Com um historial de luta desde cedo contra o Estado Novo, José Saramago foi apoiante e interveniente ativo na candidatura do General Norton de Matos à Presidência da República, nas presidenciais de 1949 (candidatura que acabaria por desistir e que levou à “eleição” do Marechal Óscar Carmona, então presidente em exercício).

Saramago viria a filiar-se no Partido Comunista Português em 1969, partido ao qual se manteve umbilicalmente ligado até à hora da sua morte.

A ligação político-partidária, atividade que acumulou em paralelo com a produção literária, foi permanente e duradoura: nas eleições autárquicas de 1989, proposto pelo PCP, integra a lista da coligação “Por Lisboa” e é eleito presidente da Assembleia Municipal. Foi ainda candidato ao Parlamento Europeu em todas as eleições, de 1987 a 2009, embora sempre em “lugares não elegíveis”, a pedido do próprio.

E foi por causa das ligações ao Partido Comunista que Saramago, jornalista do Diário de Lisboa (1971), viria, no auge da Revolução dos Cravos, a entrar no Diário de Notícias e a ocupar o cargo de diretor-adjunto.

“O DN é do povo, não é de Moscovo”

No dia 11 de março de 1975 entrou em campo uma nova administração do jornal composta por Marcelino Marques, Francisco Solano de Almeida e Correia da Fonseca. Luís de Barros foi designado diretor, Saramago, adjunto, ambos figuras próximas do Partido Comunista Português.

O “jornalista revolucionário” que na tomada de posse afirmou que “o DN vai ser o instrumento, nas mãos do povo português, para a construção do socialismo” e que alertou que quem não estivesse “empenhado neste projeto” seria melhor “abandonar”, alterou a linha editorial do Diário de Notícias. Numa coluna batizada de “Apontamentos”, 95 textos produzidos entre abril e novembro desse ano marcam o jornal e o “Verão Quente” desse ano.

Se na rua, à porta do edifício, decorriam manifestações contra o conteúdo das páginas do jornal, com gritos de “O Diário de Notícias é do Povo não é de Moscovo”, na redação, de forma inédita, 30 jornalistas apresentam à direção do jornal um abaixo-assinado que defendia a revisão da linha editorial. A “ousadia” provoca desagrado ao então diretor-adjunto, José Saramago, que convocou o Conselho Geral de Trabalhadores. Três plenários e outras tantas votações depois, 24 jornalistas são suspensos.

O “Caso dos 24” tornou-se rapidamente um caso político, originando tomadas de posição por parte do Sindicato dos Jornalistas, de deputados na Assembleia Constituinte e de partidos políticos, em defesa dos profissionais afastados.

“A orientação do Diário de Notícias, no tempo de Saramago, era sectária e panfletária e foi isso que me levou a contestá-la”, recorda ao SAPO24, Simões Ilharco, jornalista e um dos subscritores do documento que criticou a linha editorial do jornal. “A ausência de pluralismo era total e os excessos informativos também frequentes”, reforça, indicando que é esta a sua opinião, “não podendo nem falar, nem vincular os demais jornalistas que foram saneados”.

Fez parte do grupo dos 24 jornalistas afastados da redação no “dia 27 de agosto de 1975”, recorda. “O Partido Comunista estava em todo o lado e foi Saramago que me afastou, foi o responsável. O Barros era uma peça mais ou menos decorativa”,  afirma, contrariando uma tese que liga o despedimento coletivo a uma decisão coletiva que veiculava a direção do jornal, Comissão de Trabalhadores e Sindicatos, tese defendida por Ribeiro Cardoso, jornalista e autor do livro “O 25 de Novembro e os media estatizados -- Uma história por contar (2017)” e de Pedro Marques Gomes investigador do Instituto de Historia Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, autor de “Os saneamentos políticos no Diário de Notícias”.

Mas o saneamento de que diz ter sido vítima não lhe causou, porém, “grande mossa”, porque regressou “logo a seguir ao DN, a convite de Cunha Rego e Mário Mesquita”, relembra. “Não guardei também ressentimentos ou rancores. Como jornalista, entrevistei, depois do saneamento, e ao longo da minha carreira, os principais dirigentes comunistas, entre os quais, e por várias vezes, Cunhal, Carvalhas e Jerónimo de Sousa”, recorda ainda.

A saída do DN, a entrada na literatura e a conquista de abril

A liderança de Saramago não durou mais de 7 meses. Por via do golpe contrarrevolucionário de 25 de novembro de 1975, foi demitido do jornal devido às posições políticas de esquerda e à ligação ao Partido Comunista Português.

A expulsão de José Saramago do DN iria ser, paradoxalmente, um ponto de partida a partir do qual viria a ser aquilo que foi e que culminou na atribuição do Prémio Nobel.

“Jornalismos e literatura são campos que se cruzam, mas dificilmente, muito dificilmente poderia escrever o que escreveu se tivesse continuado no jornalismo”, acredita Simões Ilharco.

Desempregado e desamparado pelo PCP, decide dedicar-se exclusivamente à escrita. “Sem emprego uma vez mais e, ponderadas as circunstâncias da situação política que então se vivia, sem a menor possibilidade de o encontrar, tomei a decisão de me dedicar inteiramente à literatura: já́ era hora de saber o que poderia realmente valer como escritor” (Saramago, 2010), escreveu o próprio autor, num texto autobiográfico. “Creio que nada ou quase nada do que fiz depois do 25 de abril podia ter sido feito antes” (idem), uma frase que procura reforçar que aquilo que fez e conseguiu é, também, uma conquista da “Revolução de abril”.

Dois anos depois de sair do DN publica “Manual de pintura e caligrafia”, no qual o protagonista da história (autobiográfica) H., pintor insatisfeito com os rumos de sua produção e de sua vida, decide investir na carreira de escritor. No “Memorial do Convento” deu voz a quem construiu o Convento de Mafra (reinado de D. João V), os “operários”, critica a União Europeia na “Jangada de Pedra”, indicando o caminho para Portugal e Espanha, em direção a África e América Latina, questiona a Igreja Católica em “O Evangelho segundo Jesus Cristo”, critica o neoliberalismo no “Ensaio sobre a Cegueira”, aponta o eminente fracasso da democracia no “Ensaio sobre a lucidez” e em Caim, último romance publicado em vida, rasga com a tradicional ironia e subtilezas que o caracterizam, escrevendo que "deus é um filho da puta".

Cavaco no caminho de Saramago

Se a componente política esteve sempre presente na obra, um livro, em especial, entrou nos corredores do poder. Com estrondo, em rota de colisão e provando danos.

“O Evangelho segundo Jesus Cristo”, sexto romance do escritor agita, em 1991, os setores conservadores da Igreja Católica portuguesa. É vetado ao Prémio Literário Europeu por António Sousa Lara, subsecretário de Estado da Cultura (1991-1992) do executivo de Cavaco Silva.

Um jornal, o “Público”, dá nota do episódio a 25 de abril de 1992: “Sousa Lara corta nome de Saramago”. Sousa Lara, que na altura afirmara que a obra "não representava Portugal", viria a admitir em 2017 ao Observador que não tinha lido o livro em causa. Ou antes, leu uma parte, sendo que tudo o resto foi-lhe contado por alguém que lhe disse: “este gajo é um pulha, já́ viste o que ele diz de Deus?”.

Depois do “veto”, o caso sobe à Assembleia da República, internacionaliza-se nos media e chega à Europa com o Presidente do Parlamento Europeu, Egon Klepsch, a enviar uma carta a Jacques Delors (então presidente da Comissão Europeia) pedindo explicações sobre o afastamento de Saramago à candidatura ao PLE.

O caso custa a carreira política a Sousa Lara que abandonaria o Governo a 13 de novembro de 1992, numa remodelação que envolveu ainda Deus Pinheiro, ministro dos Negócios Estrangeiros. Saramago, esse, abandonara o país com a sua mulher, Pilar del Rio, instalando-se em Lanzarote, Espanha, acusando Sousa Lara e Cavaco Silva de "censura". Ficou célebre, então, uma frase: "Não sou um ateu total, todos os dias tento encontrar um sinal de Deus, mas infelizmente não o encontro."

Os caminhos de Sousa Lara, Cavaco Silva e José Saramago voltariam a cruzar-se para lá da vida do Prémio Nobel da Literatura. Se a tensão entre o cavaquismo e José Saramago foi forte em 1992, ano em que Cavaco Silva ocupava o Palácio de São Bento, novos capítulos foram acrescentados quando mudou de residência oficial para Belém. Em 2010 o Nobel da Literatura morre e Cavaco falha as cerimónias fúnebres justificando-se com uma promessa (familiar) por cumprir: mostrar os Açores à família.

Seis anos depois, nova polémica. De saída do Palácio de Belém condecora António de Albuquerque de Sousa Lara com a Ordem do Infante D. Henrique, destinada a “quem houver prestado serviços relevantes a Portugal, no país e no estrangeiro”.

Na cerimónia, o homem que vetou a candidatura do livro “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” a Prémio Literário Europeu em 1992, então na qualidade de professor catedrático do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) desvalorizou a situação, defendendo a conotação ideológica do Governo na época. "Um Governo tem uma conotação ideológica, não tem que agradar a toda a gente, é um Governo da maioria contra a minoria em última análise. Toma medidas polémicas que democraticamente sufragadas têm de ser aceites", sublinhou Sousa Lara.

“Coitados, um e o outro”, manifestou a viúva de José Saramago. "Parece que tem uma mala cheia de condecorações que tem de entregar antes de se ir embora. Muito feliz que esteja a fechar-se este parêntesis da História de Portugal", exclamou na altura Pilar del Río.


Veja aqui o trabalho especial que o SAPO24 preparou para assinalar os 20 anos do Nobel