vergonha. Tinha um desgosto pela filha ter engravidado…”, afirma.

Maria só percebeu que havia algo que não lhe tinham contado sobre o seu pai quando entrou para a escola. “Quando eu tinha sete anos puseram-me na escola e não queriam que eu parasse nunca pelo caminho. Diziam que vinha um homem que era carteiro e eu não podia falar com ele. Diziam que ele me queria levar. Eu não sabia de nada! Esse carteiro era o meu pai, era do concelho aqui ao lado. Mas ele nunca me procurou. Só depois é que me foram contando, até porque a minha mãe apareceu nessa altura com outro homem, que disseram que ia passar a ser meu pai”, conta.

Apesar da reacção inicial dos avós, foram eles que acabaram por educar Maria. “A minha mãe arranjou trabalho em Lisboa, a servir como empregada doméstica. Eu fui criada pelos meus avós. Depois ela voltou com namorado e os pais aceitaram bem, também já tinham passado aqueles anos todos. Queriam levar-me com eles para Lisboa, mas os meus avós não deixaram. Tiveram medo que me tratassem mal. Estive lá uma vez, oito dias, até gostei, mas comecei a chorar e a dizer que queria vir para casa e voltei.”, relembra.

A chegada de um homem desconhecido podia ser, para uma criança, motivo de estranheza. Mas não neste caso. “Aquele homem passou a ser o meu pai, mesmo assim. Tratou-me sempre muito bem, perfilhou-me e tudo. Depois eles tiveram mais oito filhos, com idades muito seguidas uns aos outros. Eu ajudei a criar os mais velhos, que vieram viver aqui para a quinta. Os meus pais eram muito pobres, não tinham meios para criar os filhos todos. Mas também ficavam cá meia dúzia de meses e iam embora. Depois alguns voltavam, porque gostavam disto aqui”, recorda Maria. 

“Embora nunca tenha vivido com quem me perfilhou, ele é que foi sempre um pai”

Contudo, nunca teve curiosidade em conhecer o pai biológico. “Eu nunca quis saber quem era o carteiro nem ir à procura dele. O medo era tanto! O meu marido, antes de casarmos, falou com ele. Conheceram-se por acaso, trabalharam no mesmo sítio e calhou em conversa. Quando eu ia à vila, o carteiro chegou a ver-me passar, mas nunca falámos. Eu não sei como ele era, sequer. Nunca se aproximou. Havia quem me dissesse que eu devia ir conhecê-lo, mas eu achei que, sendo uma mulher - tinha 19 anos -, não era já altura para isso. Só voltei a saber alguma coisa dele quando me disseram que tinha morrido. Nem fui ao funeral, não fui capaz”, revela.

Com a certeza de que aqueles que mostram amor é que são os verdadeiros pais, mesmo numa vida atribulada, Maria guarda as memórias de um homem que esteve sempre presente. “Embora nunca tenha vivido com quem me perfilhou, ele é que foi sempre um pai. Tratou-me sempre bem, vinha cá muita vez. A minha mãe também, e íamos falando sempre que dava. Os tempos eram outros, também. A vida era complicada. Eu ia a casa deles de vez em quando, mas depois de casada é que comecei a ir mais. E mesmo com os meus filhos também foi sempre muito bom, era o avô deles, sem dúvida. Todos gostavam muito dele”.

“Eu sempre tive consciência de que tinha pai e mãe, só que cresci sem eles”

As gerações sucedem-se, as leis mudam, mas nem tudo muda com a lei. Tânia nasceu em 1990 e até aos 15 anos também não tinha o nome do pai na sua identificação. Cresceu numa instituição só de raparigas, onde entrou aos dois anos, porque a mãe não tinha condições para a ter. Foi fruto de uma relação passageira mas sempre soube quem era o pai. “Eu sempre tive consciência de que tinha pai e mãe, só que cresci sem eles. Quanto ao meu pai, eu sempre o conheci, sabia identificá-lo quando ele passava na rua”, conta.

No entanto, não ter um pai não significou sentir-se sozinha. “A verdade é que nunca senti a falta disso. Como tinha o acompanhamento das outras raparigas, que eram como minhas irmãs, acho que acabou por colmatar essa ausência. Eu nunca tive pai, mas olho para as coisas de outra maneira: sempre tive um pai que é grandioso, que é Deus, em quem eu muito acredito. Então sei que todas as coisas que me vão acontecendo no dia-a-dia, as coisas boas e as más, não são por acaso. Às vezes falamos de barriga cheia, julgamos as pessoas. Eu acredito que é Ele que mete tudo no meu caminho e que me obriga a viver a vida à minha maneira, aprendendo com isso. É mesmo o meu pai Deus que me mete isso tudo no caminho, acho que é o mais importante”, confessa Tânia.

Além disso, afirma não saber dizer o que é crescer sem um pai, porque sempre teve outras referências na instituição que a acolheu. “A tia Cristina e a professora Alexandra funcionaram como pai e mãe. Eram o meu subconsciente, também. Sabia sempre como iam reagir às coisas que eu fazia e pensava duas vezes”, diz entre risos.

“Acho que este rapaz é meu irmão”

Ao contrário de Maria, que nunca quis conhecer o pai, Tânia deu uma segunda oportunidade ao homem que lhe deu a vida. E foi assim que descobriu toda uma família. “Eu estava com uma amiga e vejo entrar um rapaz no café. Eu só o tinha visto uma ou duas vezes, mas quando se trata de família, acho que há sempre ali uma química qualquer. Eu olhei para ele e disse ‘acho que este rapaz é meu irmão’. Ele olhou, mas desviou logo a cara. Pensei que tinha de ir falar com ele. Quando ficamos sozinhos por nós próprios, aprendemos a ver as coisas de outra maneira. Eu podia ignorar o assunto, mas fui logo atrás dele. Perguntei-lhe o nome e disse-lhe ‘acho que és meu irmão’. Ele olhou para mim e disse ‘bem que me dizias alguma coisa, mas tive vergonha’. Fomos falando e percebemos que estávamos certos. Depois trocámos contactos e temos falado. Foi por intermédio deles que conheci mesmo o meu pai. Já fui ter com eles, há umas semanas, e foi muito engraçado. Identifiquei-me muito com o meu pai, acho que somos os dois trabalhadores. Nisso saio a ele!”, conta Tânia.

Com esta aproximação, Tânia descobriu que tem mais quatro irmãos do lado do pai, entre os 20 e os 23 anos. Mas qual o motivo que a levou a estar tanto tempo sem o procurar? “As pessoas contam sempre muita coisa. E depois? Isso corresponde ou não à realidade? Eu já não queria saber, já tinha ouvido tanta coisa e, como não me identificava com o que me diziam dele, decidi continuar a minha vida e nunca procurar ninguém”, revela.

No que diz respeito a questões legais, embora tenha sido perfilhada na adolescência, há uma coisa que Tânia sempre quis: ter o nome do pai. “Gostava muito do apelido dele e queria muito, são aquelas coisas de miúdas! Mas isso nunca aconteceu. Já pensei que agora seria a altura de o pôr. Agora já o conheço melhor e aos meus irmãos, dá-me uma certa vontade de ir ao registo e mudar as coisas! Já encontro semelhanças entre nós, há uma proximidade maior”.

Agora, depois do reencontro, percebe que tem “amor para dar e receber”. E mais: “é bom saber que temos alguém, que podemos ir ter com alguém se precisarmos. Podemos ir ter com um  amigo, mas família é família. Aconteça o que acontecer, ultrapassa-se tudo”.