“Sábado, quando o incêndio começou a tomar grandes dimensões ele disse logo: 'há pessoas a precisar de mim'”, conta Telma, que encontrámos em Campo de Ourique, na segunda paragem do percurso feito pelo camião de recolha de doações que o SAPO24 acompanhou ao longo do dia de ontem. Doações que chegaram pela mão de muitos a duas corporações de bombeiros de Lisboa e que ontem foram transportadas da capital até Pombal, local a partir do qual serão distribuídas a quem precisa.

Telma é a mulher de André, um jovem de 32 anos, bombeiro voluntário há quinze, que divide a sua vida familiar e profissional com o tempo no quartel da Associação Humanitária de Bombeiros Voluntários de Campo de Ourique, em Lisboa. Corporação onde, aliás, o seu pai e avô foram comandantes. “Está-lhe nos genes”, sorri Telma.

Ao fim de todo este tempo, confessa-nos que ainda não se habituou a ver o “seu homem” a sair de casa a meio da noite. “Nós sabemos que eles saem daqui bem, mas não sabemos como é que eles chegam”.

No domingo de manhã, André foi um dos seis homens a partir de Campo de Ourique em direção a Pedrógão Grande para ajudar no combate àquele que, pelo rasto de cinzas, já é o incêndio mais trágico de que há memória em Portugal.

Telma pediu-lhe que não fosse. Mas ele foi e ela percebe. Para ele, “o mais importante é ajudar os outros”. “A família fica cá e fica bem”, acaba por nos dizer. Até porque desde sábado que ela sabia que ele ia, só não sabia quando, só não queria saber quando.

No sábado, André e a família passaram o fim de semana na casa em Arruda dos Vinhos, fora da cidade. Mas, assim que houve uma perceção real daquilo que estava a acontecer em Pedrógão Grande, a família decidiu voltar para Lisboa embalada pelo pressentimento de André. “Ele dizia que o iam chamar”, diz Telma. E chamaram, menos de 24 horas depois.

No dia seguinte, Telma decidiu regressar a Arruda, para arrumar aquilo que a pressa tinha deixado fora do lugar no dia anterior. No regresso a Lisboa, recebeu uma chamada. “Quando ele me liga e diz ‘ Telma, traz-me seis maços de tabaco e dinheiro’... Eu percebi que se ia embora, que tinha recebido o telefonema”.

"É um herói no meio de tanto outros heróis no meio daquele inferno"

“Ele é um orgulho. É um herói no meio de tanto outros heróis no meio daquele inferno. É um orgulho”. Telma sorri enquanto seca os olhos.

Falar com o “seu homem” é que não tem sido fácil. Há poucas comunicações e a única rede a funcionar é a da Vodafone. “Mal tenho conseguido falar com ele. Quase nada”, diz-nos. “Mas sei que está bem, ele ligou há bocadinho. Só estão é muito cansados, estão lá há mais de 24 horas e dormiram apenas uma hora e meia ”.

As chamadas são curtas. Servem para André descansar Telma, dizer-lhe que está tudo bem e pedir-lhe, encarecidamente, que ela não veja televisão. “Ele só me diz para eu não ver televisão, para não ver as notícias… Mas é inevitável, eu já vi aquele autêntico inferno ... Acordo a meio da noite e vejo notícias, acordo de manhã e vejo notícias”, confessa-nos a mulher do jovem bombeiro.

Ao telefone, André diz-lhe que não sabe como é que isto vai acabar. O vento não dá tréguas, e a chuva de segunda-feira de manhã foi muito pouca para tamanhas labaredas.

“Eu estou farta de pedir para ele voltar. Nunca nos habituamos a que eles saiam. Chorei muito, continuo a chorar”.

“Ela diz que se o André não voltar amanhã (terça-feira) que vai lá numa ambulância buscá-lo”

Telma tem passado os dias no quartel dos Bombeiros. Ajuda, ou acha que ajuda, a que o tempo passe. Lá, por sua vez, ajuda os outros voluntários com as doações que chegam a um ritmo alucinante.

Por entre os corredores atulhados de solidariedade, uma menina, enérgica, não pára de andar de um lado para o ouro. Ora levava as garrafas, ora ajudava a arrumar os sacos, Mas, sobretudo, a pequena ajudava a colocar um sorriso na cara de todos os voluntários que ali estavam, alguns há 24 horas, a receber e a organizar as doações que chegavam da população. É a filha de Telma, enteada de André.

A pequena também está longe de se habituar a ver André fora de casa e o espírito de bombeira já deixam a mãe preocupada. “Ela diz que se o André não voltar amanhã (terça-feira) que vai lá numa ambulância buscá-lo”. A filha, diz Telma, é “doida” pela área da saúde, e já diz que é aquilo que quer fazer quando for grande.

A missão do grupo de seis bombeiros de Campo de Ourique que foram para Pedrógão combater as chamas era de 48 a 72 horas. Esta terça-feira pode ser o dia em que Telma deixa de chorar de saudade. O dia em que André regressa para a família. Ou pode ser apenas mais uma noite em que Telma continuará a chorar de saudade e que André está longe da família.

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