"O falecido fez um bom trabalho a proteger a aldeia. Quando voltámos encontrámos tudo de pé", relata João Nascimento, 84 anos, exercitando a ironia cultivada em seis décadas como barbeiro.

O morto, vítima de um acidente de trabalho, fica com os louros de ter protegido a aldeia das chamas que galgaram as encostas da serra em poucos minutos, sopradas pelo vento forte e alimentadas pela madeira seca dos eucaliptos e pinheiros, mas quem de facto fez tudo foi um grupo de seis homens que ficou para trás, enfrentando o incêndio.

"Com enxadas, ramos e um bocado de água fomos controlando o fogo até à chegada dos bombeiros", narra José António, que gere o café da aldeia.

A ação do "grupo dos seis" merece elogios de todos: a aldeia foi poupada, os animais de criação que ficaram para trás salvaram-se. E embora as marcas do fogo sejam visíveis por todo o lado na vegetação, as chamas detiveram-se junto às paredes brancas do cemitério, acabadas de pintar por causa do funeral.

"Foram uns heróis", reconhece Maria Amélia, umas das onze moradoras desta pequena aldeia de xisto, que já conheceu melhores dias. Uma passagem pelo cemitério permite vislumbrar tempos em que a aldeia tinha perto de duas centenas de habitantes. "Hoje somos onze, no início da semana éramos doze e daqui a uns meses só Deus sabe", resume Luciano Domingos, 75 anos.

Apoiado num cajado fino, Luciano aponta para uma pequena casinha no vale. Nasceu ali, cresceu pela serra, fez-se homem em Lisboa e regressou às origens há alguns anos. Leva uma vida sossegada em Cadafaz, sobretudo porque, segundo explica, deixou a mulher em Lisboa, a quase 300 quilómetros. "Mas às vezes ainda consigo ouvi-la a ralhar comigo", brinca.

Passado o susto, terminado o "exílio" na Casa do Estudante de Góis (que acolheu as pessoas retiradas das aldeias do concelho), os habitantes de Cadafaz exorcizam o incêndio com gargalhadas. No centro da aldeia, no Largo de Santo António, vai uma animação: três carros de bombeiros de Castelo de Vide, Gavião e Elvas, um carro de patrulha da GNR.

"Já há muito tempo que não tínhamos tanta gente na aldeia. No verão do ano passado chegámos a juntar 35 pessoas no café, durante as férias", relata Luciano Domingos, apoiado por Maria Amélia, que mora mesmo junto ao café, instalado na antiga escola primária.

Crianças na aldeia, só nas férias, acompanhadas pelos pais que regressam por uns dias. De resto, os habitantes, reformados na sua maioria, gastam o tempo no café, que abre ao meio dia e fecha às duas, e a ver televisão.

"Moramos onde Judas perdeu as botas, mas temos internet e televisão por fibra", relata José António, que trabalha na construção civil e explora o café em ‘part-time’. E foi a fibra que trouxe as notícias da morte de tanta gente no concelho de Pedrógão Grande, ali bem perto.

"Quando vi aquela coisa horrível na televisão fiquei cheia de pena das pessoas, mas pensei que seria muito difícil que isso viesse a acontecer por aqui. Há mais de 30 anos que não tínhamos um incêndio a sério", relata Maria Amélia.

Mesmo assim, ninguém ganhou para o susto. "Quando nos mandaram evacuar as casas cheguei a pensar em não ir. Pensei que podíamos também ficar presos na estrada, mas felizmente o fogo correu atrás de nós até se cansar", relata, com uma gargalhada que exorciza o medo.

Reportagem: Rui Baptista / Agência Lusa