A Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense (SMFOG) foi, por estes dias, repetidamente trazida para as primeiras páginas da história de Portugal.

O relevo foi dado não tanto pelo 112.º aniversário da mais antiga coletividade do Concelho de Grândola, fundada a 1 de Maio de 1912, mas sim devido à umbilical associação da coletividade, também conhecida por “Música Velha”, ao 25 de Abril de 1974 e, neste ano em particular, às celebrações dos 50 anos da Revolução dos Cravos.

O embrião desta ligação uterina nasce nos festejos do 52º Aniversário, a dia 17 de Maio de 1964. A efeméride contou com a atuação, entre outros músicos e artistas, de José Afonso, no salão da SMFOG, espaço contíguo ao Cineteatro Grandolense.

O resto é sobejamente conhecido. Três dias depois, em homenagem à sociedade musical e cultural, o cantor enviou por correio a primeira versão do poema “Grândola Vila Morena”, a tal letra transformada numa das senhas do 25 de Abril de 1974.

O SAPO 24 falou com Luís Vital Alexandre, presidente da direção da “Música Velha” e mereceu honras de visita guiada, um pouco anárquica, pelo passos e história da Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense e do Cineteatro Grandolense.

A apresentação do prédio nascido no exato local onde em 1568 foi edificado a Igreja da Santa Casa da Misericórdia de Grândola e, contíguo e colado, o hospital da Misericórdia, datado do ano de 1603, serviu de pretexto de início de conversa.

“A Igreja seria adquirida em 1921 pelo lavrador João Rodrigues”, contou Luís Vital Alexandre. “Ali construiu em 1934 o Cineteatro Grandolense”, espaço que constituiu, durante mais de 30 anos, o principal centro da atividade cultural de Grândola.

Da mutação do antigo hospital, nasceu a sede da SMFOG na década de 30 do século passado. Biografia feita.

Fardas, pessoas e retratos onde vive o espírito de Zeca Afonso

“Hoje está tudo muito diferente, bastante diferente ...”, reconheceu ao recordar que o espaço afeto à sede da Sociedade Filarmónica e ao Cineteatro “sempre foram dois edifícios distintos, sem ligação” até à união feita “depois das obras que ficaram prontas em 2011” sublinhou. “Alterou muito”, sintetizou.

Zeca Afonso está presente e vivo em cada canto e recanto do prédio hoje único e indivisível. O autor de Grândola Vila Morena paira entre as quatros paredes de duas portas de entrada de tronco comum.

O tour começou no piso térreo, pelo lado direito assim que entramos no retângulo de vidro adentro. Deparamo-nos com uma sala que é um museu vivo do passado e presente da sociedade musical. Há modelos das antigas fardas da banda, retratos e uma velha bandeira hasteada dentro de uma moldura.

“Conta a história das pessoas da casa, da banda, mas considero mais importante as pessoas, nada se faz sem elas. As fardas são simples adereços”, compara.

“Temos os nossos músicos, os rostos dos que atingiram a medalha de ouro na banda, que se consegue aos 50 anos de atividade” assinalou. “Já morreram todos menos o Joaquim Parreira que, por motivos de saúde, não pode dar o seu contributo”, contou Luís Vital Alexandre, bisneto de um dos fundadores da Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense.

“Aqui atrás, é uma parede mais dedicada aos nossos beneméritos ou dirigentes, que deram muito o seu tempo e da sua vida” acrescentou entre curtos passos na sala retangular.

Destaca fotografias. “Do Zeca (Afonso), do Francisco (Fanhais) e com quem temos trabalhado juntos ultimamente, a última vez das quais no Coliseu e do João (Afonso), do meu bisavô, um dos fundadores e do antigo proprietário do espaço, o lavrador João Rodrigues, juntamente com a sua esposa”, enumerou.

De dedo indicador em riste, destapou um pormenor. “Na bandeira da Sociedade Musical Fraternidade Operário Grandolense falta a palavra Fraternidade”, indicou. “Durante muitos anos fizeram-me essa pergunta e não soube responder, mas é simples para quem conhece esses símbolos heráldicos. O laço (apontou) representa a fraternidade”, desvendou.

“O espaço ainda está por aqui, mas não é o que era em 1964”

Fechada esta porta da vida da coletividade, partimos para outro capítulo. Subimos ao primeiro andar da sede. Ali marcamos encontro com um dos principais momentos da história e com o ponto mais famoso da reta cronológica da SMFOG.

“O espaço ainda está por aqui, mas não é o que era em 1964. A sala onde Zeca cantou em maio de 64 tinha um palco recuado que desapareceu nas tais obras em 2011 (da autoria da câmara municipal de Grândola). Hoje é atualmente a sala de aulas e de ensaios” revelou.

Há cadeiras vermelhas e estantes de partitura, dispersas numa desordem organizada exprimindo a vivência diária da sala num diálogo entre pessoas e instrumentos.

“Temos cerca de 80 alunos com idades entre os 4 e os 25 anos”, contabilizou. “Na banda, temos cerca de 60 elementos, entre os 14 e os 45 anos”, referiu.

Da banda filarmónica que tocou no dia 5 de maio no parque de exposições de Grândola, ao lado de Francisco Fanhais e João Afonso por ocasião da oficialização do 112.º aniversário, destaca dois nomes. “Rui Brito e Irina Monteiro são os efetivos mais antigos, estão ambos há mais de 20 anos na banda” indicou.

No lote de ex-alunos e atuais elementos da banda incluem-se “o José Luís e a Bárbara”, os dois filhos do atual presidente da direção pouco dado às artes performativas musicais, à imagem das duas gerações anteriores.

“O meu avô e o meu pai não seguirem a música. Eu também não. Nada, zero”, sorriu o responsável informático da câmara municipal de Grândola e presidente da SMFOG.

“Estou cá há 11 anos nestas funções porque os meus filhos estavam cá a aprender música e fiquei”, contou. “É um cargo totalmente pro bono, não é remunerado e nem os estatutos permitem”, confessou.

Ao nível cultural esta coletividade atinge um dos seus pontos mais altos nas décadas de 50 e 60 do século XX com a passagem por aqui de Alves Redol, Manuel da Fonseca, Maestro Lopes Graça, Carlos Paredes, entre outros nomes da cultura portuguesa, a criação de uma biblioteca, um grupo de teatro e o cineclube, bem como a organização de colóquios, conferências e exposições.

No início dos anos 2000, já não existia biblioteca (os livros viajaram para o novo museu, a meia dúzia de metros da Sociedade, nos antigos Paços do Concelho), novo Núcleo Museológico do Museu de Grândola que percorre, através da tecnologia interativa, a história de Grândola.

O grupo de teatro baixou o pano, mas a Banda Filarmónica da SMFOG manteve-se e a sociedade passou a levar animação cultural ao Cineteatro Grandolense. Desde 2014, as Noites de Jazz na Música Velha são um dos projetos bandeira.

O palco onde atuou um ciclista acolheu a sede de um partido político

Fechados os parágrafos da história da longa vida da “Música Velha”, entramos no renovado Cineteatro.

Foi antecâmara de saraus, espetáculos de teatro, música e cinema. Depois calou-se. “Com o passar dos anos, o cineteatro começou a ter outras valências, inclusive até sede de um partido político, do PSD”, confessou. “Ainda me lembro disso, eram organizadas pela JSD, nos anos 80”, recordou Luís Vital Alexandre ao ter fresco na memória as idas “às matinés, ao fim de semana” ao local.

Comprado em 1998 pela câmara municipal de Grândola, renasceu e modernizou-se em 2011. Hoje é um espaço multifacetado e multifuncional de 72 lugares.

As paredes estão recheadas de registos históricos de tudo o que ali se passou e cantou ou que esteve relacionado, em especial nos momentos mais fervorosos pré Revolução de Abril.

Vislumbra-se as cartas de Zeca Afonso à “Música Velha”, uma das quais enriquecida pelo poema Grândola. A fotografia do “1.º encontro da música portuguesa”, 29 de março de 1974, no Coliseu dos Recreios de Lisboa e a listagem de canções submetidas à aprovação da PIDE, arquivo retirado da Torre do Tombo.

As paredes dão palco ao cartaz do eterno e mítico espetáculo de 1964 e do erro de topografia nele contido. “Erradamente aparece o nome de José Leite, por baixo de Carlos Paredes. Era ciclista e não músico (era suposto ser o Fernando Alvim), mas já estava impresso e não houve tempo para mudar”, gracejou.

Os olhos de quem ali entra deparam-se igualmente com a célebre fotografia de Patrick Ulmann que capturou os passos de José Afonso, José Mário Branco e Francisco Fanhais, de braços dados, nas gravações feitas no Castelo d’Hérouville, em 1971.

E por fim, não poderia faltar o que deu origem a toda esta fama. Bem percetível, salta à vista a senha do 25 de Abril de 1974.

“Grândola Vila Morena”.