"Um dos últimos grandes artistas do surrealismo e modernismo português"

O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, lamentou hoje a morte do fotógrafo e artista plástico Fernando Lemos, considerando-o um dos últimos grandes artistas do surrealismo e modernismo português.

“Foi com grande pesar que recebi a notícia da morte de Fernando Lemos, um dos últimos grandes artistas do surrealismo e modernismo português”, afirma Marcelo Rebelo de Sousa, num comunicado publicado no ‘site’ da Presidência da República Portuguesa.

Para o Presidente da República, “será certamente difícil não conhecer pelo menos uma parte do multifacetado talento de Fernando Lemos, cuja obra percorreu a pintura, a escrita, a fotografia, o desenho, encenações figurativas, design e até publicidade”.

“Artista mutável, transfigurador do real e da sombra, a sua obra (e é inevitável lembrar em particular a fotografia e o retrato) tem tanto de ambiguidade difícil de catalogar como mero abstracionismo, como de familiaridade quando os objetos retratados eram os rostos de Alexandre O’Neill ou Sophia Mello Breyner, Jorge de Sena, Mário Cesariny, Helena Vieira da Silva, Hilda Hilst, Arpad Szenes, e muitos outros”, salienta.

Marcelo Rebelo de Sousa recorda a decisão de Fernando Lemos ter ido viver para o Brasil, nos anos de 1950, mas sem nunca quebrar a ligação com Portugal, onde nas décadas seguintes continuou a apresentar os seus trabalhos, na Sociedade Nacional de Belas Artes, na Fundação Calouste Gulbenkian e em diversas galerias, culminando, nos últimos anos, em mostras em instituições como a Fundação Cupertino de Miranda e o Palácio Galveias/Câmara de Lisboa, no Museu Arpad Szenes - Vieira da Silva, com a Fundação EDP/MAAT, no Museu Coleção Berardo.

A este propósito, Marcelo Rebelo de Sousa lembra a última grande exposição de Fernando Lemos, na Cordoaria Nacional, há poucos meses, dedicada exclusivamente ao design gráfico, que esteve patente entre junho e outubro, por iniciativa do Museu do Design e da Moda (MUDE).

Em 2018 foi atribuído ao artista o grau de Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique, a que se somam muitas outras distinções, prémios nacionais e internacionais, "mas sobretudo o reconhecimento e profunda gratidão de todo um país perante o mestre do modernismo", sublinha Marcelo de Sousa no comunicado.

"Perdemos um grande artista e perdemos um grande amigo"

A diretora do Museu Arpad Szenes-Vieira da Silva, Marina Bairrão Ruivo, considerou hoje a morte do fotógrafo e artista plástico Fernando Lemos uma “enorme perda” para a cultura.

“É uma enorme perda. Nós perdemos um grande artista e perdemos um grande amigo, porque ele era um grande amigo da Maria Helena Vieira da Silva e de Arpad [Szenes], dos quais fez umas fotografias magníficas nos anos 50”, disse à agência Lusa Marina Bairrão Ruivo.

A diretora do Museu Vieira Silva contou que Fernando Lemos “era um amigo da casa”, recordando a exposição “Isto é Isto e Ex-fotos”, que reunia 154 desenhos de Fernando Lemos, patente da Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva em 2010, e do qual viria a ser publicado um catálogo duplo.

À Lusa Marina Bairrão Ruivo destacou a sua obra “muito multifacetada”: “de designer, a fotógrafo, a artista plástico, era de facto uma pessoa fantástica que fica num filme de Jorge Silva Melo muito bonito, que dá um retrato muito especial de Fernando Lemos” -- um filme estreado no Museu, em 2018, por ocasião do aniversário de Maria Helena Vieira da Silva, em 13 de junho, depois da instituição ter apresentado excertos da obra, ainda durante a fase de produção.

Como pessoa, era “fantástica, muito especial, muito afetiva e muito bem-disposta”, descreveu Maria Bairrão Ruivo sobre Fernando Lemos.

“Era de facto uma pessoa com um enorme humor e, apesar da idade, era uma pessoa que mantinha toda a energia e os valores em que acreditava muito vivos e muito presentes na sua vida”, sublinhou a diretora do Museu Arpad Szenes-Vieira da Silva.

O museu acolheu diferentes iniciativas dedicadas a Fernando Lemos, nomeadamente ciclos de documentários que lhe foram dedicados, como "Luz Teimosa", de Luis Alves de Matos, "Foto Doc: Fernando Lemos", de Camila Garcia e Renato Suzuki, "Fernando Lemos e o Surrealismo", de Bruno de Almeida e Pedro Aguilar, e "Fernando Lemos - atrás da imagem", de Guilherme Coelho.

"Nunca coube numa única definição"

A ministra da Cultura, Graça Fonseca, disse que “lamenta profundamente” a morte do fotógrafo, pintor e ‘designer’ gráfico Fernando Lemos, especificando que a cultura portuguesa tem-lhe várias dívidas.

“A Cultura portuguesa deve-lhe a experimentação na palavra, na imagem, na edição, mas igualmente na resistência à ditadura e na ousadia de não se submeter a formas, num compromisso artístico e ético inabalável”, declarou a ministra, em depoimento enviado à agência Lusa.

A responsável pela pasta da Cultura recordou também que Fernando Lemos, natural de Lisboa, onde estudou na Escola António Arroio, fez parte, inicialmente, do movimento surrealista português.

No seu texto, Graça Fonseca lembrou que Lemos, “em 1952, antes do seu exílio no Brasil, por oposição à ditadura salazarista, participou numa exposição que reuniu trabalhos seus em conjunto com os artistas Marcelino Vespeira e Fernando Azevedo, na Casa Jalco. No mesmo ano dirigiu, com José-Augusto França, a Galeria de Março. Participou também, em 1959, na Exposição 50 Artistas Independentes da Sociedade Nacional de Belas-Artes e, em 1961, na II Exposição de Artes Plásticas da Fundação Calouste Gulbenkian”.

A ministra considerou ainda que, apesar de “um percurso artístico longo e diverso nas abordagens”, a obra de Lemos “nunca coube numa única definição”.

A este propósito, nas palavras de Graça Fonseca, Fernando Lemos “dizia ser a soma de ‘atividades que têm vários nomes’, fotógrafo, pintor, desenhista, ‘designer’, mas também escritor, poeta, pensador, num permanente desejo de experimentar linguagens, técnicas e expressões”.

"Criatividade sem limites"

A diretora do MUDE - Museu do Design e da Moda, Bárbara Coutinho, recordou hoje à Lusa o artista plástico Fernando Lemos como "um livre pensador", cuja obra "evidenciava uma enorme vitalidade e um apurado sentido formal".

Bárbara Coutinho, que co-organizou este ano uma exposição antológica no MUDE dedicada à faceta do autor enquanto designer e artista gráfico, sublinhou a "jovialidae no olhar e uma alegria contagiante", uma "criatividade sem limites".

A diretora do MUDE recorda que conheceu Fernando Lemos há três anos, tendo mantido uma relação de proximidade com um "ser humano que se cumpriu e que foi reconhecido nas suas mais diferentes expressões".

Fernando Lemos esteve em junho passado em Lisboa por ocasião de uma exposição antológica organizada pelo MUDE.

Foi Bárbara Coutinho que lançou o desafio a Fernando Lemos de fazer esta exposição, depois de o ter visitado em casa, em São Paulo, e de ter visto várias caixas de material, com muitos inéditos, e que tinham sido organizadas pelo curador Chico Homem de Melo.

"Cerca de 100 fotografias que são um mundo"

Os "Retratos 49/51/52" são “a grande obra” de Fernando Lemos, “uma obra universal”, que o artista executou antes de ir para o Brasil, disse o fotógrafo Jorge Molder à agência Lusa.

"O 'corpus' de Retratos é algo único”, e a sua sistematização por Molder levou-o a tornarem-se amigos, e a apresentá-lo em França e na Casa de Fotografia, em Moscovo, numa exposição à qual Fernando Lemos não pôde estar presente.

Fernando Lemos era “um homem que tinha uma capacidade muito grande, de lutar contra a gravidade”, disse Molder, que foi também diretor do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian (atual Coleção Moderna).

“Sejamos claros: o facto de ser coxo fazia com que tivesse de arranjar um suplemento de força para que levasse uma vida mais do que normal”, disse Molder à Lusa, numa referência às sequelas da paralisia infantil, de que padeceu, e que superou e enfrentou, ao longo da vida.

“O Fernando era uma força da natureza”, enfatizou Molder, que também se referiu ao artista como "um grande poeta", autor de livros como "Teclado Universal", "Lá e Cá" e "Pegadas na Paisagem", expressão literária que este ano a Porto Editora coligiu em "Poesia", na coleção Elogio da Sombra.

“O 'corpus' de retratos que inclui pessoas muito ligadas ao teatro, como Augusto Figueiredo e José Viana, ou da literatura, como Sophia [de Mello Breyner Andresen] e Jorge de Senna, são absolutamente extraordinários e faz parte de um património universal”, argumentou Jorge Molder, referindo que “são cerca de 100 fotografias que são um mundo”.

Referência da cultura portuguesa e brasileira, Fernando Lemos era sobretudo reconhecido em Portugal pela fotografia de inspiração surrealista, realizada entre 1949 e 1952, e, no Brasil, pelas suas pinturas e desenhos abstratos.

O 'corpus' a que Jorge Molder se refere diz respeito ao início da carreira de Fernando Lemos, na década de 1950, quando foi "à procura dos malditos", os autores impedidos de se exprimirem na época da ditadura em Portugal, e fotografou-os, como contou em junho, durante uma visita de imprensa à mostra “Fernando Lemos. Designer”, que esteve patente na Cordoaria, em Lisboa.

"Tinha um humor que desconstruía na palavra e na imagem"

O historiador de arte e curador João Pinharanda considerou que o artista Fernando Lemos tinha “um humor que desconstruía o real, tanto na palavra, como imagem”, destacando o “grande fotógrafo e grande designer gráfico” que foi.

“Tinha um humor que desconstruía o real, e tanto era na palavra, como na imagem”, afirmou à agência Lusa João Pinharanda, diretor do Centro Cultural Camões em Paris, referindo que Fernando Lemos manteve esta qualidade “toda a vida, que reteve dessa memória da poética surrealista”.

João Pinharanda, conselheiro cultural da Embaixada de Portugal em Paris, salientou que Fernando Lemos “era um dos últimos representantes da geração surrealista, vivo, restando agora apenas Cruzeiro Seixas, Isabel Meyrelles e o professor José-Augusto França”.

“A grande contribuição dele [Fernando Lemos] para essa geração foi num campo não explorado por nenhum dos outros nomes, que foi o campo da fotografia”, referiu o antigo responsável pela programação do Museu de Arte Contemporânea de Elvas e da Fundação EDP, observando ainda: “O que era extraordinário nele era uma abertura de espírito, imensa”.

No entender do historiador de Arte e comissário português da Temporada Cruzada França-Portugal 2021-2022, “talvez a saída de Fernando Lemos de Portugal muito cedo para o Brasil [lhe tenha permitido] fugir às pequenas intrigas dos grupos lisboetas”, na década de 1950, sob a ditadura.

“Aliás, mais ou menos na mesma data, [o pintor] António Dacosta foi para Paris e ficaram ambos livres dessa pequenez lisboeta”, prosseguiu, para salientar que “essa grande abertura de espírito [lhe] permitiu diversificar muito a sua atividade”, tendo sido não só “um grande fotógrafo, como foi um grande designer gráfico, e isso é um dado também muito importante”.

João Pinharanda disse lembrar “com muita saudade as vezes" que o encontrou em São Paulo e as vezes em que trabalhou com ele em Lisboa, nomeadamente em duas exposições, "Isto É Isto" e "Ex-Votos", que reuniram o Museu Arpad Szenes Vieira da Silva e a Fundação EDP, agora Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT).

"Era o rei Midas, tudo o que tocava transformava em arte"

O encenador Jorge Silva Melo recordou hoje Fernando Lemos como um “enorme artista” e um “homem cheio de invenções”, comparando-o com o rei Midas, porque “tudo o que tocava se transformava em arte”.

Jorge Silva Melo realizou um documentário sobre a vida e obra do fotógrafo, artista plástico e designer gráfico Fernando Lemos e tornaram-se amigos, como contou o realizador à agência Lusa.

“Era um homem livre, irrequieto, divertido cheio de um sentido de humor extraordinário. Adorei conhecê-lo”, disse o realizador do filme "Fernando Lemos - Como, Não é Retrato?" (2017).

O encenador contou que antes de começar a realizar o documentário, a atriz Glicínia Quartin (1924-2006), amiga de Fernando Lemos, lhe disse que se iam dar bem e que iam ficar amigos, porque era um homem “muito caloroso”.

“Eu quase não o conhecia antes de ter filmado com ele, mas criámos uma relação de total confiança. Ele era maravilhoso”, afirmou o encenador à Lusa, confessando que “gostou muito” de realizar o filme, que demorou oito anos a ser concluído.

Um tempo que serviu para “conhecer a pessoa, a obra e de gostar de estar com ele”, disse Jorge Silva Melo, contando que continuaram sempre a falar por carta.

“Tenho aqui ao meu lado uma carta dele, com uma caligrafia lindíssima e com uns poemas que ia escrevendo”, afirmou, sublinhando que Fernando Lemos nunca parou de escrever poesia.

“Todos os dias escrevia e todos os dias desenhava. Ele era extraordinário”, reiterou o encenador, desejando que a sua poesia deixe agora de “ser uma coisa discreta”, assim como a sua pintura.

Isto porque Fernando Lemos, “um enorme artista”, partiu para o Brasil muito cedo, com 27 anos, e “foi muito pouco conhecido em Portugal”.

“Sabia-se que existia, conheciam-se uns poemas que tinham tido prefácio de Jorge de Sena, mas poucos, sabia-se de umas pinturas, mas poucas. Só há pouco tempo, nos últimos 20 anos, é que a sua obra, sobretudo fotográfica, começou a ser conhecida entre nós e é extraordinária é o grande retrato de Portugal dos anos 50”, salientou o realizador e encenador, diretor e fundador da companhia Artistas Unidos.

Descrevendo a personalidade de Fernando Lemos, Jorge Silva Melo afirmou que “era um homem livre, cheio de atividades, cheio de calor, de ternura, de ferocidade, também, de humor. Exerceu tudo o que quis”.

“Também foi um homem feliz, namorou, teve filhos, viveu no Brasil, onde queria, porque era um país novo, e onde participou ativamente na vida cultural”, lembrou.

Apesar de andar em cadeira de rodas, devido a uma paralisia, Fernando Lemos vinha agora “muito regularmente” a Portugal. “Ainda há pouco tempo estivemos com ele numa grande exposição do MUDE [Museu do Design e da Moda, na Cordoaria Nacional] da sua parte gráfica, que é uma parte pouco conhecida em Portugal, claro, porque muitas das suas obras de arte pública foram feitas no Brasil, sobretudo em São Paulo”.

“Era um homem cheio de invenções, era o rei Midas, tudo o que tocava transformava em arte”, rematou Jorge Silva Melo.

Fernando Lemos

O fotógrafo, artista plástico e designer gráfico Fernando Lemos, de 93 anos, morreu hoje, em São Paulo, no Brasil, revelou à agência Lusa fonte próxima da família.

O artista nascido em Portugal e de nacionalidade brasileira, morreu numa unidade hospitalar da cidade brasileira, onde estava internado, segundo a mesma fonte.

Desde 1953 radicado no Brasil, onde vivia, em São Paulo, Fernando Lemos pertence à terceira geração de modernistas portugueses e o seu trabalho foi inicialmente inspirado pelo movimento surrealista.

Deixa uma vasta obra de pintura, desenho, poesia, e também na área do design, gráfico e industrial.

Em "Fernando Lemos - Como, Não é Retrato?", de Jorge Silva Melo, o próprio artista afirmou: "Fui estudante, serralheiro, marceneiro, estofador, impressor de litografia, desenhador, publicitário, professor, pintor, fotógrafo, tocador de gaita, emigrante, exilado, diretor de museu, assessor de ministros, pesquisador, jornalista, poeta, júri de concursos, conselheiro de pinacotecas, comissário de eventos internacionais, designer de feiras industriais, cenógrafo, pai de filhos, bolseiro, e tenho duas pátrias -- uma que me fez e outra que ajudo a fazer. Como se vê, sou mais um português à procura de coisa melhor".