Tem um mundo de histórias e uma conversa de algumas horas sabe a pouco para conhecer as oito décadas de vida do terceiro filho de Marcello Caetano.

Miguel Caetano tinha dez anos quando acabou a Segunda Guerra Mundial e lembra-se de estar na bicha com as senhas para o racionamento e de fazer com a mãe e os irmãos uma espécie de cola caseira com farinha e água para pincelar as janelas da casa e evitar que, em caso de bombardeamentos, os vidros se estilhaçassem.

Cresceu entre o autoritarismo e a profunda formação cristã do pai e a liberdade do avô materno João de Barros, republicano, democrata e maçon. Como o pai (e o avô), licenciou-se em Direito, mas foi em planeamento regional e na organização de empresas que se especializou.

Para Miguel Caetano, o 25 de Abril foi ambíguo: de um lado, o Estado Novo, a queda do pai, o exílio. Do outro, a alternativa, a vontade de aproximar Portugal dos países da Europa mais desenvolvidos, de encontrar novos caminhos. Não queria uma rutura violenta.

As divergências entre pai e filho crescem à medida que se aproxima a queda do regime: «Após o jantar […] o pai ia com o avô para uma sala mais pequena, separada por uma porta de fole, onde ficavam na conversa. […] O tom das conversas era por diversas vezes de discussão, principalmente nos últimos tempos de governo», conta Jorge, o mais velho dos oito filhos varões de Miguel, num pequeno livro de memórias editado para celebrar o centenário do avô Marcello. [Ver testemunhos completos no texto anexo].

Miguel Caetano não gosta de falar da revolução de 74, acredita que os julgamentos estão feitos e que a história é para os historiadores.

Na política, esteve ao lado de Salgado Zenha e de Ramalho Eanes. Mas nem por isso se sente próximo deste PS. Hoje, e depois de ter estado na fundação da Universidade Atlântica, ocupa-se sobretudo da organização do espólio documental do seu pai e gere a utilização do Arquivo Particular de Marcello Caetano, que se encontra na Torre do Tombo.

Quando lhe pedi esta entrevista, afirmou que não tinha particular interesse em falar sobre o 25 de Abril e que não lhe era fácil falar sobre o período do Marcelismo, tinha de ter cautela. Porquê, passados mais de 40 anos?

Pela responsabilidade que traz e porque é impossível evitar uma certa personalização da história, prefiro deixar para os historiadores a avaliação do meu pai como político. Pensava que a civilização europeia de matriz cristã era a que devia ser defendida, embora tivesse consciência de todas as barbaridades cometidas ao longo dos séculos, “pela Fé e pelo Império”. Procurou sempre compreender o passado no contexto da época. Encarava a política colonial numa perspetiva histórica, evolutiva, o que o levou a visitar as colónias, que nunca gostou de chamar províncias ultramarinas, e o Brasil com grande assiduidade. Não aceitava a revolução soviética e a recusa da subversão fê-lo sempre aceitar a repressão do Partido Comunista, que considerava estar ao serviço duma organização internacional para estender os seus domínios. Eram inimigos, mas respeitava-os na coerência das suas convicções.

Pedro Feytor Pinto, diretor de Informação de Marcello Caetano, disse-me que o seu pai, se fosse um animal, seria uma águia. E depois fez a afirmação que deu título à entrevista: «Marcello era muito mais às direitas do que Salazar». Quer comentar?

Podia ser tanta coisa, podia ser uma águia, podia ser um leão… Dizer que era mais à direita que Salazar, era preciso conhecer o pensamento de Salazar. Agora, Salazar era muito mais conservador que o meu pai e isso viu-se quando o meu pai foi ministro da Presidência, era muito mais viajado, conhecia a Europa, África, quando falava das coisas não falava de cor. Era um homem preparado, professor de Direito muito considerado em Portugal e no estrangeiro, e isso dava-lhe outra visão, tinha outra abertura ao mundo. Mas tinha, ou talvez por isso, por ser professor, um espírito pedagógico permanente e isso criou nele uma tendência de ver quase todos como alunos, não aceitava bem que lhe dissessem o que fazer. Era um homem de convicções, mas procurava compreender as transformações que se iam passando no mundo. O facto de compreender não queria dizer que concordasse.

O meu pai era uma pessoa austera e autoritária. Mas tinha um sentido de justiça e de respeito pela responsabilidade de cada um.

Como era a sua relação com o seu pai?

O meu pai era uma pessoa austera e autoritária. Mas tinha um sentido de justiça e de respeito pela responsabilidade de cada um. Não exigia nada aos outros que não exigisse primeiro a si. Dada a sua inteligência, a sua capacidade de trabalho, não era fácil o convívio. Na minha relação com ele eu era simultaneamente tímido e autónomo. Sentia-me pouco à vontade para falar com ele, mas era-me dada uma grande margem de liberdade.

Falavam de política em casa?

Em política, nesse sentido, não. O meu pai não trazia para casa questões políticas, mas dizia o que pensava sobre as coisas. Ouvíamo-lo falar com várias pessoas e sabíamos a opinião que tinha. Mas não havia doutrinação política lá em casa. Havia valores, isso sim. A sua profunda formação cristã levava-o a falar-nos do corporativismo como uma doutrina assente nas Encíclicas e na tradição portuguesa das corporações medievais. Durante a guerra, a de 39-45, que acabou quando eu fiz dez anos, sempre o ouvi defender os nossos aliados históricos, os ingleses.

Que memórias tem da Segunda Guerra Mundial?

Em Lisboa, lembro-me que andávamos a ajudar a mãe a colocar pasta de papel nas janelas, porque dizia-se que se houvesse um bombardeamento os vidros podiam estilhaçar e aquilo era com uma cola que se fazia em casa, com água e farinha, penso eu. E lembro-me muito bem do racionamento, e de ir para a bicha com as senhas para guardar lugar até chegar a empregada.

Algum vez receou que voltasse a haver guerra?

Em guerra vivemos nós.

Agora, quem é que teve razão? Lá que não houve caminho, não houve, mas também não sabemos se pela dinâmica que propúnhamos íamos lá. O problema foi a descolonização, tudo o resto teria sido resolvido, mas sem a guerra colonial.

Quando é que percebeu que defendia ideias diferentes das do seu pai?

Não havia propriamente um confronto de ideias, e houve vários períodos da minha atividade que coincidiram com o tempo em que o meu pai não estava na política e em 68 até houve uma aproximação. Mas eu era parte de uma geração que entendeu sempre que era possível fazer melhor. Não escolhemos fazer uma revolução, mas apostámos que a transformação de Portugal passava por agarrar todas as oportunidades de fazer coisas novas, de encontrar novos caminhos, que nos conduzissem a ser um país mais moderno, através de mais criação de riqueza e da sua melhor distribuição.

Quando começa a afastar-se?

A partir da eleição do presidente da República, em 1972. Na primeira fase ele está interessadíssimo em saber o que o meu grupo quer, falamos muito sobre o assunto.

E o que queria o seu grupo?

Houve uma transformação de movimentos ligados à igreja, com percursos diferentes. O meu grupo convenceu-se que era possível e desejável transformar a sociedade portuguesa pelo desenvolvimento económico, pelos movimentos cívicos, pelas cooperativas e envolvemo-nos nisso. Evidente que na minha idade eu achava que se não fosse por esse caminho, não havia caminho. Agora, quem é que teve razão? Lá que não houve caminho, não houve, mas também não sabemos se pela dinâmica que propúnhamos íamos lá. O problema foi a descolonização, tudo o resto teria sido resolvido, mas sem a guerra colonial. Nós também não tínhamos solução para a guerra colonial. E aí dá-se um impasse: o meu pai achava que tinha de fechar a torneira, nós achávamos que fechando a torneira não se ia a lado nenhum.

créditos: Paulo Rascão | Madremedia

O que o levou a seguir Direito, como o seu pai?

Tinha de escolher. E como a Matemática e a Física não eram cadeiras da minha especialidade, fui para Letras. Eu gostava de História e esse teria sido o caminho natural, mas o meu pai, que também pensou em ir para História, teve uma conversa comigo sobre o futuro em termos de escolha profissional, que era limitado, e recomendou-me que fizesse Direito e, depois, se quisesse, História. E convenceu-me.

Arrependeu-se?

Cheguei a Direito e rapidamente percebi que havia temas que me interessavam e outros que não. O jurídico, a barra – havia colegas que passavam horas a discutir casos -, não me interessava. Só fui a tribunal porque no estágio era obrigatório - casos primários, não tínhamos que fazer nada de especial. No fim, o juiz perguntava: e o sôtor, o que é que tem a dizer? E ai de nós se nos atrevêssemos a dizer outra coisa que não «a justiça do costume», éramos postos na ordem. Mas gostava de Direito Público e de Economia Política. O meu patrono foi o Adriano Moreira, uma pessoa muito lá de casa, e estava nessa altura a advogar. E, ou porque era assim ou porque percebeu que eu tinha qualquer jeito para isso, levou-me a assistir a coisas que tinham dimensão económica: arbitragem, assuntos de empresários, assembleias gerais, o que para mim foi muito bom.

No dia em que entrei para a faculdade o meu pai chamou-me e entregou-me a chave de casa. A partir daí era responsável pela gestão do meu tempo.

Como era ser o filho de Marcello Caetano?

Nunca tive problemas com isso, mas ouvia algumas bocas dos professores, por um lado, e era protegido pelos contínuos, por outro. Nunca fui bom aluno – tímido, distraído, mais interessado no mundo do que nos estudos -, mas acabei por entrar para a Faculdade de Direito pouco depois de fazer 17 anos, não me sentia desajustado. Levava do liceu a frequência das Juventudes Católicas e, depois de dois anos a marcar passo, alguma aptidão para o desporto ganha nos Centros Especiais da Mocidade Portuguesa. No dia em que entrei para a faculdade o meu pai chamou-me e entregou-me a chave de casa. A partir daí era responsável pela gestão do meu tempo.

O seu pai era um homem controlador?

Nunca controlou as nossas saídas depois do jantar, praticamente diárias. Eu e os meus irmãos frequentávamos os grupos dos cafés do Saldanha e o meu grupo da faculdade gostava de estudar em cafés, à tarde (só tínhamos aulas de manhã) e nunca o meu pai procurou controlar essas escolhas. Claro que, além de algum estudo, quando sobrava dinheiro ainda jogávamos bilhar ou íamos a um cinema de “reprise” ver dois filmes pelo preço de um 2º balcão de estreia. Fui passando nos estudos sem brilho e aproveitava o tempo livre nas instalações da Associação Académica, apertadinhas e com duas mesas de ping-pong e uns matraquilhos, jogos em que me distinguia. Talvez isso tivesse acontecido exactamente por ser uma área em que eu podia ser melhor do que o meu pai, onde eu podia sobressair.

Alguma vez o desafiou para uma partida de ping-pong ou de matraquilhos?

Não. Tínhamos aqui [no Linhó, na sala onde conversamos] uma mesa de ping-pong. Vínhamos para cá nas férias do Verão com a minha Mãe e havia um certo isolamento, por isso jogávamos muito, mas penso que ele nunca quis jogar ping-pong connosco. Gostava muito de andar a pé, fizemos grandes caminhadas pela serra de Sintra, mas, desporto, não. Penso que a vida dele, o dever profissional, não o permitia. Mas acompanhava-nos muito nas nossas atividades, sobretudo o meu irmão João, que competia a nível nacional, e ele tinha um grande orgulho.

Foi na Faculdade que despertou para a política?

Talvez pela minha participação no Grupo Desportivo de Direito, fui convidado para fazer parte de uma lista de centro para concorrer às eleições para a Associação Académica. Dessa lista, que venceu as eleições e exerceu o seu mandato no ano letivo de 1954/55, faziam parte, entre outros, o Álvaro Lara, que veio a ser deputado por Angola à Assembleia Nacional no tempo do Marcelismo, o Rui Cabeçadas e o Vasco Serrano de Castro, conhecidos oposicionistas.

Como reagiu o seu pai?

Pode parecer estranho, mas para mim era evidente que não podia responder ao convite sem falar primeiro com ele, que era professor catedrático daquela Faculdade e político influente do Estado Novo. A conversa não era fácil, mas contei com o apoio discreto da minha mãe para pôr a questão no decorrer do almoço de família. A resposta foi imediata e marcante: «sei que posso contar com o teu sentido de responsabilidade e bom senso». No ano seguinte fui convidado pelo Rui Cabeçadas para fazer parte de uma lista presidida por ele, como vogal da direção e responsável pela secção desportiva. Fomos eleitos, mas somos informados que o Ministério da Educação não homologava o Rui Cabeçadas por razões políticas, o que levou toda a direção a solidarizar-se e a pedir demissão.

Nessa altura, o seu pai já era ministro da Presidência?

Sim. E, apesar de eu nunca ter escondido as minhas atividades, as nossas relações decorriam normalmente. Mesmo quando no ano letivo de 1954/55 as associações reivindicam o direito a organizar autonomamente os campeonatos desportivos e, em desacordo com o Ministério da Educação, vão para a frente, e os seccionistas desportivos, onde eu me incluía, reúnem no IST e se realiza o “Torneio Inter-Associações. Mas em 1956/57, com a associação presidida por António Serra Lopes, sai o Decreto-Lei 40.900, que pretende regulamentar as atividades das Associações Académicas, e provoca um conflito entre o meio académico e político, com os estudantes universitários a irem à Assembleia da República para entregar uma moção contra a sua aplicação. Aí, entendi, tendo em consideração a posição do meu pai, que não me devia envolver nas ações políticas desencadeadas. No final de 57 terminei o curso e acabaram as minhas atividades associativas.

Os problemas de ter ou não ter fé perseguiram-me, mas decidi que o que era importante para mim era viver de acordo com a minha ética e os meus princípios.

Chegou a exercer Direito?

Cheguei a inscrever-me na Ordem dos Advogados e fui trabalhar para o Banco Fonsecas, Santos e Vianna, que mais tarde se fundiu com o Banco Burnay e resultou no Banco Fonsecas & Burnay. Dois anos depois, quando estava em organização o Banco de Fomento Nacional, concorri para técnico do gabinete de estudos e fui admitido como estagiário. Na mesma altura, entrou para o gabinete o João Salgueiro, brilhante aluno do ISCEF, presidente da JUC (Juventude Universitária Católica). Nunca me senti atraído pela JUC, mas estava interessado nas questões do desenvolvimento económico-social e entendia que tinha obrigação moral de intervir. Tinha sido membro da Conferência de S. Vicente de Paulo da minha faculdade, o que me obrigou a confrontar-me com a situação de pobreza de muitas famílias lisboetas. Os problemas de ter ou não ter fé perseguiram-me, mas decidi que o que era importante para mim era viver de acordo com a minha ética e os meus princípios.

Teve uma crise de fé?

Tive várias. A fé, se quiser, a pessoa sente um chamamento e não tem dúvidas. Apesar de eu sido educado nestes princípios, esse forte chamamento não me chegou. Estive em movimentos católicos e fiz grandes esforços para compreender isso. A família do meu avô João de Barros não era católica. Ele tinha outras convicções, era republicano e maçon, mas os valores deles [avô e pai] não se chocavam. O meu avô ia muitas vezes a nossa casa, morávamos perto, no Saldanha, era só atravessar. Nos primeiros tempos, quando éramos crianças, era ele que ia a nossa casa ver os netos; levava-nos revistas e livros, se o meu pai estivesse no escritório ia lá falar-lhe e conversavam. De quinze em quinze dias íamos jantar a casa dos avós Barros e o meu avô João e o meu pai deixavam o problema da religião e da fé de lado e ficavam horas à conversa. O meu pai até assinava a “Mercure de France”, uma revista francesa voltada para as artes e para a literatura, que lhe levava todos os meses, só porque sabia que lhe interessava. Tinham uma relação extraordinária.

Nessa altura, a pessoa mais importante para nós era o meu avô João de Barros. Era professor, reformado, e ia buscar-nos, todos os nossos amigos corriam para ele. O meu pai nunca me foi buscar ao liceu.

Tinha grande proximidade com o seu avô João de Barros?

O meu avô tinha uma biblioteca fantástica e nós trazíamos livros, sempre com uma única condição de depois de os ler os devolvermos. O meu pai foi ministro das Colónias, estava eu no liceu. Nessa altura, a pessoa mais importante para nós era o meu avô João de Barros. Era professor, reformado, e ia buscar-nos, todos os nossos amigos corriam para ele. O meu pai nunca me foi buscar ao liceu.

Era um pai presente, apesar disso?

Não me lembro de ter muitas brincadeiras connosco, mas acompanhava-nos. Quando foi para ministro pôs como condição, se assim se pode dizer, que às oito e meia, hora do jantar, tinha de estar em casa. E foram raras as vezes que isso não aconteceu. Para nós, filhos, isto teve até um inconveniente, porque às vezes estávamos no cinema, o cinema prolongava-se mais, e tínhamos de ir em casa. Perdi o fim de muitos filmes [risos].

Sempre teve consciência política?

Aprendi isso cedo. Quando chegava o Natal, o meu pai pedia-nos ajuda para responder às pessoas que mandavam cartões de Boas Festas, não havia secretariados. Nós escrevíamos os envelopes e ele dizia: «Este ano vão ver que é um ano mau... A vida política é assim». Era porque havia menos cartões para responder, ou seja, a popularidade estava em baixa [risos].

E a sua mãe, como era?

Era ela que nos acompanhava no dia-a-dia. A mãe era uma pessoa que, além de ser mãe, tinha uma abertura e uma transmissão enormes, de tal maneira que todos os colegas e amigos mais chegados se lembram dela. Era sempre uma ouvinte interessada. Além disso, foi uma convertida, converteu-se através de um grupo de amigas. E, a certa altura, dava aulas de catequese em casa a alguns dos nossos colegas. Foi uma coisa marcante. Recordo-me, por exemplo, do Tomaz de Figueiredo, filho do escritor e de uma prima da minha mãe, que mais tarde foi membro activo do Partido Comunista.

Em Setembro de 1968, Marcello Caetano, meu pai, é o novo presidente do Conselho de Ministros. Não me era cómodo ter uma posição de chefia num departamento diretamente dependente dele (...) Em 1970 peço a demissão e volto para o setor privado.

Disse que quando foi para o gabinete de estudo do BFN entrou também João Salgueiro. Ficaram amigos?

Casualmente, eu e João Salgueiro começámos a conversar sobre o que podíamos fazer pelo país, dentro do sistema político em que vivíamos. E propõe-me constituir um pequeno grupo de reflexão. Na altura, a economista Manuela Silva, que tinha sido presidente da Juventude Universitária Católica Feminina, lança um projeto inovador de aplicação de técnicas comunitárias e pede apoio a algumas instituições, entre elas ao banco onde eu trabalhava, e o BFN indica-me como especialista em planeamento regional. O gabinete de estudos tinha cada vez menos interesse, e eu concentrava todos os tempos livres na experiência, até que alguns desentendimentos com a administração me levaram a procurar outro emprego. Fui para a Metalúrgica Duarte Ferreira, no Tramagal. Andei três anos pela província, sem nunca perder contacto com João Salgueiro que, entretanto, tinha sido destacado pelo banco para trabalhar no Secretariado Técnico da Presidência do Conselho, responsável pela elaboração e acompanhamento dos Planos de Fomento, e ele convida-me. Só no II Plano de Fomento, coordenado pelo meu pai, ministro da Presidência, surge a preocupação de definir um modelo de desenvolvimento para Portugal.

O Plano de Fomento estava na dependência da Presidência do Conselho, ou seja, do seu pai. Como lidou com isso?

Aceitei o convite para colaborar com o Secretariado Técnico, organismo central de planeamento económico-social – com uma remuneração inferior à que auferia no setor privado. Fui coordenar um grupo de estudos ad hoc. O objetivo era fazer um diagnóstico e propor uma política no quadro da preparação e execução do III Plano de Fomento. Avançámos para a delimitação de regiões e na criação da orgânica que cria oficialmente as regiões e as sub-regiões, além de termos apresentado uma proposta para uma política de ordenamento do território do Continente a longo prazo, nos aspetos urbanos, industriais e rurais. Em Setembro de 1968, Marcello Caetano, meu pai, é o novo presidente do Conselho de Ministros. Não me era cómodo ter uma posição de chefia num departamento diretamente dependente dele, por se poder prestar a confusões nos meus contactos e por eu sentir que a minha autonomia estava subjectivamente condicionada. Em 1970 peço a demissão e volto para o setor privado.

Mantém o contacto com João Salgueiro?

Sim. Por iniciativa do João Salgueiro, um pequeno grupo começa a reunir-se regulamente no CODES – Cooperativa para o Desenvolvimento Económico e Social, para propor a criação duma associação cívica de reflexão e intervenção, a SEDES - Associação para o Desenvolvimento Económico e Social. O processo de criação não foi pacífico, porque o presidente do Conselho aceitou a ideia inicial do João Salgueiro, mas não concordou com a forma como foi desenvolvida. E aqui, discretamente, participei muito ativamente na preparação e lançamento do que se chamou “Diagnóstico-Projecto da Sociedade Portuguesa”, tal como na preparação e lançamento do “Portugal para onde vais?”. Creio que esses trabalhos tiveram alguma influência na formação de uma geração que, duma forma ou doutra, veio a intervir ativamente na vida do país.

Destaca algum trabalho nessa fase?

Surgiu a oportunidade de trabalhar com João Botequilha, que era empresário e representava os principais acionistas de uma empresa de transportes, e fiz um estudo sobre a participação dos trabalhadores na gestão da empresa que ele dirigia. Criámos uma comissão de trabalhadores, que passou a colaborar com a administração, com o objetivo de a empresa se tornar numa cooperativa em que o capital social era repartido entre os proprietários e os trabalhadores. Até que chegou o 25 de Abril de 1974 e aí, em pouco tempo, o conceito de cogestão foi recusado pelos elementos ligados ao Partido Comunista, mesmo aqueles que tinham integrado a comissão de trabalhadores.

Sempre colaborei com gente que sabia estar ligada ao Partido Comunista, ou a outros partidos de inspiração marxista, desde que os objetivos fossem comuns. Mas não tinha dúvidas sobre a conceção totalitária do Estado que perfilhavam.

Como era a sua relação com o Partido Comunista?

Sempre colaborei com gente que sabia estar ligada ao Partido Comunista, ou a outros partidos de inspiração marxista, desde que os objetivos fossem comuns. Mas não tinha dúvidas sobre a conceção totalitária do Estado que perfilhavam. E ainda hoje me espanto quando vejo, num Estado que perfilha o modelo das democracias ocidentais, atribuir a Ordem da Liberdade a todos aqueles que lutaram contra a ditadura do Estado Novo para a substituir por outro modelo de ditadura. No entanto, sempre defendi que se devia caminhar para uma democracia onde partidos comunistas tivessem o seu lugar, deixassem a clandestinidade. 

O 25 de Abril foi agridoce?

O 25 de Abril foi um momento extremamente difícil e ambíguo. A esperança de que fosse o início da construção duma sociedade mais justa, mais livre, que não se podia transformar em alegria por significar simultaneamente a derrota, a prisão e o exílio do meu Pai. Permitiu acabar com a guerra, com a censura e com a polícia política. Descolonização exemplar não houve, nem sei se podia haver, mas não conseguimos proteger minimamente os interesses dos cidadãos portugueses. Penso que nos anos cinquenta, quando o meu pai foi ministro da Presidência, deixou bem claras as suas opções quanto ao desenvolvimento económico, a industrialização do país, a abertura à Europa. Creio que se tivesse tido oportunidade teria tentado pôr em prática as soluções que defendeu mais em privado para o nosso problema colonial: autonomia progressiva, integração dos quadros locais de todas as raças e etnias no governo e na administração, negociação ainda em contexto de paz.

As pessoas falam num exílio dourado, mas, seja para quem for, há exílios dourados. Primeiro, porque é uma condição inesperada, e até aqueles que julgamos amigos voltam costas, depois porque significa a separação da família, filhos, netos, de tudo.

Com a queda do seu pai veio também o exílio. Como o viveu?

Não foi nada fácil. O meu pai foi para o Brasil e, quando lá chegou, foi convidado para dar aulas na Universidade Gama Filho. Fazia parte das condições de trabalho que, caso o meu pai deixasse de poder trabalhar, por motivo de doença, por exemplo, lhe continuariam a pagar o salário e o apartamento - era uma garantia de reforma -, em troca da doação da sua biblioteca à Universidade. A biblioteca lá está. Ele tinha cá uma biblioteca grande, com livros de Direito, História e romances, e pediu-nos para lha enviarmos. Depois de alguns impedimentos políticos, a expedição foi autorizada. Lembro-me que metemos tudo em caixotes, mas houve posteriormente instruções para verificar se não havia nada que pudesse ser considerado património nacional, abriram os caixotes e tiraram os livros todos para ver se podiam seguir. Não havia nada de mal e lá foram, mas tinha-nos dado uma trabalheira a encaixotar. As pessoas falam num exílio dourado, mas, seja para quem for, há exílios dourados. Primeiro, porque é uma condição inesperada, e até aqueles que julgamos amigos voltam costas, depois porque significa a separação da família, filhos, netos, de tudo.

Foi visitá-lo? Como o encontrou?

Fui duas vezes: logo em 74, pelo seu aniversário, e em 1979. Ficou sempre magoado. Mas as cartas publicadas por Joaquim Veríssimo Serrão no livro “Marcelo Caetano – Confidências no Exílio” dão uma ideia errada e deixaram uma imagem de um homem duro e amargurado, o que também não era verdade. Isso tinha sido escusado. As respostas que ele dá, foi porque foi espicaçado, eram respostas dadas em troca de correspondência, não para serem publicadas na íntegra, ou teria tido o cuidado de responder de outra forma.

Por que motivo ficou sepultado no Brasil?

Deixou isso à nossa [dos filhos] consideração. E naquela altura [Outubro de 1980] penso que não era o momento certo para fazer a trasladação, iria levantar polémica e, provavelmente, iria haver manifestações. Não nos interessava nada criar esse ambiente. Lá no Brasil, por outro lado, ele era consideradíssimo, a comunidade portuguesa homenageou-o e ainda hoje há quem ponha flores no seu túmulo. E não era um tema importante, teria sido muito mais importante qualquer forma de interesse cá ao longo do tempo em que esteve vivo.

Já sem o seu pai no governo, regressa à SEDES…

Voltei à SEDES e começámos a analisar a situação. Depois da queda do “governo Palma Carlos” e do 28 de Setembro, concluímos que estava em curso um processo comandado pelo PCP, com todos os grupos a tentarem manipular os militares, para que a esquerda totalitária ocupasse o poder em Portugal. E concluímos também que o Partido Socialista era o que estava em melhor posição para se opor a esse processo e tentar garantir a existência de um regime democrático. Propusemos que a SEDES fizesse um acordo de aliança transitória com o PS, apoiando-o na luta para conseguirmos o que então chamámos o socialismo em liberdade. Depois de vários episódios, fomos derrotados por um grupo que pretendia que a associação se mantivesse independente.

Foram acusados de um golpe para tentar integrar a SEDES no PS.

O que não era verdade. Alguns de nós afastaram-se e criámos um grupo de reflexão, o SL - Socialismo em Liberdade. E tudo funcionou bem até à vigência do 1º Governo Constitucional, quando alguns dos seus membros começam a ser chamados para ocupar cargos no governo e em empresas públicas e o grupo foi-se desfazendo.

Nessa altura, onde trabalhava?

Passei um momento difícil, em que não conseguia arranjar trabalho, até que o arquiteto Filipe Lopes, então vice-presidente da Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Lisboa, me ofereceu emprego part-time no gabinete de planeamento e programação. Fizeram-se muitos estudos de grande qualidade técnica, mas, tal como já tinha acontecido com outros elaborados antes do 25 de Abril, foram para o lixo. Uns porque tinham sido feitos no tempo dos fascistas, outros porque tinham sido feitos no tempo dos comunas, foi o que me disseram. Mais tarde, as nacionalizações a granel obrigaram alguns membros dos governos a procurar gestores para reorganizar empresas e setores nacionalizados. João Botequilha é convidado para presidente da TAP e para presidir à Comissão Instaladora da Rodoviária Nacional, e convida-me para fazer parte da equipa técnica. E fui também indicado pela Comissão Instaladora para participar num grupo de trabalho ad hoc para preparar as bases do Estatuto das Empresas Públicas. Entendia que tinha obrigação de tentar organizar uma nova realidade, quer ao nível do setor público, quer ao nível empresarial.

Encontrei um mundo de empresas descapitalizadas, dependentes da banca nacionalizada, numa altura em que as taxas de inflação se situavam entre os 20% e os 30% e os bancos cobravam juros na ordem dos 25% a 35%.

Em que estado encontrou as empresas públicas?

No final dos anos setenta, fui convidado para assessor do secretário de Estado do Planeamento e uma das minhas missões era assegurar a articulação do Instituto das Participações do Estado com a orgânica de planeamento. Não tive contacto direto com as empresas que constituíam o universo do IPE, mas o objetivo era pôr a casa em ordem. Entre 1980 e 1988, envolvi-me em duas empresas com resultados bem diferentes nas negociações financeiras. Encontrei um mundo de empresas descapitalizadas, dependentes da banca nacionalizada, numa altura em que as taxas de inflação se situavam entre os 20% e os 30% e os bancos cobravam juros na ordem dos 25% a 35%. Se reorganizar uma empresa, fixar objetivos, definir funções e métodos de trabalho, estava dentro das minhas competências, na gestão financeira eu era inexperiente. Num dos casos, encontrei esquemas de empréstimos concedidos em que o gestor do banco recebia uma comissão e vi o interesse desse mesmo gestor bancário na realização de negócios que eram prejudiciais à empresa em questão. Tentei, sem sucesso, apresentar a situação à administração do banco, que recusou tomar conhecimento. No outro caso, pelo contrário, encontrei gestores competentes e sérios, empenhados em colaborar na procura e concretização de soluções que fossem do interesse de ambas as partes.

(...) naquela altura houve algo parecido com a democratização da corrupção. De repente, parece que se descobriu que todos tinham direito a isso

Parece que não mudou muita coisa na banca…

É evidente que toda a banca foi sempre permeável a esse tipo de situações. Simplesmente, havia umas mais estruturadas do que outras. E a seguir ao 25 de Abril era uma prática quase generalizada, digamos que as hierarquias estavam mal escolhidas, era fácil fazer, não havia controlo. Hoje é outro género, naquela altura houve algo parecido com a democratização da corrupção. De repente, parece que se descobriu que todos tinham direito a isso. Encontrei um ambiente incontrolado. Quando tentei resolver, percebi que estava tudo cheio de pequenos interesses.

O problema é que um país que não cria riqueza não pode ter uma banca sólida. Mas, privatizar tudo, são excessos

É contra ou a favor das privatizações?

Penso que o Estado, diretamente ou através do sistema de concessões, deve controlar tudo aquilo que é necessário para garantir o bem comum. Isso implica que se definam objetivos, que se proponham estratégias e se apresentem planos de médio e longo prazo com a clara definição do que se entende por setor público ou para-público.

Um banco público, como a CGD, deveria financiar a economia, pessoas e empresas, ou não?

Começo por dizer que acho que é útil para o país que exista um banco público, bem gerido. Quanto ao financiamento da economia, temos que ter consciência que o tecido empresarial está fragilizado, com baixas rentabilidades. Financiar implica que haja projetos, não posso dizer em abstrato que os bancos devem financiar a economia. Tem que se produzir riqueza e essa riqueza serve para pagar à banca o empréstimo, os impostos, etc. O problema é que um país que não cria riqueza não pode ter uma banca sólida. Mas, privatizar tudo, são excessos.

Vivemos destes excessos, de ímpetos?

A minha geração propôs uma alternativa. Não fizemos nada que não tivesse um suporte forte por trás, um estudo a explicar para que serve, porque é que vamos fazer assim, o que se vai conseguir com isso, o que país vai beneficiar. As decisões eram tomadas consoante o interesse público.

Acredita que a sua geração de políticos era diferente da que está hoje no poder?

Na geração anterior à nossa, no caso do meu pai, por exemplo, o que se passou foi que se criou uma escola de discípulos. E ele sentia isso, que os tinha formado. Na transição, do fim do Estado Novo à consolidação do regime democrático, que é quando a minha geração vai para a política, não havia políticos de carreira. Havia independentes e chefes de grupo que tinham uma atitude integradora. E, mesmo com opiniões diferentes, havia uma enorme amizade. O nosso relacionamento de grupo era tão forte que a maior parte ainda hoje mantém relações de amizade. Os políticos de então, na maioria, continuaram a contribuir sem se entregar ao jogo do poder.

E mesmo o PS não sobreviveu a Mário Soares, que foi sempre quem controlou o partido: jornais, financiamentos, políticos, controlava tudo

Estamos na fase em que é necessário criar novos movimentos ou partidos?

Nunca saímos. O Dr. Mário Soares é que apontou para determinado modelo. E mesmo o PS não sobreviveu a Mário Soares, que foi sempre quem controlou o partido: jornais, financiamentos, políticos, controlava tudo. Há os que foram criados nesse meio e conseguiram afirmar-se, mas não são propriamente discípulos. É necessário criar movimentos cívicos e pensar que nem toda a atividade política tem de ser remunerada. É preciso questionar os partidos e os confrontá-los com a realidade. Os partidos são necessários à democracia, mas não a esgotam e as próprias escolhas eleitorais deveriam permitir o voto mais personalizado, não forçosamente por lista, e aceitar candidaturas independentes. Conheço os defeitos destes sistemas, mas há momentos que só mudanças profundas trazem novas dinâmicas sociais.

créditos: Paulo Rascão | Madremedia

Esteve na génese do MRD, que deu origem ao PRD (Partido Renovador Democrático), apoiado por Ramalho Eanes. Como conheceu Eanes?

Não o conhecia, e devo dizer que não votei nele para presidente nas primeiras eleições. Mas pensava que o movimento que levou ao 25 de Novembro tinha sido importante, porque achava que a desorganização estava a atingir níveis inadmissíveis. Quando foi o 25 de Novembro estávamos a trabalhar no estatuto das empresas públicas, numa reunião sobre o projeto de estatutos a decorrer na TAP, coordenado por João Botequilha, e começámos a ver carros blindados a entrar por ali a dentro e pensámos: «bonito serviço, como é que saímos daqui?!». Afinal não aconteceu nada, porque já estava tudo mais ou menos arrumado. Curiosamente, vim a conhecer Eanes através do João Botequilha.

Foi, então, João Botequilha que os apresentou?

Já depois de eleito, Eanes queria fazer uma reorganização da casa civil da presidência da República, uma reestruturação dos serviços, e falou com o João Botequilha. E o Botequilha desafiou-me a mim. Fizemos duas ou três reuniões com Eanes e entregámos o trabalho. Mais tarde, volta a convidar Botequilha, desta vez para presidir à CNARPE – Comissão Nacional para a Reeleição do Presidente Eanes. E o João Botequilha constituiu uma equipa, cuja direção era ele, eu e José Rabaça, militante n.º100 do PS, indicado pelo próprio Eanes. Sempre juntos, criámos uma relação magnífica durante essa campanha, onde o Eanes aparecia pouco, porque tinha que andar a fazer comícios e, ao mesmo tempo, era presidente da República.

E voltou a ganhar as eleições...

Como tínhamos apoiado publicamente a sua eleição, entendemos que nos devíamos colocar à sua disposição durante o mandato, o que ele gostou. De maneira que passámos a ser um dos grupos – ele tinha vários – que ia ouvindo em Belém. Nos anos oitenta, as minhas grandes ligações políticas, que se tornaram amizades pessoais, foram com Eanes e Salgado Zenha.

Eanes e Zenha, que acabam por se juntar.

A certa altura aparece o MRD – Movimento Renovador Democrático, porque os partidos estavam mal e, até pela crispação da revisão constitucional, começa a haver uma certa descrença da opinião pública sobre a maneira como a democracia estava a funcionar. Muitos tinham estado ligados à CNARPE e a referência era Ramalho Eanes, que começa a ser pressionado para criar um movimento político. O objetivo inicial era apresentar um projeto de sociedade e apoiar um candidato às eleições presidenciais seguintes.

O movimento acaba por se transformar num partido político. Porquê?

Há um congresso em Troia e fica decidido que o nosso grupo, mais íntimo de Belém, não deve estar presente para não se pensar que estávamos lá, os amigos do presidente, para influenciar. A mesa é presidida pelo Zé Carlos Vasconcelos (que viria a ser deputado), que, logo de manhã, põe à votação a transformação do movimento em partido. Perderam, mas ele, que era uma pessoa bastante persistente, reformulou a questão e, à tarde, nova votação. Dessa vez ganham. É assim que nasce o PRD, clandestinamente, em Troia, fora daquilo que tínhamos pensado.

As sondagens davam-nos 8%, mas chegámos às eleições e tivemos 18%, o que ninguém previa. Foi um estrondo tremendo, porque o partido não estava preparado para isso

E Ramalho Eanes, o que pensava sobre isto tudo?

Estava numa posição difícil. E entramos numa fase complicada. Eu era dos que estavam contra o partido e, a dada altura, é-me pedido para coordenar a organização do primeiro congresso do PRD ao mais alto nível. Entretanto, há os episódios das eleições antecipadas. Não era altura de pormos nada em causa, mas começámos a ver o perigo dos jogos de poder próprios dos partidos. As sondagens davam-nos 8%, mas chegámos às eleições e tivemos 18%, o que ninguém previa. Foi um estrondo tremendo, porque o partido não estava preparado para isso.

Foi como se, de repente, tivessem nascido gémeos.

[risos] Tal e qual. Não tínhamos apresentado listas para deputados a contar com 18% e, entre as pessoas elegíveis e os simpatizantes, estava tudo eleito. Como a ideia inicial era apoiar um candidato à presidência da República, já tinha sido constituído um grupo de trabalho, esse claramente em Belém, visto que o presidente queria saber quem é que iria apoiar. Acabou por ser escolhido o coronel Costa Brás, que tinha organizado as primeiras eleições livres depois do 25 de Abril. Mas, com 18%, houve que entendesse que Costa Brás era um candidato a meio termo, era preciso alguém mais forte. Como grande parte do PRD eram dissidentes do Partido Socialista, gente descontente com a vitória dos soaristas e com o afastamento de Zenha do PS, decide-se que o candidato passaria a ser Salgado Zenha, por quem Eanes tinha grande consideração.

E Costa Brás, como reagiu?

Ficou muito magoado. Eu tinha uma excelente relação com Salgado Zenha, trabalhava com ele no Instituto de Estudos para o Desenvolvimento, apoiado pela Fundação Friedrich Erbert, mas nós, o Botequilha, o Rabaça e eu, decidimos que não poderíamos apoiá-lo depois de publicamente nos termos comprometido com Costa Brás. Era preciso dizer isto a Zenha e a Eanes. Fiquei eu de ir explicar a Zenha, que estava no Morelinho, perto do Linhó, onde tinha casa. Recebeu-me muito bem e disse-me logo que não tínhamos de explicar nada. O assunto ficou ultrapassado.

E a Ramalho Eanes, quem foi comunicar a decisão?

Eanes levou a mal e só muito depois ultrapassou o mal-estar que se criou. Ficámos a assistir a tudo de fora, um pouco incompreendidos e criticados. Eanes ficou, sobretudo, sentido por ter sido eu a contar-lhe. Mas, e esta é a verdade, tirámos à sorte (no jogo das moedas) para decidir quem iria contar a Ramalho Eanes. Perdi, coube-me a mim a fazê-lo.

Voltemos a Zenha. Como o conheceu e como o via?

Só conheci pessoalmente Francisco Salgado Zenha depois do 25 de Abril. Nem éramos da mesma geração, ele tinha mais 12 anos do que eu. Zenha era uma figura admirada pela sua inteligência, coragem e coerência, mas não me era especialmente simpático, parecia-me muito agressivo, rebarbativo e sarcástico. Em 1974, foi à SEDES e aminha ideia manteve-se. O Socialismo em Liberdade reunia regularmente e começaram a participar outras pessoas, como o António Reis ou António Barreto. Uma noite, recebemos o Zenha, o Jaime Gama e o José Luís Nunes. E conheci um Zenha interessado, simpático e até conciliador. O ano de 1974 e os primeiros meses de 1975 tinham projetado Salgado Zenha como a segunda figura do Partido Socialista, surgia como político de grandes princípios, pouco dado às cedências exigidas pelas táticas de aparelho, jogo em que Soares era mestre. Zenha era o líder parlamentar do PS e foi eleito presidente do Conselho Nacional do Plano. Pouco tempo depois, quis falar comigo: «Falei com a Manuela Silva para saber quem me podia ajudar a instalar o Conselho Nacional do Plano e a preparar os regulamentos necessários ao seu funcionamento e ela disse-me que você é que sabia disso. Quero convidá-lo para apoiar a Comissão Instaladora». Como ambos éramos tímidos, a conversa decorreu com um certo formalismo, mas foi assim que começou uma relação de confiança que se tornou amizade.

Como se juntou com Zenha num instituto apoiado pela Fundação Friedrich Erbert?

Um dia, chegou à reunião semanal e disse-nos: «Venho duma visita à Alemanha, onde a Fundação Friedrich Erbert me propôs a criação em Portugal de um instituto de estudos. Teremos o apoio financeiro e o apoio nas relações internacionais. Só aceito se vocês o quiserem organizar comigo.» Iniciámos a atividade no Verão de 1978, na Av. Duque d’Ávila. Enquanto preparávamos o plano de estudos e a formação de equipas, Salgado Zenha transmitia o seu acordo à Fundação Friedrich Erbert e preparava com Jorge Sampaio e em combinação com Mário Soares, secretário-geral do PS, os estatutos do IED e a organização do grupo de sócios fundadores.

A fundação apoiava o PS?

Tratava-se de matéria delicada, a fundação apoiava a área do socialismo democrático em Portugal através do PS e os fundadores de todas as organizações criadas em Portugal com o seu apoio financeiro eram maioritariamente da confiança do partido, personalizado no Dr. Mário Soares. Já então existiam as fundações José Fontana, Antero de Quental e Azedo Gneco, demasiado integradas no PS. Nem a Friedrich Erbert, nem nós, pretendíamos um esquema semelhante e, por isso, definimos a nossa autonomia de funcionamento. Coube a Zenha negociar com as diversas partes os enquadramentos do instituto, e lembro-me de, uma vez, eu ter insistido na clarificação da tal autonomia, o que levou Zenha a reagir: «O Dr. Miguel Caetano é muito desconfiado!».

E o instituto avançou…

Em Março de 1979, realizou-se a primeira assembleia geral do IED - Instituto de Estudos para o Desenvolvimento. A ideia que eu tinha de Salgado Zenha deu lugar a uma imagem de bonomia, interesse pelos outros, procura de consensos, sempre pronto a compreender, sem perder uma das suas principais características: uma grande exigência no campo dos princípios e dos comportamentos éticos. A Fundação Friedrich Erbert considerava-nos um dos seus projetos de maior sucesso. No

IED, Zenha nunca falava da sua atividade política, mas assisti, mais de uma vez, à reacção dele quando alguém pretendia saber coisas sobre o seu conflito com Mário Soares: «Fomos amigos», limitava-se a dizer. E sempre que o IED realizava uma atividade com sessões públicas, Zenha insistia sempre no convite a Mário Soares para uma intervenção destacada.

Conseguiram, então, manter a tal autonomia?

As nossas relações com a Fundação Erbert eram, como já disse, as melhores. Qual não é o nosso espanto quando, depois do Congresso do Coliseu, soubemos que viria a Portugal um diretor da fundação para discutir a composição da direção do IED. Quando chegou, esse diretor comunicou-nos que o Dr. Soares estivera na Alemanha e, com o argumento que tinha derrotado Salgado Zenha naquele congresso, exigira a maioria da direção do IED, insinuando que se dificultássemos as coisas eles seriam obrigados a rever o apoio financeiro que nos prestavam. Mas, graças aos estatutos, acabámos por ser reeleitos na assembleia geral e Zenha manteve sempre uma atitude da maior dignidade. No tempo em que o conheci, nunca o vi ter como objetivo a luta pelo poder.

Zenha teria sido um bom presidente da República?

Na minha opinião não, exactamente pelo seu feitio, era uma pessoa de grandes princípios, de grande moral, de grande atitude, mas, no dia-a-dia, detestava estas pequenas conspirações de uma maneira absoluta. Não gostava de confrontos personalizados. Zenha retomou as suas funções e a sua assídua presença nas reuniões e nas atividades. Embora magoado por algumas ingratidões e mal-entendidos, manteve sempre a mesma atitude de cooperação com o Grupo Parlamentar do PS. Como sempre, os projetos esgotam-se e em 1987 surgem divergências no IED. Zenha, desgostoso com a situação criada, dissera-me, quando lhe disse que ia sair, que começara aquele projeto connosco, comigo e com a Teresa Ambrósio, pelo que se saíssemos, sairia também. E assim foi.

Esteve na fundação da Universidade Atlântica, em Oeiras. Como aconteceu?

Em meados de 1992 o meu primo Afonso de Barros, que era inteligente e muito activo, com um passado de intervenção política muito à esquerda, mas sempre muito meu amigo, procura-me a dizer que tinha concluído que faltava em Portugal uma boa universidade privada, uma verdadeira universidade republicana, na área do socialismo democrático. Disse-me que seria uma maneira de homenagearmos o nosso avô João de Barros, apóstolo da reforma educativa em geral e da educação cívica durante a 1ª República. O Afonso já tinha começado a constituir um grupo com professores universitários, já estava à procura de instalações, mas faltava-lhe alguém que o ajudasse a preparar um dossier financeiro para procurar parceiros com capital.

Essa seria a sua tarefa?

Disse-lhe que o ajudava, abri uma folha de Excel e começámos a construir “o projeto universidade”, rubrica a rubrica. Fizemos um orçamento para cinco anos. Com o projeto nas mãos, o Afonso começou à procura de sócios e apresentou-o ao Rui Vilar (CGD), ao António Costa Leal (Montepio Geral), ao Artur Santos Silva (BPI), ao António Dias da Cunha (Entreposto), que aceitaram entrar no capital da empresa EIA -Ensino, Investigação, SA., da qual já eram sócios a título individual os membros do grupo que se empenhara desde início. O projeto foi apresentado ao Ministério da Educação em 1993, mas teve de ser ajustado ao novo Estatuto do Ensino Superior Particular e Cooperativo. Só foi aprovado em Junho de 1996.

A universidade mantém-se?

O projeto inicial sofreu múltiplas alterações, foi negociado inicialmente com a Câmara de Cascais, acabou por se localizar em Oeiras, foi estudado para um total de 900 alunos, com um investimento imobiliário de dois milhões de euros – capital inicial de um milhão de euros, o número total de alunos mais do que duplicou, com um investimento imobiliário quase cinco vezes superior ao inicialmente previsto. Os 18 sócios individuais fundadores sentiram-se marginalizados e, pior ainda, o acordo para conseguir fundos para o último aumento de capital obrigou à extinção do acordo parassocial. Não era a minha maneira de dirigir e gerir projetos, pelo que decidi afastar-me. A situação agravou-se com a grave doença diagnosticada ao Afonso, da qual viria a morrer em Outubro de 1996, com 56 anos. Em todo este tempo atuei sempre em regime de voluntariado. É justo dizer que a Universidade Atlântica, com um projeto que nada tinha a ver com o que nos mobilizara, existiu com sucesso durante vários anos.

E hoje, também em regime de voluntariado, dedica-se ainda às Aldeias S.O.S?

Já com 75 anos [tem 81], recebo uma solicitação para participar numa fase de transição duma Associação de que era quase sócio fundador, embora sem qualquer participação ativa, a Associação das Aldeias de Crianças S.O.S de Portugal. O compromisso inicial limitava-se a pagar a quota, mas, em 2010, sou contactado por uma sócia efetiva que pede a minha presença na assembleia eleitoral que iria realizar-se para eleger uma lista de transição. Passei a participar mais ativamente e, como consequência, fui mandatário da lista eleita para o mandato 2014/16.

Chegámos a um acordo e o “Catálogo do Arquivo Marcello Caetano” está à disposição dos interessados na Torre do Tombo, que pode ser consultado com o acordo expresso da família, que eu represento.

E é também o responsável pelo espólio da família.

No início dos anos 90 os meus irmãos delegaram em mim a tarefa de juntar e reordenar as diversas partes do que veio a ser o “Arquivo Pessoal do Prof. Marcello Caetano”. Fui juntando, classificando e arrumando a documentação por caixas. Em princípio, o seu critério de seleção levava-o a guardar em casa apenas a correspondência particular e os documentos que não eram específicos das funções oficiais que desempenhou ou que eram cópias de documentos existentes em arquivos oficiais, com algumas exceções. Creio que seria sua intenção utilizar este material na redação das suas memórias, quando chegasse a altura da reforma. Aconteceu que, poucos dias depois do 25 de Abril, a sua casa foi assaltada, e foram despejados para o chão do seu escritório todos os documentos e outros objectos que se encontravam guardados em armários ou gavetas. Nunca se soube o que terão roubado, além de algumas condecorações com valor material e sentimental, mas o assalto funcionou como um alerta, e resolvemos retirar de casa todos os documentos, já classificados ou não, e guardá-los em malas escondidas em mais do que um sótão. Acabadas as minhas tarefas, reunimos para decidir sobre o destino a dar àquele espólio e, por coincidência, recebo um telefonema do diretor da Torre do Tombo, a perguntar se estaríamos dispostos a conversar sobre o futuro do nosso arquivo. Chegámos a um acordo e o “Catálogo do Arquivo Marcello Caetano” está à disposição dos interessados na Torre do Tombo, que pode ser consultado com o acordo expresso da família, que eu represento. 

Como se define hoje, politicamente?

Sou socialista cristão. Defendo o socialismo em liberdade, são os valores que escolhi e que mantive. O que não quer dizer que me reveja neste PS, que não revejo. O meu ponto de partida foi uma educação tradicional, de matriz católica, mais ou menos conservadora, mas aconteceu em 1958 a eleição de um novo Papa, João XXIII, e o início de um novo ciclo de vivência dos valores cristãos.

Os seus filhos, votam? Falam sobre política?

Votam, em geral mais à direita do que o Pai [risos]. E conversamos, mas gosto pouco de discutir política. Aceito argumentos, mas cada um tem os seus.

A ideia que tinha de que o país podia ser melhor e o que vê hoje, que sentimento lhe deixa?

Frustração.