“Em Portugal não temos sentido essa situação, mas na Europa há países em que sentimos que o ambiente se está a degradar quanto ao espaço da sociedade civil”, através de “restrições legais, diminuições do financiamento, não envolvimento no espaço de opinião pública”, disse Susana Réfega.

A presidente da Plataforma Portuguesa de Organizações Não Governamentais para o Desenvolvimento (ONGD), estrutura que agrupa 62 associações em Portugal, apontou a Hungria como “o caso mais flagrante”, mas não único na Europa.

“Temos países como a Hungria, a Polónia e outros onde vemos esse espaço a fechar-se. Também nos países onde trabalhamos há muitos ativistas que começam a temer pela sua vida”, adiantou.

Susana Réfega ressalvou que há países que registaram uma “progressão positiva”, mas que de “uma forma geral há, de facto, uma preocupação em relação ao espaço da sociedade civil”.

“Esta criminalização de cidadãos quando estão a prestar ajuda humanitária é algo de extremamente preocupante. Todas estas situações que se têm passado no Mediterrâneo com os ativistas a salvar pessoas em situação extrema e depois os estados a criminalizarem os cidadãos quando estão a prestar ajuda humanitária questiona os valores da Europa, os direitos humanos e a assistência de ajuda humanitária a pessoas em risco de vida”, acrescentou.

Sobre o trabalho das ONGD numa altura em que se multiplicam as situações de emergência e as necessidades de ajuda, Susana Réfega reconhece existir na atualidade um “contexto mais favorável” a catástrofes como a que recentemente ocorreu na Beira, em Moçambique, após a passagem dos ciclones Kenneth e Idai, mas sustenta que as necessidades sempre existiram.

“As necessidades já estavam lá e nós ONGD, como trabalhamos muito junto das comunidades, da realidade efetiva dos países, sempre sentimos o grande apelo de que o que fazíamos não ser suficiente”, disse.

As ONGD portuguesas trabalham historicamente nos países de língua portuguesa e Susana Réfega identifica uma evolução dos projetos nestes países para setores como a boa governação e a capacitação institucional cada vez mais em parceria com organizações congéneres locais.

“Reforçando a sociedade dos países com os quais trabalhamos, estamos a reforçar a democracia e os direitos humanos”, disse.

Instada a comentar a recente avaliação de meio percurso dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), a Agenda 20/30, das Nações Unidas, Susana Réfega considerou que os “resultados poderiam ser melhores com maior envolvimento da sociedade civil”.

“Poderia haver um envolvimento muito maior da sociedade civil quer na implementação da agenda quer na reflexão sobre a forma de implementar essa agenda. Ainda trabalhamos muito em compartimentos: educação, saúde, agricultura…, mas os ODS mostram que só vamos ter ganhos se conseguirmos integrar os vários setores numa lógica de desenvolvimento sustentável”, disse.

Entre os 17 ODS, Susana Réfega sublinhou, pela positiva, os progressos feitos na área da educação e, pela negativa, o muito trabalho que ainda falta fazer nas questões de género.

“Sendo uma área transversal pode rapidamente perder-se e penso que é uma área em que é preciso trabalhar muito”, defendeu.

Ajuda ao desenvolvimento está a diminuir e a ser instrumentalizada

Susana Réfega considera preocupante a tendência global de redução da ajuda pública ao desenvolvimento (APD) e a sua crescente ligação a um discurso securitário na Europa.

"Os dados preliminares da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) de 2018 deixam-nos alguma preocupação. Vemos uma baixa de 2,7% nos países membros do Comité de Ajuda ao Desenvolvimento (CAD) relativamente a 2017. No caso de Portugal, também vemos uma baixa. Enquanto em 2017, tínhamos 0,18% do Rendimento Nacional Bruto (RNB) para a APD, no ano passado passamos a ter 0,17%", disse Susana Réfega em entrevista à agência Lusa.

"Claramente, há uma tendência para uma diminuição da APD ao nível global e isso é preocupante", acrescentou.

A presidente da Plataforma Portuguesa de Organizações Não Governamentais para o Desenvolvimento (ONGD) identifica, por outro lado, uma tendência da "instrumentalização" da ajuda pública ao desenvolvimento a favor das "agendas nacionais" de alguns países europeus.

"A questão das migrações tem sido instrumentalizada e associada à ajuda publica ao desenvolvimento com uma lógica securitária e com um discurso de fronteiras e de segurança que perverte a noção da ajuda. A ajuda devia em primeiro lugar pensar na segurança dos mais vulneráveis mais do que nas fronteiras da Europa", sustentou.

Portugal tem-se mantido afastado dessa abordagem, segundo a presidente da Plataforma das ONGD, que aponta também a crescente tendência do uso da ajuda pública ao desenvolvimento como "instrumento da internacionalização das empresas europeias".

"Há uma tendência das empresas enquanto prestadoras de serviços ao nível da União Europeia que é muito forte e que tem vindo a acentuar-se e [há] também a mistura de fundos públicos com fundos privados para a ajuda ao desenvolvimento", assinalou.

Susana Réfega sublinhou, neste contexto, a importância de o setor privado dar resposta às reais necessidades de desenvolvimento e salvaguardar os direitos humanos e as questões ambientais.

"São duas áreas muito sensíveis, temos muitos casos em que a entrada do setor privado penalizou questões dos direitos humanos ou questões ambientais. Claro que também há casos de sucesso, mas o que nos preocupa é que não esteja ainda suficientemente clarificado como é que a monitorização e a regulamentação [do financiamento privado] é feita", disse.

A Plataforma identifica igualmente a existência de fatias significativas de ajuda ligada aos interesses económicos dos países doadores, bem como da chamada ajuda inflacionada, que contabiliza, por exemplo, como ajuda ao desenvolvimento o acolhimento de refugiados ou o pagamento de bolsas de estudo.

"Sendo ajuda que é elegível por parte da OCDE, na nossa análise é ajuda que não é diretamente direcionada para os fins que devia ser", considerou.

Em vésperas de eleições legislativas em Portugal, Susana Réfega apontou como uma das grandes prioridades na agenda da Plataforma, o envolvimento crescente das ONGD, como representantes da sociedade civil, na elaboração das políticas públicas de desenvolvimento.

A responsável reconhece que há exemplos de participação das ONGD na elaboração de políticas públicas, mas adianta que a Plataforma tem tido essencialmente um papel de consultadoria técnica junto do poder político.

"Há margem para as ONGD terem um trabalho mais concertado no desenvolvimento das políticas públicas nesta área", disse.

Nesse sentido, a organização vai apresentar aos partidos políticos um documento com propostas que gostaria de ver nos programas para as eleições legislativas, nomeadamente qual o compromisso de cada força política para que seja atingido o objetivo de destinar 0,7% do Rendimento Nacional Bruto (RNB) à ajuda pública ao desenvolvimento.

"Portugal está muito longe da meta dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e o que advogamos é que seja claro[nos programas político] como é que se podem dar passos incrementais, que haja um plano que permita ver como é que passo a passo se pode aumentar a ajuda pública ao desenvolvimento de Portugal", disse.

*Cristina Ferreira Fernandes, da agência Lusa

(Notícia atualizada às 09:39)