Mais de 30 mil pessoas, segundo números oficiais então divulgados, acompanharam o músico, o compositor, o poeta, o combatente, o criador de "Grândola, vila morena", que morrera na madrugada anterior, 23 de fevereiro, aos 57 anos, no hospital da cidade.

A antiga Escola Industrial e Comercial de Setúbal, onde José Afonso fora professor duas décadas antes, e de onde a ditadura o expulsara, acolhia agora o seu corpo. No pátio e nas ruas em volta, onde já não cabia mais gente, recitavam-se versos da "Trova do vento que passa", de Manuel Alegre: "Há sempre alguém que resiste/ há sempre alguém que diz não."

Por volta das 15:00, quando a urna, levada em ombros por amigos do músico, apareceu ao cimo das escadas da escola, a multidão, sem qualquer aviso ou combinação prévia, começou a cantar "Grândola, vila morena", a senha do 25 de Abril. Foi a primeira de muitas canções de José Afonso entoadas durante essa tarde.

Os músicos Francisco Fanhais e Luís Cília encabeçavam o grupo que transportava o caixão, coberto por um pano vermelho, sem qualquer símbolo, como o músico pedira, rodeado de cravos e com um pão aberto.

Nas horas seguintes, operários da antiga cintura industrial de Lisboa e pescadores de Setúbal, amigos de José Afonso, familiares, como o irmão João, e companheiros de percurso, como José Mário Branco, Sérgio Godinho ou Júlio Pereira, reverzar-se-iam no transporte do corpo.

No funeral de José Afonso, não havia luto. Esse era outro dos desejos do cantor.

Todos se juntaram, homens e mulheres, novos e velhos, jovens e crianças, quase sempre de cravo vermelho e punho direito cerrado e erguido. Todos cantaram.

O quilómetro e meio que separa a atual Escola Secundária Sebastião da Gama do chamado cemitério velho, foi percorrido a passo, ao longo de duas horas e meia, ao som da música do cantor, sobretudo "Grândola, vila morena".

A Sociedade Musical da Fraternidade Operária Grandolense juntou-se ao cortejo e eram tantas as pessoas que parecia impossível vislumbrar o início ou o fim da torrente. O trânsito parou. As avenidas 5 de Outubro e Jaime Cortesão ficaram cheias, sem clareiras na multidão.

Muitas fábricas deram tolerância aos trabalhadores, para acompanharem o funeral de José Afonso, assim como a Câmara Municipal de Setúbal, a cidade onde este fundara, ainda antes da Revolução dos Cravos, o Círculo Cultural.

Sindicatos, cooperativas, grupos desportivos, empresas, comissões de trabalhadores, partidos e movimentos políticos manifestaram o seu pesar.

Foi o caso da Intersindical e da União Geral de Trabalhadores, da Frente Revolucionária de Timor Leste Independente (Fretilin), de empresas como a Carris e de outras que eram públicas como a Portucel, a Rodoviária Nacional, EDP ou os CTT.

O Presidente da República Mário Soares lamentou a perda. Figuras da política como Ramalho Eanes, Vasco Gonçalves e Maria de Lourdes Pintasilgo, os socialistas Lopes Cardoso e Marcelo Curto, José Manuel Tengarrinha e Helena Cidade Moura, do MDP, Isabel do Carmo e Carlos Antunes, Jerónimo de Sousa, do PCP, Palma Inácio, da LUAR - Liga de Unidade e Acção Revolucionária, Mário Tomé e Maria Santos, que foram deputados da UDP e do PS, também estiveram presentes, segundo a imprensa da época.

Os escritores Urbano Tavares Rodrigues, os atores e encenadores Maria do Céu Guerra, Helder Costa, Lia Gama e Artur Ramos, o cineasta José Fonseca e Costa, o médico, músico e produtor José Niza (que trabalhara com José Afonso), os músicos Carlos Paredes, Carlos do Carmo, os Trovante, Vitorino e Janita Salomé, o fadista Rodrigo e os espanhóis Luís Pastor e Pi de La Serra também acompanharam o funeral.

Não faltaram o futebolista Diamantino, que jogava pelo Benfica, nem o treinador Joaquim Meirim, do Desportivo das Aves.

Teresa Gouveia, então secretária de Estado da Cultura, esteve presente a nível particular, enquanto o governo, o primeiro liderado por Cavaco Silva, se manteve mudo, como nota a imprensa da época.

Os jornais desses dias também dão conta do esforço da governadora civil de Setúbal, Irene Aleixo, para proibir a realização do velório, na escola, alegando "perturbação emocional da população estudantil".

Mas foram exatamente esses, os mais novos, que acorreram em massa ao estabelecimento de ensino, para acompanhar o funeral.

Um cordão humano, feito por amigos do criador de "Maio, maduro maio", manteve a urna à cabeça do cortejo.

A chegada ao cemitério foi feita ao som da "Balada do outono": "Águas das fontes calai/ Ó ribeiras chorai/Que eu não volto a cantar". Populares agitaram lenços brancos e vermelhos e a filarmónica voltou a tocar "Grândola".

José Mário Branco, Francisco Fanhais, Luís Cília, João Afonso, Pi de la Serra e Camilo Mortágua carregavam a urna.

Às cinco e meia foi depositada na campa rasa n.º 1606.

Foi "um enterro a cantar", num "cemitério vivo", escreveu Nuno Ribeiro, o repórter do Diário de Lisboa.

No final dessa tarde cinzenta e nebulosa, populares gritavam "Zeca estará sempre vivo", e um grupo de jovens, de cravos vermelhos nas mãos, erguia uma enorme faixa branca onde se lia "Zeca, não morrerás entre nós".

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