Um século depois das “aparições”, a 13 de maio de 1917, que o Papa Francisco vai festejar a Fátima, continuam a existir dúvidas e críticas sobre o que aconteceu aos três pastorinhos, Jacinta, Francisco e Lúcia, e continuam a ser milhares os peregrinos que vão rezar à Cova da Iria.
Fátima, como escreveram António Marujo e Rui Paulo da Cruz no livro “A Senhora de Maio” (Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2017), “viria a ter uma relação profunda com questões ideológicas e políticas que marcaram longas décadas do século XX: a oposição entre catolicismo e República, o aproveitamento político do Estado Novo, o anticomunismo, a guerra e a paz”.
As “aparições” aconteceram há 100 anos num país pobre, em crise política, económica e social, abalado pela guerra e pela tensão entre a República e a Igreja, num ambiente fortemente anticlerical.
Portugal estava em guerra, com milhares de soldados portugueses na frente de batalha da I Guerra Mundial, em França, e a relação de Fátima com o país (e com o Mundo) foi mudando ao longo do tempo.
Se a I República alimentou a tensão, expulsou os jesuítas, fez uma lei de separação do Estado da Igreja, a ditadura que saiu do golpe de 1926, mais tarde personificado por António de Oliveira Salazar, pacificou as relações com a Santa Sé e não só – aproximou-se.
Aproximou-se tanto que os estudiosos apontam o aproveitamento político de Fátima pelo Estado Novo, liderado durante décadas por Salazar.
Salazar foi um católico fervoroso que se fez eleger deputado pelo Centro Católico Português, mas não foi muitas vezes à Cova da Iria.
As simpatias da Igreja e de Lúcia causaram incómodo entre os católicos portugueses, em especial os “não comprometidos”, como escrevem António Marujo e Rui Paulo da Cruz no seu livro.
E descrevem um episódio que só ficou conhecido há poucos anos: Lúcia enviou um cartão ao cardeal Cerejeira, antes das eleições de 1945, em que escreveu que “Salazar é a pessoa por Ele escolhida para continuar a governar”. "Ele" era Deus.
Décadas depois, Fátima serviu de local de peregrinação, na fé, na esperança e no luto, de milhares de pessoas que viram partir os seus familiares para a guerra colonial, de 1961 a 1974, onde tantos milhares morreram ou ficaram estropiados.
Entre os setores católicos surgiram as críticas à atitude da Igreja, e dos responsáveis de Fátima, perante a guerra do Ultramar.
A referência à “conversão da Rússia”, uma das partes do chamado “segredo de Fátima”, não é referida nos primeiros interrogatórios a Jacinta, Francisco e Lúcia – o que só acontece nos anos 20. Em síntese, só com a consagração do Mundo ao Imaculado Coração de Maria a Rússia se converteria e seriam evitadas outras guerras, mas essa visão não se confirmou.
Esta é, porém, uma das polémicas, mesmo dentro da Igreja Católica, relacionadas com os acontecimentos na Cova da Iria, com acusações de manipulação da versão de Lúcia.
A “Revolução dos Cravos” de 1974 passou e o culto mariano em Fátima resistiu. Não sem se terem registado alguns episódios mais ou menos tensos, mais ou menos pitorescos.
Durante o “Verão Quente”, houve ameaças de nacionalização do santuário e a LUAR (Liga de Unidade e Ação Revolucionária) também quis, sem êxito, ocupar o hospital/albergue.
Menos polémico, por ser mais incontroverso entre os católicos, pelo pendor ateu e anticristão do leninismo, Fátima foi associada depois ao discurso anticomunista, em plena Guerra Fria entre os Estados Unidos e a União Soviética.
Nos anos 80 e 90, a referência à “conversão da Rússia”, uma das partes do chamado segredo de Fátima, e um Papa polaco, Karol Woytila (João Paulo II), ajudaram a encher o Santuário e dar importância à Cova da Iria.
A 13 de maio de 1990, Joachim Meisner, da antiga RDA, mais tarde cardeal de Colónia, foi o convidado para a peregrinação para “agradecer a Maria” a “obra de conversão” que, partindo de Fátima, tomou debaixo da sua especial proteção o Leste Europeu”.
Com a queda do Muro de Berlim – há um pequeno monumento com um pedaço do muro no Santuário - e com o fim da União Soviética perde-se a retórica anticomunista, ganhando relevância a palavra e as orações pela paz no Mundo.
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