Pedro é um homem como tantos outros com quem nos cruzamos na rua. Aspeto comum, sorriso fácil e um bom contador de histórias. Mesmo quando a história que conta ao SAPO24 é a a das violações que se foram sucedendo ao longo da sua vida. Pedro é um dos rostos por trás dos 718 pedidos de ajuda de homens e rapazes, vítimas de violência sexual, que a Associação Quebrar o Silêncio recebeu ao longo de sete anos de funcionamento.

Na história de Pedro há um antes e um depois de a associação ter entrado na sua vida. E não tem dúvidas, se antes da associação o seu riso escondia uma sombra, agora, aos 57 anos, é só luz. O processo não foi fácil, nem linear. Enterrou algumas memórias e, depois, tentou afogá-las em álcool. Tal como 35,2% dos sobreviventes de violação, Pedro foi abusado por pessoas próximas ou conhecidas, mas isso não o impediu de se culpar, de ter vergonha e até ter chegado a associar as coisas mais bonitas da infância, como a primeira bicicleta, às violações. Tudo normal, até o tempo que demorou a procurar ajuda.

Mas se hoje conta a história sem gaguês, vergonha, ou pausas é porque fez um processo até se dizer sobrevivente, com o objetivo de que mais vítimas se transformem em sobreviventes como ele.

Associações de apoio especializado à vítima de violência sexual:

Quebrar o Silêncio (apoio para homens e rapazes vítimas de abusos sexuais)
910 846 589
apoio@quebrarosilencio.pt

Associação de Mulheres Contra a Violência - AMCV
213 802 165
ca@amcv.org.pt

Emancipação, Igualdade e Recuperação - EIR UMAR
914 736 078
eir.centro@gmail.com

Porque é que acha que este é o momento de partilhar a sua história?

Porque a Quebrar o Silêncio foi quem me ajudou a ultrapassar esta situação. Foram muitos anos fechado numa caixa e foi a Quebrar o Silêncio que me ajudou a sorrir e a ser feliz. Portanto, o mínimo que eu posso fazer é ajudar os outros a descobri-la e a ver o trabalho que é feito. E a descobrir que podem ser ajudados a ultrapassar alguns traumas, algumas situações mais confusas do passado e do presente

Que idade tinha quando foi violado?

Não me lembro, era muito miúdo. As primeiras recordações que eu tenho teria talvez cinco anos. Eu não me recordo. Consegui reconstituir isto com a ajuda psicológica, tinha imagens mas não tinha noção.

Foi no seio familiar?

Agora já consigo falar sobre isso. Eu não me lembro bem... Mas foi quando vim morar para a terra onde vivo agora. Havia um grupo de amigos e disseram-me que se eu quisesse fazer parte do grupo tinha que baixar as calças. Explicaram-me que aquilo fazia parte.

Tinham a sua idade ou eram mais velhos?

Eu depois fui reconstituindo e eram quase todos mais velhos que eu. E alguns um bom bocado mais velhos, mesmo. Possivelmente eram esses que incentivavam os outros. Havia uma pessoa que era um ano mais velha, e o resto era tudo mais velho.

A partir da primeira vez passou a ser moeda de troca [sexo], para pertencer ao grupo tinha que deixar aquilo acontecer, e normalmente acontecia em grupo. Eu não me lembro se era todos os dias ou se era semanal, mas era com regularidade.

Normalmente começavam por dizer: "Se queres sair connosco, se queres fazer parte do grupo tens que deixar". Eu inicialmente nem sabia o que estava a acontecer, não percebia. Mas depois comecei a achar que era algo estranho. E não queria, mas eles forçavam-me. Quando comecei a tomar consciência passou a ser do género, se eu negava ou não deixava, ameaçavam que iam dizer aos meus pais, chamavam-me maricas, não me deixavam participar nas atividades de grupo, diziam que a culpa era minha, que era uma menina...

"Eu aprendi que para ser aceite, para ser integrado num grupo, para ter amigos, havia essa moeda de troca [sexo]. Eu aprendi que para ter amigos tinha que o fazer."Pedro, sobrevivente de violação

Durante quanto tempo é que isso aconteceu?

Olhe, eu fui violado... Bem, posso dizer que tenho aqui vários ciclos. Tenho o ciclo da infância, este deste grupo, depois fui violado quando tinha oito anos por um amigo do meu irmão. Esse sim, era bem mais velho...

Esse amigo do seu irmão sabia que tinha sido violado na infância, ou foi uma coisa casuística?

Não faço ideia. Mas não fazia parte do mesmo grupo, mas aquilo foi... pronto, foi o mesmo sistema.

A primeira vez que aconteceu lembro-me perfeitamente. O meu irmão e ele tinham ido apanhar pássaros, o meu irmão foi ver as armadilhas e ele põe-me a mão no rabo. Eu disse que não queria e ele diz: "Se não deixas digo ao teu irmão que a culpa foi tua e nunca mais sais connosco". E a partir daí passei a ser abusado por ele, às vezes era bastante doloroso porque ele já não era uma criança, nem um rapaz, e eu era um menino na altura.

Isso foi a segunda parte, não sei quanto tempo durou. Eu sei que tinha oito anos porque tinha uma bicicleta, e eu sei quando recebi essa bicicleta. Agora quantos anos é que durou não sei, não faço ideia. Durou até ele se ir embora do país.

E depois tive uma terceira fase, aí já com alguma cumplicidade minha, na entrada na adolescência, com um amigo. Quer dizer amigo... eu nunca tomei a iniciativa de fazer nada. Esse amigo desafiou-me e a coisa aconteceu, e foi recíproco. Mas era sempre ele que me desafiava, que me ia buscar a casa. Eu era muito... como hei-de dizer? Eu nunca soube perceber nada, nem ver sinais.

Acha que o facto de ter tido um passado de violação pode ter tido influência nessa apatia perante um convite sexual mais tarde?

Pois, talvez. Se alguém me chamasse ou se alguém me tocasse eu submetia-me. Eu aprendi que para ser aceite, para ser integrado num grupo, para ter amigos, havia essa moeda de troca. Eu aprendi que para ter amigos tinha que o fazer. Nunca partiu de mim.

"Cheguei a casa e estava tudo bem, no dia seguinte entrei em depressão profunda porque me começaram a aparecer imagens do passado, situações do passado que eu não compreendia, nem sabia interpretar."Pedro, sobrevivente de violação

Começou por dizer que hoje se sente feliz outra vez. Em que momento da sua vida percebeu que alguma coisa ao longo do percurso não tinha corrido bem e tinha que procurar ajuda?

Sou casado e a minha vida estava a degradar-se bastante. Estávamos a pensar no divórcio. Havia uma vida paralela suspeita. A minha mulher não sabia do meu passado e eu próprio não tinha a consciência total.

Percebi o que me tinha acontecido depois de um amigo ter partilhado comigo a realidade dele. Nem era uma amigo, à data, é daquelas pessoas que se cruzam connosco e desabafam... De repente, eu ouvi aquela história e percebi que era uma muito parecida com a minha. Cheguei a casa e estava tudo bem, no dia seguinte entrei em depressão profunda porque me começaram a aparecer imagens do passado, situações do passado que eu não compreendia, nem sabia interpretar.

E até aí em qualquer momento de intimidade nunca tinha sido assolado por essas imagens?

Não, estavam completamente enterradas. Eu achava que era bissexual, culpava-me por isso. Tinha uma vida normal, casado, filhos, tinha uma família onde era tudo muito arrumadinho e bem comportadinho. Profissionalmente, também sem problema nenhum. Um workaholic que se refugiava muito no trabalho.

Mas depois havia uma parte negra da minha vida.

Quando eu tinha problemas, me sentia mais pressionado ou desiludido com a vida... - Eu depois também fui muito dado a esta desilusão. E sempre que tinha um problema, tentava procurar no sexo com outros homens alguma tranquilidade. Alguma paz. Mas que depois também não era verdade. Ou seja, naquele mecanismo eu ia à procura de satisfação... Para apaziguar alguma dor... alguma raiva... Mas depois não acontecia. E isso também acontecia com o álcool, também passei a beber muito.

"Houve ali um período negro. Mas mal marquei com a Quebrar o Silêncio a coisa foi melhorando, à medida que fui falando com uma psicóloga. Fui juntando as peças e ela ajudou-me a perceber que me estava a julgar injustamente.Pedro, sobrevivente de violação

Depois desse dia seguinte em que começam a aparecer as imagens o que faz?

Depois fui falar com esse meu amigo, expliquei-lhe que não estava bem e perguntei o que podia fazer.  Mas na altura não éramos grandes amigos, não éramos íntimos sequer.

Acha que ajudou o facto de não serem tão próximos assim?

Completamente. Porque eu tenho amigos homens, amigos de infância do peito, amigos espectaculares. Mas a maioria dos homens que passaram na minha vida tinham uma componente sexual. E este não foi isso. E foi ele que espoletou isto na minha vida.

Foi ele que me recomendou a Quebrar o Silêncio para eu marcar uma consulta. E eu marquei logo porque não estava mesmo bem. Contei à minha mulher o que se estava a passar. Cheguei a tomar seis Lorenins [comprimido para a ansiedade e ajudar a dormir] de 2,5mg para conseguir dormir. Portanto, comecei a ter alucinações. Via os lençóis às manchas, a minha mulher não me deixava ficar sozinho. E em todos os momentos em que ficava sozinho aproveitava para beber imenso.

Houve ali um período negro. Mas mal marquei com a Quebrar o Silêncio - mesmo numa fase inicial online - a coisa foi melhorando à medida que fui falando com uma psicóloga. Fui juntando as peças e ela ajudou-me a perceber que me estava a julgar injustamente.

Eu achava que era o culpado de desviar os outros homens, chamar à atenção sobre eles, que eu é que provocava, eu é que... A culpa era sempre minha, e eu era má pessoa e mau marido. Ainda não sabia nada, não é? E isso era muito violento.

Houve uma altura em que eu passei a sonhar com os violadores e a desejar estar com eles. Isto antes de começar as consultas. E não é normal. Eu tinha pânico e medo, como é que alguém que tem medo e pânico deseja estar com a pessoa que provocou isso? Mas já fiz as pazes com esse período.

Na altura das violações o seu comportamento em família mudou? Alguém suspeitou?

Houve uma situação que foi muito violenta do ponto de vista emocional. Eu estava a... Havia um rapaz que abusava de mim... Um vizinho daquele grupo mais próximo e... Ele estava a abusar de mim e estavam a ver da janela. E alguém começou a gritar "maricas, paneleiro"... Desculpe os termos. Isto marcou-me muito. Eles gritavam "estás a gostar" das janelas. Isto em público. Está a ver o que é que é? Eu a querer fingir que não era eu. Eu naquele momento não estava ali. Estava ali só fisicamente. Eu fugi.

E há uma vizinha que ouve e vai contar à minha mãe. E a minha mãe, à frente dessa vizinha... Isso também foi uma situação assim.. um bocado... dramática... A minha mãe chama-me e pergunta-me se aquilo aconteceu. E eu digo que sim. E a minha mãe proibiu-me de falar com ele e pôs-me de castigo. Durante uma semana eu não saí de casa.

A culpa era minha. E isso foi muito violento, porque ele vivia na minha rua, era mais velho que eu, e eu todos os dias tinha que o enfrentar e não lhe podia dizer nada. Era uma humilhação. E achava que a culpa era minha. E escondia-me...

E em casa nunca mais se falou disto?

Não. Nunca mais. Nem sei se o meu pai, ou o meu irmão, chegaram a saber. A conversa foi só aquilo. Muito simples, muito básica. Mas o suficiente para eu me sentir culpado para o resto da vida. Essa foi muito violenta. Marcou-me muito. Foi muito difícil de digerir.

"Eu achava que era o culpado de desviar os outros homens, chamar à atenção sobre eles, que eu é que provocava, eu é que... A culpa era sempre minha, e eu era má pessoa e mau marido. Ainda não sabia nada, não é? E isso era muito violento."Pedro, sobrevivente de violação

Teve problemas em lidar com a sua orientação sexual por ouvir insultos homofóbicos enquanto era violado?

Durante muitos anos achava que era bissexual. Não foi fácil. Comecei a habituar-me a que existissem duas pessoas. Eu só tomo consciência de que também desejava ter sexo com homens depois de casado. Comecei a namorar cedo e aqueles anos de namoro, e de princípio de casados, foram anos muito intensos. Eu só tomo essa consciência mais tarde e começo a procurar relações com outros homens. Envolvi-me com um amigo casado e isso desencadeou uma situação em que me convenci "paciência. Eu sou assim, já não posso voltar atrás".

De vez em quando duvidava se devia contar à minha mulher. Mas como já tinhamos filhos, decidia sempre que não ia dizer nada. E convencia-me de que ia passar. "Vai passar. Vai passar". Mas nunca passava. Sempre que eu tinha uma chatice, que estava mais irritado, eu procurava conforto no sexo. Mas era uma coisa muito estranha a minha relação com os homens...

Isto claro, tudo antes de entrar em contacto com a Quebrar o Silêncio. Estar com um homem era sexo e mais nada. Eu não queria ver a cara, nem o nome, nem voltar a estar com a pessoa. Quanto mais depressa pudesse desaparecer, depois do ato estar consumado, melhor era para mim. Portanto, aquilo era como um copo de vinho.

Só que chegou a uma altura em que, tal como no vinho, eu não sabia parar. Até que deixava de fazer efeito.

E depois foi muito difícil. E comecei a criar desculpas para mim: há a paixão emocional que era a que eu sentia pela minha mulher, e ainda hoje sinto. A minha mulher é a pessoa da minha vida. E depois acreditava que havia outra paixão que era a paixão física. Nunca vi num homem um companheiro, nunca consegui ter uma relação afetiva com um homem. Amizade, sim.

Eu achava que era bissexual. Se por um lado, achava que gostava da minha mulher, também sabia que gostava de sexo com homens. Isto para mim era um grande sofrimento, ao mesmo tempo que aceitava que era assim. Claro que nada disto era normal. Até perceber como é que as coisas funcionavam. E perceber que também gosto efetivamente de homens, mas sinto-me muito bem na companhia da minha mulher. Continuo a sentir-me atraído por homens, mas não tem nada a ver com que acontecia antes.

Era para colmatar a ausência de algo?

Era. Era tudo. Não me aceitava. E eu sempre entendi que para ser aceite era através do sexo. Era a minha forma de procurar aceitar-me. Eu nunca consegui dizer que não. Conseguia fugir, conseguia não aparecer. Mas se eu fosse tocado eu não me mexia.

"Tenho ali um sítio seguro [na Quebrar o Silêncio] e quando preciso de falar conto com esse grupo de pessoas, não tenho que estar a expôr-me. Porque nem todas as pessoas compreendem aquilo por que passei. Às vezes é difícil perceber."Pedro, sobrevivente de violação

Mas sentia-se paralizado?

Completamente. Não me mexia mesmo. Podiam fazer o que quisessem.

Depois de fazer esta jornada de autoconhecimento, algum dia confrontou o seu irmão ou os seus pais?

Não. Não. Não. O meu irmão até já faleceu. O meu pai também e a minha mãe não iria aceitar. A única pessoa com quem eu falei - não em pormenor porque nunca iria compreender a história toda - foi a minha mulher. Até porque a minha mulher sentir-se-ia muito violentada com isso. Não pela verdade, porque isso eu contei. Mas porque ia sofrer muito com os pormenores e com o que eu sofri. O que diz é: "Passado, é passado. Presente é presente." Nem quer que eu fale no assunto.

Não tem essa necessidade de confronto?

Esse meu amigo foi fundamental. Foi muito bom, ele pediu-me para escrever, para pôr tudo cá fora. Todos os dias falávamos. E eu estava a preparar-me para contar à minha filha, para contar a alguns amigos, para ir falando. A minha mulher pediu para não falar com a minha filha, pelo menos logo nessa altura. E ainda bem que não o fiz. Neste momento não sinto necessidade de o fazer. Contei a duas amigas próximas de forma muito sumária e elas ajudaram-me imenso a ultrapassar a situação.

E queria contar a mais pessoas. Mas à medida que a terapia foi fazendo efeito eu deixei de sentir necessidade. Porque tinha um grupo onde isso acontecia. Tinha a psicóloga e também um grupo da Quebrar o Silêncio. Tenho ali um sítio seguro e quando preciso de falar conto com esse grupo de pessoas, não tenho que estar a expôr-me. Porque nem todas as pessoas compreendem aquilo por que passei. Às vezes é difícil perceber.

E como foi a reação da sua mulher e dessas duas amigas?

As minhas duas amigas ficaram totalmente desfeitas com o facto de eu ter sido violado. Eu sou muito divertido, muito bem disposto. Nunca ninguém iria suspeitar de uma situação destas. Mas nunca mesmo. A minha mulher... eu nem sei como reagiu. Eu não sei o que lhe contei, mas sei que lhe contei muita coisa. Porque na altura é como se estivesse completamente fora de mim. Sei que ela repetia: "Não quero saber mais. O passado é passado, o presente é o que estamos a viver." Sei que ela sabe todos os episódios de violação, mas não sabe os pormenores.

"Eu não tive culpa. Não fui que provoquei a situação [a violação]. Aconteceu. Fez parte da minha vida. Integrei isso no meu passado e, neste momento, vivo bem com essas situações e eles já não me afetam."Pedro, sobrevivente de violação

Magoa-o a sua mulher não querer saber mais da sua história, ou percebe?

Não, não. Eu inicialmente queria e queria contar. E ela não queria ouvir. São formas de reagir. Porque ela diz que se conseguiu estruturar e não se pode desestruturar. Também tem um passado e eu sou o pilar dela. Pela proteção das próprias fragilidades dela, não pela nossa relação.

Sente que de alguma forma sobreprotegeu a sua filha com medo que algo semelhante lhe acontecesse, ou acha que na educação da sua filha a sua experiência não foi relevante?

A minha experiência foi relevante para a compreender as decisões que ela tomar na vida. Não para a condicionar. Sempre estive atento e alerta caso fosse necessário agir em alguma situação. Mas nunca interferi ou pressionei a minha filha para nada. Estou cá para a apoiar no que for preciso. Talvez por ter passado pelas situações que passei eu nunca julguei ninguém e sempre foi isso que tentei passar à minha filha. Cada um sabe de si, como há-de fazer e o que está a fazer. Há-de ter as suas razões para fazer o que faz. Temos que aceitar, e não é só do ponto de vista sexual, sempre lhe ensinei que há sempre uma razão por trás de todas as decisões e que antes de julgar alguém deve perguntar primeiro.

Continua a viver no sítio onde foi violado. Foi-se cruzando com os seus violadores ao longo da vida?

Eu não vivo exatamente no mesmo sítio. Vivo na mesma zona geográfica.

Esse amigo do meu irmão felizmente desapareceu. Com o que era meu vizinho, seguimos caminhos e vidas diferentes. Os outros são pessoas com quem eu me cruzo diariamente, e frequento muitas vezes os mesmos espaços.

Antes da ajuda da Quebrar o Silêncio quando nos cruzávamos tinha vergonha, agora sinto-me completamente à vontade. Eu não tive culpa. Não fui que provoquei a situação. Aconteceu. Fez parte da minha vida. Integrei isso no meu passado e, neste momento, vivo bem com essas situações e eles já não me afetam.

"Sempre fui um pilar de apoio para muita gente, e isso eu sempre fiz muito bem. Mas nunca consegui procurar o mesmo para mim. Nunca confiei em ninguém para o fazer. E hoje consegui."Pedro, sobrevivente de violação

Não os culpa?

Não. Durante muito tempo ainda os culpei. Não tanto os desta fase da infância, porque eu não me lembro muito bem. Mas sim esse rapaz, o que a minha mãe ficou a saber, o que era amigo do meu irmão e, depois, o da adolescência... senti-me usado. Durante muito tempo senti-me revoltado com essas pessoas, culpava-os e culpava-me a mim. "Como é que eu deixei? Como é que eu permiti? Sou um falhado, sou fraco, sou doido". Eu achava que era eu que desencadeava essas situações, e sempre me senti inferior por tudo. Por exemplo, muitos deles jogavam à bola e eu não tinha jeito nenhum para jogar futebol. Mas a partir do momento em que fui fazendo as pazes com o passado e consegui superar essas situações, agora não me afetam. Hoje sou capaz de ter boas recordações com essas pessoas, de coisas boas que também se passaram.

Como é que isso é possível?

Não sei. Mas as violações foram momentos, eu também tive uma infância com momentos felizes. E essas pessoas também fazem parte dos momentos felizes. Nós tínhamos um grupo que também fazia travessuras, que também tinha as suas coisas de crianças. Mas eu não conseguia ver essa parte, só consegui ver essa parte depois de começar a apaziguar a parte dos abusos sexuais. Comecei a ver coisas positivas e descobri coisas engraçadas em alguns casos.

Há ideia que os homens não desabafam. Sente que o facto de ser homem atrasou o processo de recuperação?

Completamente. Na adolescência, uma das pessoas por quem me senti usado foi porque ficámos próximos. Éramos da mesma turma, falámos das primeiras paixões, das minhas inseguranças... e depois ele abusou de mim. Eu consenti, mas consenti porque não sabia reagir de outra forma. Foi uma traição total. E a partir daí mudou a minha relação com outros homens. Sempre achei que podia desabafar mais facilmente com estranhos. Se precisasse de desabafar ia a um bar, dizia tudo o que achava da vida à pessoa ao meu lado e depois ia-me embora e nunca mais a via. Era o que eu mais gostava de fazer.

"Eu tive a sorte de não ter sido violado porque alguém ligado a uma Igreja, ou um professor. Algo que nos marque. Fui violado por rapazes, da minha idade ou mais velhos que eu. Mas não era alguém que eu venerasse."Pedro, sobrevivente de violação

Tinha medo de ser vulnerável?

Completamente. Primeiro, a educação de que o homem não é sensível. Os meus pais ensinaram-me assim: "Tens que ser homem. Não choras. Se te batem, bates". Não se podia falar de sentimentos, havia a ideia de que se se tem cama, mesa e roupa lavada não há mais que possa estar mal na vida. E eu cresci com essa perspetiva.

Com as minhas amigas sempre fui muito confidente, confiavam em mim para os segredos delas. Mas eu nunca contei nada a ninguém. Sempre fui um pilar de apoio para muita gente, e isso eu sempre fiz muito bem. Mas nunca consegui procurar o mesmo para mim. Nunca confiei em ninguém para o fazer. E agora consegui. Tenho imensos conhecidos, com quem me dou e com quem saio, mas amigos com quem abro o coração tenho três ou quatro pessoas. Mas continuo a ser capaz de o fazer com estranhos que não convivem comigo no dia-a-dia.

Este processo dos abusos sexuais na Igreja imagino que tenha vivido de outra forma, porque já estava em terapia. Mas, por exemplo, como foi ser confrontado com o caso Casa Pia?

O caso Casa Pia mexeu mais comigo. Eu, na altura, percebi perfeitamente o que é uma criança não ter a quem recorrer e ser abusado pelas pessoas em quem confia. Isso é muito mau. E depois a forma como uma pessoa depois se transforma. Como facilmente é conduzida a entrar em caminhos onde se troca sexo por dinheiro. Porque não tem qualquer apoio. É praticamente ensinada a comportar-se assim. E isso é muito, muito mau.

O caso da Igreja não me afetou tanto. Embora até conheça pessoas que foram violadas por padres. Mas como já estava num período de desconstrução, mexeu menos comigo.

Toda a notícia que se fez à volta do assunto, achei desnecessário. Porque foi mais para ser bombástico do que ter em atenção quem foi violado. Isso mexeu muito comigo. Porque sei que há pessoas que ainda sofrem, e há quem não consiga ultrapassar a situação. Que fique sempre a sofrer parcialmente.

Eu tive a sorte de não ter sido violado porque alguém ligado a uma Igreja, ou um professor. Algo que nos marque. Fui violado por rapazes, da minha idade ou mais velhos que eu. Mas não era alguém que eu venerasse.

Mais do que procurar um culpado, é muito importante ajudar quem sofre.

"Por sofrer muito eu sempre quis ajudar os outros a não sofrerem tanto. Se calhar também já era assim, mas vida também ajudou. Tive a sorte de encontrar as pessoas certas que me ajudaram na altura certa."Pedro, sobrevivente de violação

Como é que se tem essa energia e otimismo perante a vida depois de se ter passado por tanto?

Por sofrer muito eu sempre quis ajudar os outros a não sofrerem tanto. Se calhar também já era assim, mas vida também ajudou. Tive a sorte de encontrar as pessoas certas que me ajudaram na altura certa. Foi aos 54 anos? Foi. Mas há quem nunca encontre essa pessoa. Por exemplo, quando saiu a questão da Igreja eu pensei: "Ainda bem que fui violado por rapazes. Porque se eu tivesse sido violado por uma pessoa que eu venerava como é que eu estaria? Completamente abandonado?" É diferente, é completamente diferente.

"Eu sinto-me agradecido pela vida que tenho. Passei muito? Passei. Mas não vivo no passado, fiz as pazes com o passado. Procurei ajuda e vivo feliz."Pedro, sobrevivente de violação

A quem não tem a sorte de encontrar a pessoa certa, o que gostaria de dizer?

É o motivo porque estou aqui. Porque encontrei a Quebrar o Silêncio que me ajudou a mudar a vida. O mínimo que eu posso fazer é dar o meu testemunho para ajudar os outros.

É preciso desabafar, abrir-se e falar. Mas tem que ser com as pessoas certas. Muitas vezes as nossas fragilidades são usadas pelas pessoas erradas como moeda de arremesso contra nós. A informação nas mãos erradas pode correr mal. Tem que se dar visibilidade a associações como a Quebrar o Silêncio. Estas pessoas que apoiam da forma correta. Portanto, acho que digo: procurem apoio. Mas procurem apoio direcionado.

Este meu otimisto não é falso. Tomei durante anos comprimidos para dormir e agora já não tomo nada. Não preciso. Estou sempre bem disposto. Eu olho para mim como um privilegiado. Apesar do que passei consegui construir uma vida e uma família. Sinto que passei os valores certos à minha filha. Fico feliz que, graças a Deus, ela não tenha passado pelo que passei. Tenho um casamento feliz, continuo a gostar do cheiro dos lençóis da minha mulher. Foi depois de quebrar o silêncio que voltei a sentir os cheiros, a partilhar momentos de ternura com a minha mulher. Eu sinto-me agradecido pela vida que tenho. Passei muito? Passei. Mas não vivo no passado, fiz as pazes com o passado. Procurei ajuda e vivo feliz.

"Costumo dizer que o abuso sexual é como se partisse a bússola a uma criança, e a criança ficasse desnorteada. Quem abusa acaba por sexualizar os afetos, a atenção e o carinho."Ângelo Fernandes, Presidente da Quebrar o Silêncio

Ângelo Fernandes, a cara por trás de sete anos de ajuda

Durante toda a conversa com Pedro, Ângelo Fernandes, fundador e diretor executivo da Quebrar o Silêncio, esteve sempre presente. Um apoio para Pedro, como tem sido para todas as vítimas que contactam a associação que criou há sete anos. Depois de um longo caminho, destaca o aumento dos crimes de violência sexual contra homens adultos, nomeadamente no contexto da saúde e relações de intimidade, uma realidade que ainda é pouco reconhecida. Antes de falar ao SAPO24 recorda Pedro que se a conversa e o lembrar das experiências reavivarem a ansiedade e o trauma, que a Quebrar o Silêncio está disponível para o ouvir e o ajudar. Pedro despede-se apenas dizendo, "estou feliz, Ângelo".

Antes da viagem pelos sete anos da Quebrar o Silêncio, Ângelo explicará que o que Pedro contou não é estranho à maioria dos sobreviventes. Muito pelo contrário.

É normal uma pessoa violada em criança ter esta relação com a sexualidade ao longo da vida? 

Sim, é bem mais comum do que as pessoas possam pensar. Costumo dizer que o abuso sexual é como se partisse a bússola a uma criança, e a criança ficasse desnorteada. Quem abusa acaba por sexualizar os afetos, a atenção e o carinho. E a criança pode achar que a forma como um adulto expressa o afeto é através de contactos sexualizados e, então, começa a normalizá-los. E, ao normalizá-los, começa a esperar isso dos adultos. E cria-se uma relação muito estranha, porque este modelo é o vinculativo.

"Uma pessoa que foi violada na infância não se vai tornar num abusador."Ângelo Fernandes, Presidente da Quebrar o Silêncio

No caso do Pedro - que foi violado por pessoas do sexo masculino - é normal que se crie depois uma dúvida com a própria orientação sexual?

É comum, porque os homens violados por outros homens podem pensar: "Será que eu tenho alguma coisa feminina em mim que atraiu outros homens? Será que isto fez de mim menos homem?"

Depois, também pode acontecer associar homens ao sexo, ou ao sexo mais violento, e crescem com este modelo... E também há homens que dizem que é mais fácil para eles confiar nas mulheres, do que confiar nos homens, porque sentem sempre que os homens têm sempre esta possibilidade de abuso iminente.

Ao longo da conversa Pedro não fugiu das palavras. Acha que é importante usar-se, sem medo, "violação", "violador"?

É importantíssimo. A forma como comunicamos determinados temas vai ajudar a moldar o pensamento público e a narrativa. Nós temos que ter cuidado com as palavras que usamos. Temos que usar as palavras certas. Se estamos a falar de uma violação, não estamos a falar de outra coisa.

Por exemplo, durante o caso dos abusos na Igreja, uma representante falava em "maldades" que os padres fizeram às crianças. Não são maldades. É violência sexual. É violação. Temos que chamar as coisas pelos nomes. Até para que as próprias vítimas possam identificar o abuso por que passaram. O Pedro fala disso quando diz que não tinha percepção de que aquilo por que tinha passado mais tarde tinha sido abuso, ou não tinha percepção. As pessoas quando falam de violência sexual e só focam exclusivamente na violação, ou nos atos penetrativos, estão a esquecer todas as outras vítimas que não passam por isso, estão a limitar as vítimas a interpretar aquilo que lhes aconteceu. E, então, ficam com experiências estranhas, sentem-se desconfortáveis. É essencial que usemos as palavras corretas.

Há um mito que diz que quem foi violado na infância se vai tornar agressor. É só um mito ou tem alguma base?

Não, é um mito. Não é de todo verdade.  Não é automático nem casuístico. Ou seja, uma pessoa que foi violada na infância não se vai tornar num abusador.

É bom clarificar isto, porque acreditar nesse mito em que as vítimas se tornam abusadores acaba por contribuir para o silêncio das próprias vítimas. Veja-se, por exemplo, o caso do Pedro, que tem uma filha e que partilha com a mulher que foi vítima de violação. Se a mulher esperar que ele vá abusar da filha, ou de outras crianças, por ter sido violado isso pode inibir a partilha. E acontece muitas vezes isso, e muitas vezes os pais tornam-se mais protetores porque passaram por certas situações que não querem que os filhos passem. Mas é um mito muito comum e isso promove o silêncio das vítimas.

Cria a Quebrar o Silêncio há sete anos. Porquê?

Eu fui vítima de abuso sexual quando era criança, tinha dez anos. E, tal como muitos outros homens, cresci a acreditar que a culpa era minha, que tinha sido responsável pelo que aconteceu, com muita vergonha, e também não tinha memória. Só passados vinte anos é que tive acesso a estas memórias.

Na altura em que tive apoio psicológico vivia no Reino Unido e tive acesso a uma associação que ajuda homens sobreviventes de violência sexual. Nessa altura tive a sorte de ter uma dessa associações perto de mim. E no fim do apoio questionei-me como teria sido o meu caso se estivesse em Portugal. Pesquisei bastante e não encontrei nenhuma associação que trabalhasse com homens vítimas de violência sexual. E, na altura, fez sentido para mim regressar a Portugal e criar esta associação para ajudar outros homens que tinham passado por situações como a minha e não tinham acesso a nenhum serviço deste género.

"Sabemos que, por causa da forma como os homens são educados e socializados, estes acabam por reagir de uma forma diferente, principalmente na forma como ultrapassam o trauma. É importante sermos sensíveis e avaliarmos o peso das masculinidades para conseguir dar resposta a estas questões."Ângelo Fernandes, Presidente da Quebrar o Silêncio

Porque é que é tão importante que esta associação seja apenas para homens?

Nós, felizmente, em Portugal já temos associações que apoiam mulheres vítimas de violência sexual, e para homens não havia. Nós acreditamos em respostas especializadas e quanto mais especializados os serviços forem, melhor a recuperação. Porque atendemos às especificidades e características de um grupo. Neste caso - e embora trauma, seja trauma - nós sabemos que, por causa da forma como os homens são educados e socializados, estes acabam por reagir de uma forma diferente, principalmente na forma como ultrapassam o trauma. É importante sermos sensíveis e avaliarmos o peso das masculinidades para conseguir dar resposta a estas questões. Além de que a violência sexual contra homens é um tema muito tabu, muito estigmatizado. A violência sexual já é um tema tabu, mas a verdade é que a violência sexual contra homens não se falava. Nós iniciámos esta conversa, e ainda assim é muito recente. Ainda há muito para fazer.

Porque é que é um tema tão estigmatizado a violência sexual contra homens?

Se calhar tínhamos que fazer uma caminhada maior. A violência sexual é um tema tabu, as pessoas não falam. Fala-se muito - e também muito recentemente - de violência doméstica, a violência sexual ainda não tem um espaço social e, até, político para ser abordada. Nós queremos criar esse espaço, onde se possa trabalhar estes temas de forma natural e trazê-los à agenda pública e política. E, claro, ajudar outros homens que precisem da nossa ajuda.

Voltando aos abusos sexuais na Igreja. Um caso destes traz oportunidade a um país para discutir violência sexual. Acha que a discussão foi tida de forma correta? O desfecho para as vítimas foi mais positivo ou mais negativo?

Podemos desdobrar isto em várias questões. Primeiro, porque não acho que se tenha agarrado a oportunidade. Normalmente, estas discussões, tal como aconteceu com o MeToo, ou com a Casa Pia, fazem com que se discuta caso a caso. Coisas muito específicas de casos pontuais e individualizados e não se tem um momento de aprendizagem para perceber o que há em comum com estes casos.

Em que momento é que acontecem, como e em que contexto? O que acontece é que há uma saturação do tema. Ou seja, fala-se do tema, mas não se educa, nem se informa verdadeiramente sobre o tema. As vítimas não têm espaço para descansar, nem paz, porque constantemente estão abusos nas notícias, nas redes sociais e no café. Nós tivemos muitas vítimas e sobreviventes a ligar-nos a dizer que não conseguiam desligar do abuso, estavam a viver tudo outra vez. É importante perceber-se o outro lado da moeda. Porque a certa altura já não é informação, é um circo mediático que não educa.

"Quando falamos em violência sexual contra homens é, por exemplo, importante dizer-se que um em cada seis homens é vítima de violência sexual. Então, fica-se a saber que aquela história não é isolada, não é uma exceção."Ângelo Fernandes, Presidente da Quebrar o Silêncio

E como é que se pode educar?

Os testemunhos são muito positivos para perceber na primeira pessoa o que é que aquela pessoa passou, mas ao informar é importante que se vão buscar estatísticas, pareceres técnicos, profissionais especializados. Por exemplo, às vezes corre-se para ir buscar um psicólogo, mas às vezes não é especializado em violência sexual.

Quando falamos em violência sexual contra homens é, por exemplo, importante dizer-se que um em cada seis homens é vítima de violência sexual. Então, fica-se a saber que aquela história não é isolada, não é uma exceção. Faz parte de um grupo que foi vítima de violência sexual, na sua maioria (38,5%) perpetrada por um membro da sua família. Há todas estas informações que são fundamentais para as pessoas poderem perceber os casos.

Em Portugal há redes de ajuda sólidas? O que falta?

Financiamento. O financiamento é sempre a questão central. Permite-nos ajudar mais pessoas. Agora saiu o Plano Nacional de Apoio à Vítima, quais são as medidas em relação às vítimas sexuais? Que formação é que as pessoas que trabalham com vítimas de violência sexual - os magistrados, por exemplo -  têm? E em trauma? Não dominar a dimensão traumática é não saber trabalhar com vítimas. E falta, também, muita formação para as pessoas que trabalham nesta área.

Nas escolas há obrigatoriedade de formação para os professores?

Não conheço todas as respostas e não quero generalizar, mas diria que não. Nem nas escolas, nem aos profissionais de saúde.

A Quebrar o Silêncio dá apoio às vítimas e formação a profissionais. Mas e as famílias das vítimas?

Também nos chegam famílias, embora não seja o nosso foco. Em 2023 houve 55 familiares e pessoas amigas de vítimas que procuraram o nosso apoio, porque precisavam de ajuda para organizar os seus pensamentos. Porque estes casos também podem causar algum tipo de disrupção nas suas vidas.

"Um homem, em média, demora mais de 20 anos a procurar apoio. Se, por exemplo, tiver sido violado por volta dos 10 anos só depois dos 30 é que está pronto para procurar apoio."Ângelo Fernandes, Presidente da Quebrar o Silêncio

Há mais gente a dizer que é vítima de abuso ou que há mais abusos?

À medida que vamos contribuindo para este trabalho coletivo da sensibilização, vamos dando ferramentas para que as pessoas possam identificar situações de violência sexual de que possam ter sido vítimas. Se há alguém que pense que só a violação é que configura violência sexual, e não engloba uma série de outras expressões, à medida que vai conhecendo outras realidades começa a perceber que há outras expressões de abuso sexual. E talvez a identificar coisas por que passou.

Quanto tempo é que uma vítima demora a pedir ajuda?

Um homem, em média, demora mais de 20 anos a procurar apoio. Se, por exemplo, tiver sido violado por volta dos 10 anos só depois dos 30 é que está pronto para procurar apoio.

Como reagir a um pedido de ajuda, a uma partilha desse género?

Antes de mais escutar. Agradecer pela partilha. Porque pode ser a primeira vez que a vítima está a falar com alguém e é um ato de coragem, e de força. Quem partilha nunca sabe como o interlocutor vai receber a história. É um risco enorme para a vítima. Deve dizer que se acredita no que a pessoa está a dizer e, claro, é fundamental perguntar como se pode ajudar. Não tomar decisões pela vítima, não impor nada. É fundamental que a vítima tenha o controlo.

"O nosso código penal não respeita o tempo das vítimas. Nós já tentámos mudar o código penal para que as vítimas tenho pelo menos até 30 ou 40 anos para denunciar."Ângelo Fernandes, Presidente da Quebrar o Silêncio

Portanto, mais de 20 anos até partilhar o que não quer dizer que sejam mais de 20 anos até denunciar?

Muitas vezes, quando se procura apoio passados 20 ou 30 anos, primeiro precisa-se de recuperar o controlo da vida. Como o Pedro dizia, estava num sítio mau da vida prestes a divorciar-se e tudo mais. Muitas vezes estão focados na recuperação do trauma. E, depois, quando querem denunciar o crime já prescreveu.

O nosso quadro legislativo não vai ao encontro dos dados?

Não, o nosso código penal não respeita o tempo das vítimas. Nós já tentámos mudar o código penal para que as vítimas tenho pelo menos até 30 ou 40 anos para denunciar. Porque se se sabe que estas vítimas demoram 20 a 30 anos para falar, temos que dar esse espaço. Até porque, um abusador abusa do máximo de crianças que consegue apanhar. É raro o abusador que só faz uma vítima. A reincidência é alta neste crime e só são parados quando o Estado os para. É como a Margarida Medina Martins, da AMCV – Associação de Mulheres Contra a Violência, diz "O Estado tem que parar estes abusadores porque, caso contrário, eles não param por si próprios." O que significa que se abusaram desta criança há 30 anos, provavelmente abusaram de outras crianças desde essa altura.

"Gostava as suas histórias de violência sexual masculinas não fossem vistas com troça."Ângelo Fernandes, Presidente da Quebrar o Silêncio

Nos próximos sete anos, o que espera?

Espero um espaço na sociedade que seja mais empático e que consiga proporcionar às vítimas maior segurança para as partilhas da histórias. Seja homem, ou mulher, quando uma vítima partilha uma história são recebidas com muita descrença. Ouvem-se sempre as mesmas perguntas: porque é que só partilha agora? Está a mentir?

Na área dos homens gostava que, em específico, as suas histórias não fossem vistas com troça. Vê-se muito os comentários: "Quem me dera a mim ter sido violada por uma mulher." (15,5% dos abusos são perpetrados pelo sexo feminino) "Uma violação das boas." Há toda esta desvalorização e descredibilização. E depois pergunta-se porque é que os homens demoram tanto tempo a procurar apoio. Uma das razões é esta. Nós não temos um ambiente nada favorável à partilha.