Entra o verão, sai Kalanick. A história arrancou pela mão do New York Times, às primeiras horas desta quarta-feira, 21 de junho, o primeiro dia do verão este ano. O diretor-executivo da Uber abandonara o cargo na empresa que fundou em 2009 um dia antes.

Numa carta a que o jornal americano teve acesso, cinco grandes investidores da empresa exigiam a imediata demissão de Kalanick. O Times explica que os investidores querem mudar o rumo da empresa, mudar a liderança. Depois de falar com pelo menos um outro membro da administração, Travis Kalanick, de 40 anos, saiu de cena.

“Amo a Uber acima de tudo o resto no mundo, e neste momento difícil da minha vida pessoal aceitei o pedido dos investidores para me afastar para que a Uber possa voltar a construir, em vez de se distrair com mais uma luta”, disse Kalanick num comunicado a que o New York Times teve acesso.

Do lado da administração, um outro comunicado diz que Kalanick “sempre pôs a Uber primeiro”. Ainda assim, vê na demissão do CEO “espaço para abraçar totalmente este novo capítulo na história da Uber”.

Na semana passada, Travis Kalanick anunciou que tinha deixado a sua posição na empresa por “tempo indeterminado”. A licença sem vencimento surgia depois da morte da mãe, num acidente de barco. Mas também depois de especulações sobre a vontade do conselho de administração — tirar Kalanick do volante da Uber.

“Eventos recentes levaram-me a concluir que as pessoas são mais importantes que o trabalho”, escrevia Travis Kalanick na carta, citada pelo jornal Público. O objetivo é ser uma pessoa melhor. O objetivo é reaprender a honrar o legado da mãe: “colocar as pessoas primeiro”. “A responsabilidade final sobre como chegámos a este ponto está nos meus ombros”, diz o antigo CEO.

Na carta, Kalanick prometia também aproveitar os dias fora da empresa para trabalhar na sua “versão 2.0”. Qual é, então, a versão 1.0?

Atualização “Tenho de mudar e crescer” para Kalanick 1.0

“Empreendedor em série” - é assim que o ex-diretor-executivo da polémica Uber se identifica na rede social Twitter. Os outros, porém, descrevem-no frequentemente de outras formas, nem sempre simpáticas. Críticas que alimenta em episódios que deixam os investidores com os nervos em franja.

Foi o caso, por exemplo, do vídeo em que surge, com duas mulheres, num carro da empresa a discutir com um dos motoristas da Uber. “Estás a subir a exigência, mas a baixar os preços”, diz-lhe o condutor. “Treta”, acaba por responder o na altura ainda CEO, já irritado. “Começámos com 20 dólares. A quanto está a milha agora? 2 dólares e 75 cêntimos?”, responde Fawzi Kamel, o motorista. Kalanick insiste: “Treta”.

“Sabes uma coisa”, diz Kalanick, “Algumas pessoas não gostam de assumir a responsabilidade pelas suas próprias [coisas]. Deitam as culpas de tudo nas suas vidas noutras pessoas. Boa sorte!”, pode ouvir-se no vídeo gravado a 6 de fevereiro, depois da festa do Super Bowl, nos Estados Unidos.

Depois de o vídeo se ter tornado público, no final de fevereiro, Kalanick enviou um pedido de desculpas aos trabalhadores da empresa. “Dizer que estou envergonhado é pouco. O meu trabalho como vosso líder é liderar… E isso começa com comportar-me de forma que nos deixe a todos orgulhosos. Não foi isso que fiz e não há explicações que o desculpem”, pode ler-se no email enviado.

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“É claro que este vídeo é uma reflexão de mim - e as críticas que recebemos são uma forte lembrança de que eu tenho de mudar fundamentalmente como líder e crescer. É a primeira vez que estou disposto a admitir que preciso de ajuda na liderança e estou disposto a encontrá-la.” “Quero pedir desculpas profundas ao Fawzi e a toda a comunidade de condutores e passageiros, bem como à equipa da Uber”, conclui o CEO.

Porém, nada é inédito e a própria Uber tem estado no centro de polémicas — nem todas por causa de concorrência. Também em fevereiro, Susan Fowler, uma engenheira que trabalhou na empresa de transportes entre novembro de 2015 e dezembro do ano passado, publicou no blogue pessoal um texto onde denunciava alegado assédio sexual na empresa de Kalanick. Depois de o departamento de recursos humanos nada ter feito, a engenheira decidiu abandonar a empresa.

E abandonar a Uber foi aquilo que milhares de utilizadores fizeram, em solidariedade com Susan Fowler, ressuscitando o chamado movimento “apagar a Uber” — #DeleteUber — que apelava aos utilizadores para apagarem a aplicação e deixassem de usar o serviço.

A iniciativa surgiu pela primeira vez quando se soube que a empresa de Travis Kalanick estava a “furar” a greve dos taxistas americanos, contra a ordem executiva de Donald Trump que bania a entrada de cidadãos provenientes de determinados países. Os utilizadores acusavam a empresa de estar a dobrar esforços para lucrar precisamente com essa greve, já que a empresa anunciava que não apenas ia manter o serviço, como tinha desativado o sistema que aumenta os preços em horas movimentadas.

Na altura, a Uber falava em mais de 200 mil contas desativadas, embora, outras fontes, explica o site Recode, falem em números ainda maiores. O volume de pedidos de eliminação de conta foi de tal forma elevado que a empresa teve de alterar os procedimentos de desvinculação. Se dantes o processo era feito manualmente por trabalhadores da empresa de São Francisco, agora a empresa teve de o automatizar.

O impacto na imagem da empresa foi brutal. Kalanick, no início de fevereiro, abandonou mesmo o fórum estratégico de dirigentes de empresas encarregados de aconselhar o presidente norte-americano: “Falei brevemente com o presidente sobre o seu decreto sobre imigração e os problemas para a nossa comunidade. Informei-o também de que não posso participar no seu conselho económico”, disse Kalanick numa comunicação aos funcionários da Uber, a que a Agência France Press teve acesso.

As reformas continuaram e no início de junho, a Uber anunciou a contratação de Frances Frei, professora na Harvard Business School, que se debruça precisamente sobre a gestão do serviço das empresas. A ideia é mudar a cultura rebelde da Uber, inaugurar “um novo capítulo”.

Num comunicado, de 5 de junho, a empresa diz que Frances Frei será parceira da diretora de recursos humanos, colaborando com o resto da equipa executiva “em áreas críticas como: estratégia e planeamento empresarial; transformação e desenho organizacional; gestão e liderança; aconselhamento, apoio e desenvolvimento de uma equipa de gestão de classe mundial; e articular e ajudar a arquitetar e adaptar a filosofia cultural” da Uber. “Os seus conhecimentos são de grande valor para a empresa, enquanto iniciamos um novo capítulo”, pode ler-se.

Há, contudo, muito trabalho a fazer. Numa reunião na semana passada (14 junho), precisamente sobre a cultura da empresa, David Bonderman, que entretanto se demitiu, interrompeu uma apresentação sobre sexismo dentro da Uber para fazer um comentário… sexista.

A reunião servia para apresentar um relatório feito por Eric Holder, antigo Procurador-Geral dos Estados Unidos do tempo Obama. A investigação incidia sobre as condições de trabalho na empresa, depois de denúncias de assédio sexual, discriminação de género e um ambiente de trabalho tóxico.

Atualização “Travis Kalanick runs the show here” para Kalanick Beta

O mundo da tecnologia chegou-lhe cedo. Aprendeu a programar no 6.º ano e ainda na escola secundária criou o primeiro negócio — um curso que garantia aos estudantes pelo menos 1.500 pontos (em 1.600 possíveis) nos exames nacionais norte-americanos.

Nos anos 1990, com 1.580 pontos nos exames, Kalanick entrou para o curso de engenharia computacional na Universidade de Los Angeles; todavia, não ficou até ao fim, já que nos últimos anos dessa década fundou a sua primeira empresa de serviços online, com alguns amigos.

Para além de ser o primeiro negócio de Kalanick online, a Scour Inc, uma plataforma que permitia a partilha de ficheiros de música, imagem e vídeo, marca também o início de uma carreira marcada por ideias que vivem metade da vida nos tribunais, contestadas por negócios pré-existentes que se sentem ameaçados. Neste caso eram as associações de autores e editores que o processaram por alegada violação de direitos de autor.

Sem dinheiro, a empresa acabou por fechar. Porém, com o novo milénio veio um novo negócio. A RedSwoosh, também uma plataforma de partilha de ficheiros online, nasceu em 2001, tendo sido vendida em 2007 por qualquer coisa como 13 milhões de euros.

A confiança de Travis no preâmbulo do seu negócio mais rentável de sempre está publicada no blogue que o empreendedor criou em 2008. No Swooshing, Kalanick partilhava ideias e cosmovisões. “Yo, este é o blogue Swooshing. Travis Kalanick manda aqui 'na cena' e publica de vez em quando sobre ideias, startups, corrupção governamental e o que quer que esteja na sua mente”.

Foi mais ou menos por aí que a ideia da Uber se começou a desenvolver. “Era um inverno frio no final de 2008”. Garret Camp e Travis Kalanick estavam em Paris para a LeWeb, um evento europeu dedicado à internet que hoje reúne mais de 4.000 participantes. “Entre a comida fantástica e as abundantes quantidades de vinho e inevitáveis saídas à noite, havia todos os tipos de discussões sobre o que vai acontecer a seguir”, explica Kalanick no site da Uber.

“O Garrett e eu [Travis] íamos ouvir boa música, boas bebidas até às cinco da manhã. A grande ideia do Garrett era resolver o horrível problema de táxis em São Francisco — ficar preso nas ruas de São Francisco é uma história familiar para qualquer sanfranciscano. O modus operandi do Garrett cabe na marca Uber. Ele gosta de andar com estilo, conforto e conveniência. Julgo que a apresentação original tinha-nos aos dois a dividir os custos de um motorista, um Mercedes classe S e um lugar de estacionamento numa garagem, para que eu pudesse usar uma aplicação de telemóvel para andar em São Francisco on demand. Hilariante!”

Devagar, a ideia foi sendo desenvolvida. Em março de 2009, Garrett Camp estava já a trabalhar naquele que viria a ser o aspeto da aplicação. Mas só a meio do ano Travis Kalanick se junta ao projeto Uber, tornando-se diretor de incubação da ideia. Tinha como missão gerir temporariamente a empresa, procurar de um um diretor geral que pudesse trabalhar na ideia a tempo inteiro e acompanhar o lançamento da aplicação em São Francisco.

Depois de dez anos a trabalhar em startups “não estava preparado para um espetáculo a tempo inteiro”, conta Travis. “E pensávamos que o negócio não ia exigir grandes tecnologias.”

Quase uma década depois, a ideia cresceu. Cresceu muito. Está avaliada em 61 mil milhões de euros e espalhou-se por mais de 650 cidades (incluindo Lisboa e Porto). Mas a par do sucesso milionário, certos comportamentos têm trazido uma espécie de bruma que enevoa a empresa - a par dos problemas legais e fiscais, não apenas em Portugal, mas também nos Estados Unidos ou na Dinamarca, por exemplo.

Atualização “E agora?” para Uber

Sem Kalanick a bordo, consegue a empresa separar-se da sua imagem? É que até agora a Uber, ou a cultura interna da empresa, parece delinear a personalidade do fundador e até agora CEO. E mesmo saindo da liderança, a verdade é que Kalanick continua a controlar a maioria dos votos dos acionistas.

O espelho permanece, mesmo quando diante dele não está ninguém.

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