Theresa May fica para a história como a primeira-ministra que assinou a carta com que o Reino Unido informa formalmente a União Europeia da sua decisão de saída. Se o nome é o dela, a carta propriamente dita tornou-se hoje num dos documentos que a História recordará quando se falar da Europa, do projeto europeu e das relações entre Reino Unido e UE de 2017 em diante. Esta é a versão integral da carta, tal como publicada no site do governo britânico.
"No passado dia 23 de junho, o povo do Reino Unido votou na sua saída da União Europeia. Como afirmei anteriormente, essa decisão não foi uma rejeição dos valores que partilhamos enquanto Europeus. Também não foi uma tentativa de causar dano à União Europeia ou aos restantes estados-membros. Pelo contrário: o Reino Unido quer que a União Europeia tenha sucesso e prospere. Ao invés, o referendo foi um voto para restaurar, conforme queiramos, a nossa auto-determinação. Estamos a deixar a União Europeia, mas não a Europa – e queremos continuar a ser parceiros e aliados dos nossos amigos do continente.
No início deste mês, o Parlamento do Reino Unido confirmou o resultado do referendo ao votar, com maiorias claras e convincentes, em ambas as suas câmaras, a Lei da União Europeia (Notificação de Retirada). A Lei foi aprovada pelo Parlamento no dia 13 de março e recebeu Consentimento Real de Sua Majestade, a Rainha, e tornou-se numa Lei Orgânica no dia 16 de março.
Assim sendo, hoje escrevo para que a decisão democrática do povo do Reino Unido tenha efeito. Através desta, notifico o Conselho Europeu, de acordo com o Artigo 50(2) do Tratado da União Europeia, da intenção do Reino Unido de se retirar da União Europeia. Ademais, em concordância com o mesmo Artigo 50(2), conforme aplicado pelo Artigo 106a do Tratado que institui a Comunidade Europeia da Energia Atómica, notifico através desta o Conselho Europeu da intenção do Reino Unido de se retirar da Comunidade Europeia da Energia Atómica. Quaisquer referências à União Europeia nesta missiva deverão, portanto, ser encaradas como contendo uma referência à Comunidade Europeia da Energia Atómica.
Esta carta detalha a abordagem do Governo de Sua Majestade aos diálogos que teremos sobre a saída do Reino Unido da União Europeia e sobre a parceria especial e profunda que esperamos ter – enquanto vosso amigo próximo e vizinho – com a União Europeia, assim que nos retiremos. Acreditamos que estes objetivos vão de encontro aos interesses não só do Reino Unido como também da União Europeia e do resto do mundo.
É do maior interesse, tanto do Reino Unido como da União Europeia, que utilizemos o processo que se segue como forma de atingir estes objetivos de maneira justa e organizada, e com tão poucas perturbações, de ambos os lados, quanto possível. Queremos assegurar-nos de que a Europa permanece forte e próspera, capaz de projetar os seus valores, liderar o mundo, e defender-se de ameaças à sua segurança. Queremos que o Reino Unido, através de uma nova parceria especial e profunda com uma União Europeia fortalecida, tenha o seu papel no que toca a alcançar estes objetivos. Assim sendo, acreditamos que é necessário chegar a consenso com os termos da nossa futura parceria, juntamente com os da nossa retirada da União Europeia.
O Governo quer abordar os nossos diálogos com ambição, dando aos cidadãos e empresas no Reino Unido e na União Europeia – e até a países terceiros, por todo o mundo – tanta segurança quanto possível, o mais cedo possível.
Gostaria de propor alguns princípios que poderão auxiliar a formar os nossos diálogos futuros mas, antes de o fazer, devo informar-vos sobre o processo que iremos empreender aqui, no Reino Unido.
[O processo no Reino Unido]
Conforme anunciei, o Governo irá adotar legislação que irá revogar a Lei Orgânica – a Lei das Comunidades Europeias de 1972 – que aplica as leis da União Europeia no nosso país. Esta legislação irá, sempre que tal seja prático e apropriado, converter, com efeito, o corpo das leis da União Europeia existentes (o acquis) para as leis do Reino Unido. Isto significa que os cidadãos do Reino Unido e quaisquer cidadãos da União Europeia que tenham negócios no Reino Unido estarão seguros. O Governo irá aconselhar-se sobre como projetar e implementar esta legislação, e publicaremos um Livro Branco amanhã. Também tencionamos levar a votação vários outros projetos de lei que se focam em questões específicas relacionadas com a nossa retirada da União Europeia, também de modo a assegurar continuidade e segurança, especialmente para as empresas. Continuaremos, evidentemente, a cumprir as nossas responsabilidades de estado-membro enquanto continuarmos como membro da União Europeia, e a legislação que propusermos não terá efeito até à nossa saída.
Desde o início do diálogo e durante o mesmo, negociaremos enquanto um Reino Unido, tomando nota dos interesses específicos de cada nação e região do Reino Unido à medida que este decorrer. No que concerne à devolução de poderes ao Reino Unido, iremos consultar plenamente quais poderes deverão residir em Westminster e quais deverão ser devolvidos à Escócia, a Gales e à Irlanda do Norte. Mas a expetativa do Governo é a de que o resultado deste processo seja o de um aumento significativo da capacidade de tomar decisões por parte de cada administração retornada.
[Negociações entre a Europa e o Reino Unido]
O Reino Unido quer acordar com a União Europeia uma parceria especial e profunda que consista tanto em cooperação económica como em questões de segurança. De modo a alcançá-la, acreditamos ser necessário concordar os termos da nossa futura parceria em paralelo com os termos da nossa retirada da União Europeia.
No entanto, se nos retirarmos da União Europeia sem um acordo, a posição de base é a de que teríamos de negociar segundo os termos da Organização Mundial do Comércio. No que diz respeito à questão da segurança, não chegar a acordo significaria que a nossa cooperação na luta contra o crime e o terrorismo seria enfraquecida. Neste cenário, tanto o Reino Unido como a União Europeia teria de lidar com a mudança, mas não é o resultado que ambas as partes devam procurar atingir. Temos, portanto, de trabalhar com afinco de forma a evitar esse resultado.
É por estas razões que queremos ser capazes de acordar uma parceria especial e profunda, tanto em cooperação económica como de segurança, mas também porque queremos ter o nosso papel no que toca a assegurar que a Europa permanece forte e próspera, e capaz de liderar o mundo, projetando os seus valores e defendendo-se de ameaças à sua segurança. E queremos que o Reino Unido tenha o seu papel pleno no que toca a cumprir essa visão para o nosso continente.
[Princípios propostos para os nossos diálogos]
Tendo em vista os diálogos que iremos iniciar em breve, gostaria de sugerir alguns princípios, os quais poderemos acordar, de modo a garantir que o processo se desenrole de forma tão suave e bem sucedida quanto possível.
i. Deveremos dialogar de forma construtiva e respeitosa, com um espírito de cooperação sincera
Desde que me tornei Primeira-Ministra do Reino Unido que vos tenho escutado cuidadosamente, aos chefes de estado da União Europeia e aos Presidentes da Comissão e Parlamento Europeus. É por isso que o Reino Unido não pretende tornar-se membro do mercado único: compreendemos e respeitamos a vossa posição, de que as quatro liberdades do mercado único são indivisíveis e não poderão ser “escolhidas a dedo”. Também compreendemos que a retirada da União Europeia terá consequências para o Reino Unido: sabemos que iremos perder influência sobre as regras que afetam a economia Europeia. Também sabemos que as empresas do Reino Unido irão, ao negociar dentro da União Europeia, ter de se reger pelas regras acordadas pelas instituições das quais já não fazemos parte – tal como as empresas do Reino Unido o fazem noutros mercados mundiais.
ii. Deveremos colocar sempre os nossos cidadãos em primeiro lugar
Existe uma óbvia complexidade nos diálogos que iremos empreender em breve, mas deveremos lembrar-nos de que no seio das nossas conversas estão os interesses dos nossos cidadãos. Existem, por exemplo, muitos cidadãos dos restantes estados-membros a viver no Reino Unido, e cidadãos do Reino Unido a viver em territórios da União Europeia, e deveremos procurar alcançar um acordo precoce sobre os seus direitos.
iii. Deveremos trabalhar no sentido de assegurar um acordo compreensivo
Queremos acordar uma parceria especial e profunda entre o Reino Unido e a União Europeia, tanto no que concerne à cooperação económica como à cooperação em questões de segurança. Necessitaremos de determinar um acordo justo dos direitos e obrigações do Reino Unido enquanto estado-membro em retirada, que esteja de acordo com a lei e o espírito da parceria do Reino Unido com a União Europeia. Mas acreditamos ser necessário acordar os termos da nossa futura parceria juntamente com os termos da nossa retirada da União Europeia.
iv. Deveremos trabalhar de forma a minimizar perturbações e transmitir tanta segurança quanto possível
Investidores, empresas e cidadãos tanto do Reino Unido como dos remanescentes 27 estados-membros – e aqueles de países terceiros de todo o mundo – querem ter a capacidade de planear. De forma a evitar que nos posicionemos à beira do abismo, à medida que mudamos da nossa relação atual para uma parceria futura, os cidadãos e empresas tanto do Reino Unido como da União Europeia beneficiariam de períodos de implementação de forma a se ajustarem, de maneira suave e ordenada, aos novos acordos. Se concordarmos neste princípio numa fase precoce do processo, tal auxiliaria ambos os lados a minimizar perturbações desnecessárias.
v. Em particular, deveremos atentar à relação única do Reino Unido com a República da Irlanda e a importância do processo de paz na Irlanda do Norte
A República da Irlanda é o único estado-membro que faz fronteira terrestre com o Reino Unido. Queremos evitar um regresso a uma fronteira crispada entre os nossos países, de forma a manter a Zona Comum de Viagem existente entre nós, e de forma a assegurar que a retirada do Reino Unido da União Europeia não prejudica a República da Irlanda. Temos, igualmente, uma responsabilidade importante no que diz respeito a assegurarmo-nos de que nada é feito que coloque em causa o processo de paz na Irlanda do Norte, e a continuarmos a manter de pé o Acordo de Belfast.
vi. Deveremos encetar diálogos técnicos em áreas diplomáticas detalhadas o mais cedo possível, mas deveremos dar prioridade aos maiores desafios
Acordar uma abordagem de alto nível às questões que surgirão com a nossa retirada será, evidentemente, uma prioridade precoce. Mas propomos, também, um Acordo de Livre Comércio audacioso e ambicioso entre o Reino Unido e a União Europeia. Este deverá ter uma ambição e escopo maiores do que qualquer acordo antes dele, de forma a que possa cobrir sectores cruciais às nossas economias interligadas, como os serviços financeiros e as indústrias de redes. Tal irá necessitar de diálogos técnicos detalhados, mas dado que o Reino Unido é um estado-membro da União Europeia, ambos os lados possuem estruturas regulatórias e padronizações que condizem já. Deveremos, desse modo, priorizar a forma como iremos gerir a evolução das nossas estruturas regulatórias, para manter um ambiente comercial justo e aberto, e a forma como resolveremos disputas. No que diz respeito ao escopo da nossa parceria – tanto em questões económicas como de segurança – os meus oficiais irão avançar com propostas detalhadas para uma cooperação profunda, vasta e dinâmica.
vii. Deveremos continuar a trabalhar juntos de forma a progredir e proteger os nossos valores Europeus comuns
Talvez agora mais que nunca, o mundo precisa dos valores liberais e democráticos da Europa. Queremos ter o nosso papel no que toca a assegurar que a Europa permanece forte e próspera, e capaz de liderar o mundo, projetar os seus valores e defender-se de ameaças à sua segurança.
[A tarefa que se nos apresenta]
Tal como referi, o Governo do Reino Unido quer acordar uma parceria especial e profunda entre o Reino Unido e a União Europeia, que incida tanto na cooperação económica como em questões de segurança. Numa altura em que o crescimento do comércio global diminui e existem sinais de que instintos proteccionistas estão a aumentar em várias partes do mundo, a Europa tem a responsabilidade de se erguer pelo comércio livre, tendo por base o interesse de todos os nossos cidadãos. Da mesma forma, a segurança da Europa está mais frágil hoje que em qualquer outra altura desde o fim da Guerra Fria. Enfraquecer a nossa cooperação no que diz respeito à prosperidade e protecção dos nossos cidadãos seria um erro custoso. Os objetivos do Reino Unido para a nossa parceria futura continuam a ser os mesmos que defini no meu discurso no Lancaster House, a 17 de janeiro, e no Livro Branco subsequente, publicado a 2 de fevereiro.
Reconhecemos que será um desafio alcançar um acordo tão compreensivo dentro do período de dois anos determinado para os diálogos sobre a retirada, no Tratado. Mas acreditamos que é necessário acordar os termos da nossa parceria futura juntamente com os termos da nossa retirada do Reino Unido. Iremos iniciar estes diálogos de uma posição privilegiada – alinhamento a nível regulatório, confiança nas instituições vizinhas, e um espírito de cooperação que dura desde há décadas. É por estas razões, e porque a parceria futura entre o Reino Unido e a União Europeia é de tamanha importância para ambos os lados, que estou certa de que será atingido um acordo dentro do período de tempo determinado pelo Tratado.
A tarefa que se nos apresenta é significativa mas não deverá estar para além de nós. Afinal de contas, as instituições e os líderes da União Europeia tiveram sucesso ao juntar um continente marcado pela guerra numa união de nações pacífica, e suportaram a transição de ditaduras para democracias. Juntos, sei que somos capazes de chegar a acordo sobre os direitos e obrigações do Reino Unido enquanto estado-membro cessante, à medida que estabelecemos uma parceria especial e profunda que contribui para a prosperidade, segurança e poder à escala global do nosso continente."
Tradução realizada por Paulo André Cecílio
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