Não faltaram situações fora do comum no primeiro mês do governo Trump. Mas, o caso mais interessante, tanto pela ascensão vertiginosa e queda espectacular, como pelas dúvidas que levanta, é o de Michael Flynn, o herói militar que mudou de campo e caiu em desgraça.

Flynn, general da reserva com uma folha de serviços impecável em diversos teatros de conflito – a invasão de Granada, Haiti, Iraque e Afeganistão– cedo na sua carreira enveredou pelos aspectos mais secretos da guerra, contra-espionagem e operações especiais. Em 2008, o ano em que Obama ganhou as primeiras eleições, Flynn terminou uma bem sucedida passagem pelo Iraque para ser nomeado director dos serviços de informação (“intelligence”) no Afeganistão. Nessa altura estava com o Partido Democrata, embora tais nomeações dentro da esfera militar nunca tenham a ver com política partidária. As Forças Armadas norte-americanas constituem uma espécie de país dentro do país, com alianças e interesses próprios. Flynn era um bom técnico, eficiente e cumpridor, e isso era o que interessava.

Mas também é inevitável que os mais altos escalões militares tenham opiniões políticas e haja divergências quanto aos melhores métodos para servir os interesses estratégicos do país. Durante os dez anos do Governo Obama, em que Flynn progrediu rapidamente na vertente militar da chamada “comunidade da segurança nacional”, o técnico deu lugar ao político, e o político gradualmente afastou-se dos mantras do Partido Democrata. Ao mesmo tempo, as suas ideias nem sempre eram aceites pelos outros membros e departamentos da complicada teia de segurança do "Império", que envolve incontáveis agências e departamentos em competição, por vezes antagónicos.

Em 2009, Flynn elaborou um relatório bastante crítico e pessimista sobre a situação no Afeganistão: segundo ele, os americanos não faziam ideia de onde estavam metidos, não conheciam a economia, os centros de decisão, os protagonistas, as práticas religiosas, nem praticamente nada do país que tinham invadido e conquistado em 2001. Enviado a todas as instâncias do aparelho militar/securitário, a reacção foi o mais completo silêncio. Ninguém estava disposto a reconhecer os seus erros e muito menos a dar a Flynn o crédito por os ter descoberto.

Como resultado, o militar fez a pior coisa que um militar pode fazer: tornou o relatório público, através de um organismo não governamental. O resultado foi bombástico entre o público (e nulo entre os visados), marcando o afastamento de Flynn do Governo democrata. Só não foi demitido porque o Ministro da Defesa da altura, Robert Gates, gostou da sua franqueza. Mas Obama demitiu o general comandante no Afeganistão, implicando a volta de Flynn para os Estados Unidos, onde foi nomeado para dirigir a DIA, Defense Intelligence Agency, uma espécie de patinho feio da comunidade de segurança.

Ao mesmo tempo, a sua nova popularidade colocou-o em contacto com Michael Leeden, uma dos mais cotados intelectuais da extrema-direita, a chamada “alt-right”. Para Leeden, que tem mais de dez livros publicados, o principal inimigo dos Estados Unidos é o Irão; e a Federação Russa, não sendo muçulmana, até pode ajudar na luta contra os islamistas. Depressa Flynn se tornou amigo de Leeden e começou a defender publicamente as suas ideias, como, por exemplo, que o islamismo é uma ideologia política e não uma religião.

São dessa época também os seus primeiros contactos com os russos. Em 2013, foi a Moscovo encontrar-se com quadros do GRU, a agência russa equivalente ao DIA. A comunidade de segurança nacional considerava (e considera) que uma aproximação com os russos só pode ser prejudicial. Todas as tentativas nesse sentido, desde o fim da Guerra Fria, terminaram com os russos a manipularem a situação e aproveitar-se da oportunidade. Ou seja, qualquer que seja o homem forte em Moscovo, a Rússia nunca pode ser vista como um parceiro confiável.

Finalmente, em 2014 Flynn reformou-se e constituiu uma firma de consultoria para tirar partido dos seus contactos. Quando os russos invadiram a Crimeia e Obama decretou uma série de sanções, Flynn, então sem funções no aparelho de Estado, mas conhecedor das decisões, terá falado repetidamente com o embaixador russo.

Em Agosto de 2015, Flynn encontrou-se pela primeira vez com Donald Trump.

Dois meses depois, numa entrevista ao RT, o canal de televisão internacional que divulga os pontos de vista do Kremlin, elogiou a decisão dos russos em apoiar o Presidente Bashar Al-Assad com tropas e raids aéreos na Síria, “ao contrário de Obama, que não mostra nem coerência nem nitidez na sua estratégia". Em Novembro foi convidado para ir a Moscovo, por ocasião das comemorações do décimo aniversário do canal, com um pagamento de 40 mil dólares. Os amigos pediram-lhe para reconsiderar; Flynn era general do Exército e ex-director da DIA. Seria embaraçoso para toda a gente que tinha servido sob o seu comando. Mas ele foi, participou numa entrevista do canal e esteve sentado à esquerda de Putin num jantar de gala.

Em 2016, Flynn estava completamente no campo de Trump. Nos seus tweets dizia coisas como “O medo (que temos) dos islamistas é racional.” Ou então uma foto de refugiados muçulmanos com a legenda: “Os historiadores hão-de ver com perplexidade como o Ocidente destruiu a sua própria civilização".

Em Julho lançou o seu livro, em parceria com Michael Ledeen: “O campo da luta; como podemos ganhar a guerra global contra o Islão radical e os seus aliados”. Trump endossou-o num tweet e o livro chegou à lista dos mais vendidos do “New York Times”. É uma longa diatribe contra o Irão, que Flynn considera o maior e mais perigoso adversário dos Estados Unidos.

Durante algum tempo Trump considerou convidá-lo para vice-Presidente, enquanto o ex-general cada vez mais se identificava com as ideias da “alt-right”, insinuando, por exemplo, que Obama seria secretamente muçulmano.

Em Agosto, a sua empresa de consultoria foi contratada pelos turcos para promover investimento estrangeiro no país de Erdogan. Flynn, que anteriormente considerava Erdogan como mais uma ameaça islâmica, passou a defender publicamente a Turquia como o maior aliado dos Estados Unidos contra o Califado Islâmico da Síria e do Iraque (ISIS).

Quando Trump ganhou a eleição e começou a formar a sua equipa, a escolha de Flynn para Conselheiro de Segurança Nacional fazia todo o sentido, uma vez que as prioridades dos dois eram as mesmas: o islamismo é o inimigo a abater e a Rússia pode ser um aliado.

Nove dias depois, o Irão testou um míssil balístico, em aparente contradição com os acordos que tinha feito com o Governo de Obama. Flynn, exultante com esta confirmação da sua teoria, escreveu um comunicado bastante violento contra o Irão, aproveitando para criticar a política “apaziguadora” de Obama. Na televisão, afirmou “Estamos a avisar o Irão” (“We are puting Iran on notice”), sem especificar como reagiriam os Estados Unidos. Ao jornalista do “The New Yorker” Nicholas Schmindle, confidenciou que não o tinha feito porque os militares não devem avisar o inimigo do que vão fazer.

Mas de repente, num dia, de manhã para a tarde, o poder de Flynn dissipou-se. Os contactos com os russos, de que ele vinha a prestar contas ao FBI e sobre os quais fizera declarações contraditórias, provaram ser excessivamente bizarros, mesmo para um Governo que quer a todo o custo estar de bem com Putin.

De manhã, Kellyann Conway afirmou no canal de televisão Fox News que o general tinha toda a confiança de Trump. Uma hora depois Sean Spicer, o porta-voz de Trump, disse que o Presidente estava a avaliar a situação. À tarde, um artigo do “New York Post” (uma espécie de “Correio da Manhã” americano) colocava na rua os receios do Ministério da Justiça de que Flynn pudesse ser chantageado pelos seus contactos com os russos. Pouco depois Trump pediu-lhe que se demitisse. A notícia foi publicamente conhecida às onze da noite. Oficialmente, nada de mal havia nos contactos, mas Flynn teria mentido sobre os pormenores ao vice-Presidente Pence.

Posteriormente, a Casa Branca elogiou Flynn, e Trump considerou que a sua demissão se devia não aos contactos do general com os russos mas às fugas de informação publicadas pela comunicação social, “que devia ter vergonha do que andava a fazer”.

Mas a demissão de Flynn não estancou os receios de que um homem com acesso aos relatórios mais secretos do Governo (enquanto Conselheiro de Segurança Nacional) tivesse contactos demasiado íntimos com os russos, além dos possíveis recebimentos de dinheiro.

A questão tem outros aspectos igualmente críticos: Flynn falou com os russos ainda como cidadão – pois não tinha nenhum cargo no Governo Obama – por sua livre e espontânea vontade? Não faz muito sentido. Terá sido com a aquiescência de Trump? O próprio Trump deu uma resposta dúbia a esta dúvida: “Não o mandei falar com o embaixador russo; mas tê-lo-ia mandado, se ele não o fizesse por conta própria".

Talvez nunca se venha a saber o que aconteceu. Outras situações surgem diariamente e o caso Flynn, que decerto continuará a ser analisado pelos organismos reguladores do Estado, tanto judiciais como de segurança, sairá rapidamente da atenção da comunicação social e do público – a não ser que surjam novas revelações surpreendentes. Para Flynn, foi o fim da sua carreira política. Para o Governo Trump, foi mais uma confusão que convém enterrar o mais depressa possível. Para o público, a confirmação de que John le Carré sabia do que escrevia.