A proteção do património é um tema cada vez mais abordado e, na capital, têm sido encetados diversos esforços para a classificação do património do município. Para além da candidatura da Baixa Pombalina a Património Mundial da UNESCO, defendida por Carlos Moedas, presidente da autarquia, em janeiro do ano passado, existem outros seis bairros classificados, ou em vias de classificação, espalhados por toda a cidade, um número recorde em todo o país.

No entanto, os processos de classificação tendem a ser morosos, logisticamente complexos, podem ser originados por qualquer pessoa, e, por estes motivos, importa perceber: afinal, o que é património classificado? Quais as vantagens de classificar um bairro inteiro? Entre Estado, moradores e restantes cidadãos, quem ganha e quem perde? Uma viagem por uma Lisboa com cada vez mais património sob proteção especial - realidade que se espelha em maior ou menor número por todo o país - e como isto impacta os moradores.

A maioria dos imóveis classificados em Portugal são casos isolados e não bairros inteiros, e Lisboa não é exceção. Na capital, existem atualmente quatro bairros classificados: o Bairro Alto, na freguesia da Misericórdia, o Bairro Azul, nas Avenidas Novas, o Bairro Grandela, em São Domingos de Benfica, e o Bairro Estrela d’Ouro, em São Vicente.

A estes juntam-se os bairros “em vias de classificação”, que são neste momento o Bairro das Estacas, em Alvalade, e o Bairro das Colónias, em Arroios. Além destes, existem ainda alguns processos entretanto arquivados em que não houve lugar à respetiva classificação, nomeadamente o Bairro de Alfama, na freguesia de Santa Maria Maior, e o Bairro do Arco do Cego, no Areeiro.

O Bairro das Estacas é o bairro lisboeta há mais tempo em processo de classificação, 20 anos depois do Instituto Português do Património Arquitetónico (IPPAR) ter pedido para se estudar a classificação do bairro com caráter de urgência. Este é um processo que se iniciou em 2004, e que apenas em 2021 assumiu o estado "em vias de classificação".

Independentemente da vontade e da iniciativa para classificar o bairro, este apresenta nos dias de hoje significativas diferenças na sua aparência face ao desenho original. Ao longo dos tempos, e principalmente a partir dos anos 80, o bairro sofreu alterações abundantes promovidas quer por antigos e atuais proprietários, quer por entidades públicas, nomeadamente a Junta de Freguesia de Alvalade.

No bairro, que conta com perto de 400 casas e cerca de 80 lojas, segundo contabilização do SAPO24, observa-se a olho nu o fecho de varandas através de marquises, a remoção das grelhas protetoras que cobrem as fachadas das cozinhas, prédios de cores diferentes, ares-condicionados no exterior, alargamento de janelas, entre outras alterações que não constam do projeto original.

Nas lojas verifica-se a remoção ou alteração das grelhas de proteção, e alterações de fachadas, apresentando também a problemática dos ares-condicionados visíveis na fachada.

"Não percebo a razão de classificar um bairro todo alterado e que já não é o que era" Maria Sousa, Moradora

Os moradores das Estacas avaliam a possibilidade da classificação com alguma relutância, apesar de atribuírem mérito à iniciativa.

Marco Arantes, morador do Bairro das Estacas, diz que é importante fazer a classificação do bairro, porém critica o facto desta decisão já vir tarde. “O bairro já sofreu muitas alterações e algumas com um impacto arquitetónico grave. Acho, no entanto, que a sua classificação poderá impedir mais e novos atentados. Era bom haver algumas normas para quando se pretende fazer alterações, relacionadas com, por exemplo, o tipo de janelas ou a cor com que se pintam os prédios”.

Uma opinião contrariada por Maria Sousa, moradora no bairro há mais de 60 anos, que considera que a classificação não faz qualquer sentido: “Já nada é como era antes, as casas estão todas alteradas e os espaços mudados. As lojas antigas desaparecerem e aquelas que mais se usavam, como as padarias e mercearias, há muito que fecharam. Fizeram um mercado, mas não o adaptaram aos dias de hoje, e nem sequer tem um multibanco”.

Ao longo do tempo que viveu no bairro, regista as mudanças que foram sendo feitas. “Quase todos os prédios têm mais do que uma casa com marquise, também tiraram as grelhas das cozinhas, que era uma característica do bairro, e o jardim está horrível com as esculturas colocadas há pouco tempo pela Junta de Freguesia. Além disso, as pessoas não cuidam das coisas e a Junta não quer saber. Não percebo a razão de classificar um bairro todo alterado e que já não é o que era. Continua, claro, a ser um bom sítio para se viver, as casas são espaçosas e é perto de tudo, mas está velho e demasiado modificado. Não faz sentido”.

Noutros testemunhos recolhidos pelo SAPO24 regista-se sempre um sentimento de medo do desconhecido, pela falta de informação sobre o processo de classificação. Outras pessoas não percebem como os seus direitos à propriedade vão ou estão a ser afetados com este projeto, e quais os prazos das etapas seguintes do processo. Relativamente à recuperação das características originais do bairro, alguns moradores temem já ser impossível no que toca às cores, uma vez que a Câmara Municipal de Lisboa (CML), consultada por alguns proprietários, nunca conseguiu indicar as referências exatas das cores com que os prédios foram pintados inicialmente.

“Ou o Património Cultural, I.P., assume que a nova configuração que foi dada aos edifícios passa a ser uma característica, ou a Câmara, não pode sem mais nem menos obrigar todas as pessoas a fazer obras"António Cruz Lopes, arquiteto

A imagem que alguém que passeia hoje pelo bairro tem é bem diferente daquela que se tinha quando foi inicialmente designado oficialmente como Bairro de Habitações Económicas de São João de Deus. Atualmente mais conhecido como Bairro das Estacas, foi uma encomenda feita pela CML aos arquitetos Ruy Jervis d’Athouguia e Sebastião Formosinho Sanchez e incidiu na alteração de dois quarteirões previstos no “Plano de Urbanização do Sítio de Alvalade”.

Projetado e construído entre 1949 e 1958, em pleno Estado Novo, o bairro é composto por um conjunto de sete blocos, distribuídos pelas ruas Antero de Figueiredo, Bulhão Pato, Pedro Ivo e Teixeira de Pascoais, sendo considerado um exemplo de arquitetura moderna daquela época, com uma estrutura diferente da que era vista até então.

Entre pilares característicos ao longo dos blocos, surgem espaços verdes da autoria do arquiteto-paisagista Gonçalo Ribeiro Telles, bem como percursos pedonais e espaços comerciais.

O interesse de classificação neste bairro específico não é de estranhar, dado que esta obra acabou por se tornar uma referência dos princípios do urbanismo da famosa Carta de Atenas, segundo a qual a luz, o ar e o espaço passam a ser matéria-prima do desenho urbano. Foi ainda premiado na Bienal de São Paulo, em 1950, e venceu o Prémio Municipal de Arquitetura, em 1954.

Contudo, se o bairro das Estacas se foi adaptando a quem lá vive, perdendo até a sua traça original, este tipo de alterações não se observa da mesma forma noutros bairros já classificados. Exemplo disso é o Bairro Grandela, também visitado pelo SAPO24.

Situado na antiga Quinta dos Loureiros, este bairro operário foi promovido por Francisco Grandella, no princípio do século XX, oferecendo um conjunto de 70 habitações para os trabalhadores da sua fábrica instalada em Benfica.

Ao contrário do Bairro das Estacas, o Bairro Grandela é um projeto já classificado, tem bastante menos habitações, e é ainda fechado por muros e quase isolado do único arruamento ao qual está ligado, tendo uma aparência distinta de toda a envolvente da Estrada de Benfica.

Segundo uma funcionária do Fórum Grandela, um espaço cultural gerido pela Junta de Freguesia na antiga creche do bairro, já não existem proprietários originais deste bairro, cujos herdeiros, longe de quererem as obrigações associadas a uma propriedade num bairro classificado, foram optando por vender as casas.

Também a deputada municipal como arquiteta, Margarida Bentes Penedo clarifica que a visão de que as casas nestes bairros valorizam é “poética”. “Mesmo se considerarmos a possibilidade de isenção de IMI, não vale a pena”.

“Além de que um proprietário que tenha de se confrontar com ter de fazer obras não vê essas vantagens, que são mínimas comparadas com as exigências”, acrescenta.

No caso do Grandela, mais recentemente o bairro foi alvo de restauro efetuado pela Câmara Municipal de Lisboa e, tendo em conta todas as condicionantes associadas à classificação, é atualmente ocupado na sua maioria por imigrantes e idosos, os poucos herdeiros que sobram dos proprietários originais. Algumas casas foram ainda vendidas para alojamento local, o que promove este bairro típico de Lisboa como experiência turística e não propriamente como um complexo habitacional.

Tal como se vê no Bairro das Estacas, também aqui existem algumas adulterações ao projeto original, como ares-condicionados nas fachadas. Porém, de forma mais ou menos evidente, o pequeno espaço, e os poucos moradores, facilitam a manutenção histórica dos edifícios, isto associado ao facto do estacionamento estar limitado a residentes e de não haver trânsito.

"O Bairro das Estacas é um sítio muito interessante do ponto de vista arquitetónico, mas a construção é péssima e ouvem-se as conversas de todos os vizinhos"Margarida Bentes Penedo

Classificar por dentro e por fora

Não é só no que está à vista de todos que estão os problemas. Também o interior das casas e as partes comuns dos prédios dispõem de características, algumas delas de origem, que podem fazer questionar os méritos da classificação, e que hoje já não seriam possíveis de existir em prédios de construção moderna.

Margarida Bentes Penedo salienta que “o Bairro das Estacas é um sítio muito interessante do ponto de vista arquitetónico, mas a construção é péssima e ouvem-se as conversas de todos os vizinhos. Não é um problema de Alvalade, é um problema daquele bairro em particular”.

“Até ao 25 de abril, e talvez até aos anos 80, os regulamentos que se aplicavam à construção permitiam diferentes graus de qualidade. Era possível fazer casas para diferentes bolsas. Aquele bairro era um bairro de classe média e só foi possível tendo em conta o regulamento da altura. Hoje em dia já não se constrói assim. Atualmente as exigências relativamente à qualidade de construção são tantas que, para as cumprir todas, seria impossível construir um Bairro das Estacas. Não seria possível do ponto de vista de materiais de construção, ruído e eficiência energética”, refere.

Assim, qual a razão de classificar um bairro com estas falhas de construção? A deputada municipal acredita "que a classificação esteja relacionada com o valor da solução arquitetónica. E estou de acordo que se faça construção para a classe média, com uma qualidade menor, que torna as casas mais baratas. Mas isto é impossível hoje em dia”.

Em termos de exemplos práticos, realça o “péssimo isolamento sonoro” dos apartamentos. “Era mau mas estava regulamentado, as pessoas sabiam o que estavam a comprar. Hoje em dia é obrigatório ter paredes duplas com uma caixa de ar, com cerca de 30 centímetros. Foi um bairro construído para ser acessível a um custo baixo”.

No que diz respeito às partes comuns dos prédios, também existem queixas por parte dos moradores. A mais grave está relacionada com os telhados, que na maioria dos prédios ainda são os originais e, como tal, contêm amianto, considerado um potencial risco para a saúde pública.

“As pessoas têm de perceber que, no que diz respeito a património nacional, o direito à propriedade não prevalece sobre a classificação”Tiago Mota Saraiva

Os moradores temem que, na altura de corrigir esta situação, a Câmara coloque entraves ao licenciamento deste tipo de obra. Esta opinião é corroborada pelo arquiteto António Cruz Lopes. 

Nestes casos, o especialista sublinha que “ou o Património Cultural, I.P. assume que a nova configuração que foi dada aos edifícios passa a ser uma característica, ou a Câmara, que não pode sem mais nem menos obrigar todas as pessoas a fazer obras, vai dificultando obras nos momentos em que as pessoas precisam de licenças e obriga-as a repor os elementos de origem, como retiradas de marquises e ares-condicionados, antes de qualquer outra obra que queiram fazer”.

Diz ainda que, nos casos de bairros classificados ou em vias de classificação, “é sempre necessário fazer pedido de parecer ao Património Cultural, I.P, ao contrário da maioria dos imóveis, onde apenas se fala com a Câmara, o que aumenta ainda mais os prazos para obras”.

Existem ainda dificuldades acrescidas nas situações em que é necessária colocação de andaimes em cima do jardim, uma vez que este também faz parte do perímetro de classificação, algo sobre o qual o arquiteto Tiago Mota Saraiva diz ser justificável, porque “as pessoas têm de perceber que, no que diz respeito a património nacional, o direito à propriedade não prevalece sobre a classificação”. Assim, caso um jardim seja classificado, um andaime necessita de autorização especial para pisar esse espaço.

No bairro pode também testemunhar-se a ausência de floreiras em locais onde outrora existiram, e alterações no tipo de pavimento por baixo das míticas arcadas assentes nos pilotis, vulgo pilares, característicos do bairro.

Investir e classificar meio milhão depois

Um dos elementos mais reconhecidos do bairro, e em particular pelos seus moradores, era o icónico mercado de levante, o último sobrevivente em Lisboa à data do seu encerramento.

Na sequência de uma proposta vencedora do Orçamento Participativo 2014/2015 da CML na categoria de custo até 150 mil euros, foi aprovada a construção de uma instalação permanente para este mercado, substituindo o que até à altura se tratava de meras bancas e chapéus-de-sol que se montavam e desmontavam diariamente no meio da estrada.

Assim, construiu-se um pequeno pavilhão em betão, que faz hoje parte do bairro de forma permanente e que foi inaugurado em 2018 pelo executivo camarário anterior: pelo Presidente da Câmara, Fernando Medina, e pelo Presidente da Junta, José António Borges, ambos eleitos pelo Partido Socialista.

Mercado Jardim - Alvalade
Mercado Jardim - Alvalade créditos: CML

Esta instalação, que não pertence ao desenho original do bairro, e que como tal não respeita o projeto em classificação, teve um custo total de pouco mais de 223 mil euros, de acordo com o Portal Base, dividido entre a fiscalização e preparação de obra, a empreitada principal e a colocação de vidros.

Mais recentemente, o mesmo executivo, presidido por José António Borges, promoveu também a requalificação dos jardins do Bairro das Estacas, uma obra que, segundo o próprio, “vai buscar o projeto original de Ribeiro Telles”. 

Tal como aconteceu com o Mercado Jardim, este projeto também rompeu em várias partes com o desenho original. Inaugurado há apenas três anos, em 2021, foram abertos novos caminhos, trocou-se o tipo e a cor dos pavimentos que já existiam, e ainda foi alargado e alterado o local onde se encontrava o parque infantil.

Para além de tudo isto, o culminar desta intervenção foi a inauguração da obra conjuntamente com a instalação de três novas esculturas, da autoria de Robert Panda, instaladas dentro dos espaços verdes do bairro através de lajes de betão.

Aqui, as obras tiveram um custo acima de 335 mil euros, para a implementação de visíveis diferenças entre o projeto original e o desenho atual do bairro, também segundo o Portal Base, dividido entre a empreitada e a aquisição das esculturas.

Ao todo, a Junta de Freguesia de Alvalade despendeu mais de meio milhão de euros em intervenções que, uma vez que não respeitam a traça original do bairro, poderão ainda ter um custo superior, nomeadamente pela regularização do projeto, ou inclusivamente com a alteração ou desmantelamento de elementos já construídos.

Neste aspeto, o arquiteto Tiago Mota Saraiva sublinha que “as Câmaras podem notificar as Juntas para repor obras como eram originalmente, mas isso é um problema político. É comum isto acontecer em jardins, por exemplo, em que as juntas fazerem projetos próprios que muitas vezes não fazem sentido nenhum”.

Para os moradores, o especialista diz que esta situação pode ser vista de forma injusta, tendo em conta que veem as alterações “feitas pelo próprio Estado, quando o Estado os está a obrigar a fazer alterações nas suas casas”, refere. “Existe muita tensão entre as Câmaras e as Juntas nestas matérias, mas estas intervenções em bairros podem ser contestadas pela Câmara”, acrescenta.

Estes processos são legalmente possíveis, como confirma a advogada Ana Rodrigues de Almeida, da área de urbanismo da Abreu Advogados: “Depende do que está discriminado, e se a Junta fizer uma alteração a Câmara pode processar”.

O que se segue para os moradores do bairro?

No futuro, os moradores deste bairro em Alvalade podem esperar diferentes cenários. Segundo os advogados e arquitetos entrevistados pelo SAPO24, a possibilidade de chegarem a um acordo com a Câmara pode ser considerada, bem como a constituição de uma eventual Associação de Moradores que fale numa única voz com quem promove este processo.

“São casas de pessoas normais. São pontapés na boca da classe média”Margarida Bentes Penedo

Apesar disto, este processo de classificação, a continuar, resultará em dificuldades de realização de futuras obras, que tenderão a ser cada vez mais complexas num bairro onde vive sobretudo classe média.

Para Margarida Bentes Penedo, estas “são casas de pessoas normais. São pontapés na boca da classe média”.

Sobre a alegada valorização do património classificado, acrescenta ainda que “todas as autoridades podem dizer diferente, mas ninguém quer comprar uma casa em que não se pode tocar. Ou menos pessoas querem comprar, logo as casas desvalorizam”.

Sobre os processos de classificação em curso na cidade de Lisboa, o SAPO24 contactou a Câmara Municipal de Lisboa várias vezes para prestar esclarecimentos, tendo recebido até à data de publicação deste artigo uma única resposta via email, em que clarifica que: “a classificação de um bairro enquanto conjunto de interesse patrimonial insere essa área numa categoria de especial distinção. Esta diferenciação é tida em conta em todos os processos urbanísticos, com especial impacto nos licenciamentos”.

O estatuto de bairro classificado impõe condições especiais de conservação da integridade arquitetónica, com uma visão de conjunto que naturalmente impacta a facilidade de realizar intervenções individuais. Muitas alterações normalmente não sujeitas a licenciamento passam a estar sujeitas a licenciamento por estarem incluídas em bairros classificados, mas normalmente os projetos submetidos têm uma tramitação rápida e uma qualidade de instrução muito elevada”, sublinham.

Sobre a atuação esperada por parte dos proprietários, refere que: “a iniciativa dos proprietários para a conservação, preservação, e reposição das características arquitetónicas originais dos edifícios é encorajada, por contribuir para o aumento da qualidade do conjunto”.

O SAPO24 fez também um pedido de entrevista com vereadora Joana Almeida, responsável pelo pelouro do Urbanismo, ao qual nunca obteve resposta.

Da mesma forma, também contactou o Património Cultural, I.P. para responder a algumas perguntas relacionadas com estes processos de classificação pelos quais é responsável máximo. Depois de um pedido de conversa efetuado por telefone, foi exigido enviar as perguntas por email. Estas foram enviadas no dia 23 de janeiro e até ao dia de publicação desta peça continuam sem resposta.

Mas afinal o que é o património classificado?

De acordo com a Lei de Bases do Património Cultural, o património classificado é composto por bens que possuem um inestimável valor cultural, entendendo-se a classificação como o ato final de um procedimento administrativo que tem por objetivo a proteção e valorização do património.

Esta classificação pode abranger tanto bens móveis como bens imóveis, e pode assumir três formatos – interesse nacional, público ou municipal –, consoante a importância geográfica e o impacto cultural do bem em questão.

Em Portugal, a entidade responsável pela classificação de imóveis é atualmente o Património Cultural, I.P., parte da antiga Direção-Geral do Património Cultural, existindo ainda articulações com as Direções Regionais de Cultura.

Ser dono de uma casa classificada: um "abuso do Estado" ou "só traz vantagens"?

No que diz respeito às vantagens associadas a um processo de classificação, não há entendimento entre os especialistas. Tiago Mota Saraiva destaca que, do ponto de vista prático, “só traz vantagens”, reforçando a valorização da propriedade, o que confronta com o anteriormente dito por Margarida Bentes Penedo.

“A única coisa que vai fazer é tirar direitos de propriedade a quem lá vive. É um abuso do Estado”Margarida Bentes Penedo

Avelino Oliveira, presidente da Ordem dos Arquitetos, partilha a opinião com Tiago Mota Saraiva e salienta que “basicamente, a classificação protege aquilo que são as principais características do imóvel ou de um bairro. Por um lado, isso introduz valor aos proprietários, porque significa que aquele imóvel tem qualidade urbanística, construtiva e valoriza muito a sua envolvente e acaba por estar protegido. É um património enriquecido”.

Destaca ainda que: “A classificação pode até promover que as entidades públicas possam dar condições às pessoas para fazer melhorias, desde que sejam em contexto de proteção patrimonial”, mas clarifica que isto é da total responsabilidade das autarquias.

Um cenário também apresentado pela advogada Ana Rodrigues de Almeida. No caso da classificação prejudicar significativamente a vida pessoal do proprietário, defende que pode ser pedida uma indemnização, por exemplo, no caso do proprietário ficar com menos estacionamento.

Quanto a vantagens fiscais, a advogada sublinha que, com a classificação, os respetivos imóveis passam a dispor de um conjunto de benefícios fiscais, nomeadamente a isenção de impostos como o Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) e o Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT).

Margarida Bentes Penedo é, no entanto, bastante crítica das vantagens que há para os moradores que residem num imóvel classificado: “a única coisa que vai fazer é tirar direitos de propriedade a quem lá vive”.

“A primeira coisa que acontece a estes proprietários é ser-lhes retirada uma fatia dos direitos de propriedade. Quando compraram não tinham aquelas obrigações e passam a ter. Passam a ter uma obrigação pública que não compraram. É um abuso do Estado”, acrescenta.

“A ilegalidade não prescreve”Avelino Oliveira, presidente da Ordem dos Arquitetos

Efetivamente, os restantes especialistas ouvidos pelo SAPO24 também notam algumas desvantagens.

Tiago Mota Saraiva salienta as inúmeras condicionantes a alterações para além do projeto original de um imóvel a que os proprietários passam a estar sujeitos por parte das câmaras municipais.

No que diz respeito a alterações feitas num imóvel, Avelino Oliveira defende que “a ilegalidade não prescreve”, ou seja, os moradores têm obrigação de repor as alterações feitas a um edifício que não tenham sido devidamente licenciadas.

Isto significa que os proprietários atuais devem financiar as obras de restituição do projeto original, mesmo que as modificações tenham sido promovidas por proprietários anteriores. Para evitar esta situação, Tiago Mota Saraiva recomenda que as pessoas vejam sempre os projetos aprovados antes de comprar uma casa, para saberem o que está regularizado. “O que está regularizado é o que estão a comprar. Caso contrário, é legítimo que as câmaras façam exigências para alterações”, complementa.

Também em entrevista ao SAPO24, o advogado Manuel Henriques, do Departamento de Direito Imobiliário da Sérvulo & Associados, acrescenta ainda que aos vários direitos se juntam uma série de deveres, nomeadamente o dever de informar a administração do Património Cultural, I.P. sobre alterações no imóvel e de ser o responsável pela conservação do bom estado do mesmo. Reforça também a existência de uma zona especial de proteção nos 50 metros à volta de um imóvel classificado, onde também existem restrições a obras. Este perímetro pode ser consultado no site do Património Cultural, I.P..

A lei dá ainda a possibilidade ao Estado de proceder à expropriação de um imóvel classificado caso este esteja a ser objetivamente danificado. Ana Rodrigues de Almeida acrescenta que a expropriação pode também ser requerida pelo proprietário, caso este não tenha dinheiro para fazer obras. Quem opta por esta situação “pode ter direito a uma indemnização que ficará bastante abaixo do valor que os proprietários pensam obter com uma casa, em especial se for nos grandes centros urbanos”, diz a advogada.

Destaca ainda o dever de certos bens, como castelos classificados ou grandes moradias, como existem em Sintra, de dispor de um acesso ao público, o que deve ser compatível com a vida de quem lá vive.

No caso de se querer vender a propriedade, a entidade que a classificou também terá o direito de preferência sobre a casa e é necessário notificá-la, acrescenta a advogada. Este processo é feito na plataforma “Casa Pronta” e a entidade pode pronunciar-se em 10 dias úteis.

“Têm o direito a ser informados sobre todos os atos, mas não se podem opor. Devem unir-se e negociar”Ana Rodrigues de Almeinda

Proprietários de mãos atadas

Do ponto de vista legal, não existe muito que um proprietário possa fazer quando é confrontado com uma situação deste tipo, sendo que a advogada Ana Rodrigues de Almeida esclarece: “Têm o direito a ser informados sobre todos os atos, mas não se podem opor. Devem unir-se e negociar”.

“Podem contestar a decisão enquanto cidadãos caso esta não esteja bem fundamentada, mas nestes casos normalmente é dada prioridade ao interesse público”, destaca.

Manuel Henriques acrescenta ainda que estas são decisões muito difíceis de contestar: “normalmente, estas classificações têm pareceres de pessoas altamente qualificadas nas áreas em questão, algo que muitas vezes um contra-interessado não é”.

Sublinha ainda que não acredita que este tipo de processos origine contraordenações, sendo normalmente um processo consensual.

Além disto, as reclamações e contestações destes procedimentos podem ser feitas em coligações de interessados, o que lhes dá mais poder, o que pode ser interessante para reduzir os custos de um processo em tribunal.

Margarida Bentes Penedo, conhecedora dos processos das autarquias nestes casos, sugere ainda que, quando os moradores de um bairro sabem do início de um processo de classificação, criem uma Associação de Moradores e apresentem as devidas reclamações. Pode também fazer-se uma petição à Câmara e à Assembleia Municipal e tentar alcançar um acordo.

“Uma petição obriga o morador a ser ouvido e a ser gravado. Depois, os vereadores são obrigados a ir lá responder oficialmente”, destaca. “Caso a autarquia permita a legalização das alterações, deve tratar-se disso imediatamente para não ficar à mercê do próximo executivo camarário”, destaca.

Como começa a classificação de um imóvel?

"Pode ser uma coisa que cai em cima do proprietário"Manuel Henriques

O advogado Manuel Henriques esclarece que, quando se fala em património cultural, fala-se de valores protegidos pela Constituição da República Portuguesa. Ou seja, são situações bastante protegidas por lei e com grande força por parte da entidade que promove a classificação.

Sublinha também que um particular pode requerer o início de um processo de classificação de um imóvel. Isto é, qualquer pessoa, mesmo não sendo morador do imóvel ou até residindo no estrangeiro, pode espoletar este processo.

Após receber este requerimento, a entidade responsável pelo património tem 60 dias úteis para dar uma resposta sobre se esse processo deve avançar, ou seja, se existe justificação histórica ou arqueológica para se proceder ao início da classificação.

“Pode ser uma coisa que cai em cima do proprietário, apesar de existir uma triagem. Recebido este pedido pelo Património Cultural, I.P., este avalia se o pedido é descabido, ou seja, se por exemplo o edifício está demasiado adulterado ou não representa algo particularmente relevante, entre outros motivos. No fim do prazo, o requerimento pode até ser indeferido, por não poder ser considerado um local de monumento, conjunto ou sítio”, refere Manuel Henriques.

Como é o caminho até à classificação?

Segundo o advogado, estes processos são muitas vezes conduzidos por entidades públicas com apoio de stakeholders organizados da sociedade civil, grupos de proteção do património e entidades que se dedicam a estes temas, o que aumenta a probabilidade de deferimento destes processos. Assim, nestas situações, os pareceres que podem fundamentar a classificação são recolhidos durante um ano.

Durante este tempo, o imóvel designa-se como estando “em vias de classificação”. Ao fim desse ano, caso o processo seja deferido, o imóvel passará a “classificado”.

Caso este ano passe, e se nos 60 dias seguintes a classificação não se efetivar, os interessados têm a possibilidade de comunicar que a entidade entrou em mora, ou seja, não cumpriu os prazos legalmente estabelecidos. A entidade pode proceder de duas formas distintas: ou não faz nada, e o processo caduca, tendo de ser iniciado novamente, ou prorroga esse prazo.

De acordo com Manuel Henriques, estes são processos da Administração Pública, são processos demorados, logo esta é uma situação recorrente.

Nos 60 dias após o prazo de um ano, com a classificação iminente, os interessados podem contestar os elementos deste processo desde a fase “em vias de classificação”. O advogado sublinha que os interessados devem ser informados pelas entidades responsáveis pela classificação. No entanto, quando existem mais de 10 interessados, esta comunicação é efetuada via edital.

Duas décadas depois, o Bairro das Estacas está finalmente "vias de classificação", mas não reina o consenso sobre se esta foi uma boa ou uma má notícia para quem lá vive.