Nos antigos armazéns da Docapesca, na Doca de Pedrouços, em Lisboa, onde outrora, no mesmo local, entre o barulho de gaivotas e os avisos sonoros de pescaria chegada a terra, se regateava o peixe que os pescadores traziam numas um tanto ou quanto rudimentares embarcações, está, hoje em dia, transformado num verdadeiro estaleiro de barcos topo de gama que estão a ser preparados para dar a volta ao mundo.

O “Boatyard” (estaleiro) acolherá os oito barcos das oito equipas que vão participar na 13ª edição da Volvo Ocean Race (VOR) 2017-2018. A prova de circum-navegação arranca de Alicante a 23 de outubro e terminará em Haia, na Holanda, oito meses depois, a 30 de junho de 2018, com 11 paragens distribuídas por 5 continentes, entre mares do sul e do norte, percorrendo 45 mil milhas náuticas (83 mil quilómetros), passando pela Cidade do Cabo (África do Sul), Hong-Kong e Guangzhou (China), Auckland (Nova Zelândia), Melbourne (Austrália) Itajaí (Brasil), Newport (EUA), Cardiff (País de Gales) e Gotemburgo (Suécia).

O processo de “refit” (melhoramento) na “fábrica” instalada em Pedrouços dura “15 semanas”, o que se traduzirá em “4 mil horas de trabalho” manual, sendo “duas mil de substituição e reparação e duas mil de pintura” e com o custo “de um milhão de euros” para cada uma das embarcações. Depois do trabalho feito, saem “como novas”, resume Rodrigo Moreira Rato, responsável de Comunicação do estaleiro da VOR.

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Numa tenda montada que serve de velaria e na linha de montagem, divida por dois pavilhões a uns metros de distância, entre 30 a 50 profissionais, de engenheiros a pintores, passando por mão-de-obra qualificada em eletrónica, cuidam dos barcos de 20,3 metros (63 pés) de comprimento e 9 toneladas de peso.

Sempre ocupados, andam para trás e para a frente, tratam de dois, três, barcos em simultâneo, assim “obriga” o processo de reparação. Há interdisciplinaridade e há muita mão humana de mão dada com a mais alta tecnologia utilizada. “Se fosse tudo robotizado, não era igual”, garante Rodrigo Moreira Rato.

Apresentação feita, voltemos à base. Ou antes, à agua e ao momento da chegada de cada uma das embarcações que irá participar nesta aventura oceânica.

Embarcação chinesa com skipper gaulês entra na água nas vésperas do Ano do Galo

O Donfeng Race Team, barco que é proprietário de umas das maiores empresas chinesas do ramo automóvel com sede em Wuhan, na província de Hubei, depois de 15 semanas no estaleiro, foi o primeiro a iniciar os treinos no Tejo e é a segunda equipa a confirmar o lugar na mais dura regata oceânica, a par dos holandeses do AkzoNobel.

Chegado em outubro à Doca de Pedrouços, o Donfeng foi içado por uma grua e colocado num berço. O mastro retirado, bem como as velas, quilhas e lemes e deu entrada na “boxe de Fórmula 1”, explica Moreira Rato.

Mal entrou nos pavilhões “perdeu” o nome de batismo e ganhou um número. Barco 1, barco 2, e assim sucessivamente sucederá com todos que ali atracam. Até se atingir o número oito que corresponderá às embarcações/equipas da ultramaratona náutica.

Ao todo, o Donfeng Race Team passou por 5 bases, permanecendo cerca de 3 semanas em cada uma. E será assim com todos os outros Monocascos Volvo Ocean 65. Em cadeia, um atrás do outro, à medida que saem de água e entram nos pavilhões. “Um avança de estação, o outro será também alvo de reparações, melhoramentos e tudo o mais”, explica Neil Cox, australiano que veste a pele de um dos chefes do estaleiro de Pedrouços ao serviço da VOR.

Totalmente “descascado”, todas as componentes e peças eletrónicas da embarcação com bandeira chinesa foram retiradas, numeradas e guardadas em caixas para, mais à frente no processo de “fabrico”, depois de reparadas e pintadas, serem colocadas no sitio certo. Ou caso disso, substituídas.

Limpo, de cara lavada, o barco de 20 metros avançou para outra base, onde é feito o “one design paint”, ou traduzindo, a pintura única. Uma equipa de pintores, todos vestidos de fato branco e com máscaras de proteção, limaram vezes sem conta, todos os milímetros, por cima, por baixo e de lado, convés e deck. Mais à frente, passando a mão, depois de um processo de pintura de segunda de mão, pode o leitor acreditar que nem a pele mais hidratada de um recém-nascido se equipará a esta textura.

Os componentes de hardware, analisados ao pormenor, reparados, milimetricamente pintados, dois passos à frente, foram colocados de onde tinham sido inicialmente retirados. Tudo aparafusado com todo o cuidado na estrutura de carbono.

Com as marcas bem visíveis no chão do local onde se vendia o peixe, estão hoje deitados mastros (feitos em Itália) de 30 metros de comprimento e meia tonelada de peso. Por lá passou o que agora é testado no Tejo num um verdadeiro raio-x. Aconteceu o mesmo às quilhas pivotantes (que dobram a um ângulo de 40 graus), patilhões retratáveis e lemes.

As estufas secaram tudo o que havia para secar. São feitas mais ou menos de forma artesanal bastando para tal plásticos, um tubo e uma ventoinha e por vezes uma caixa de cartão. Ali está também, em espaço próprio, o laboratório de onde nasceu o processo de fabrico das tintas que dão cor à equipa chinesa. E darão ao próximo barco.

Com espaços entre as bases devidamente separados entre si, isolados para evitar o pó, há uma divisão destinada a refeições e não só. Entre escritos das tarefas e compras diárias, um quadro instalado na parede destaca-se com uma espécie de Excel, onde tudo está escrito e organizado por datas e que ajuda a perceber o andamento dos trabalhos nesta oficina ao longo das semanas, atribuído percentagens conforme se está mais longe ou próximo de ficar pronto para entrega. O Donfeng (barco 1) aproxima-se dos 100%. Tudo está escrito ao detalhe. Até a ordem de utilização dos carros de aluguer que andam fora do estaleiro.

Depois de devidamente pesado e novamente pintado, já com as imagens dos patrocinadores, com todo o equipamento eletrónico colocado, depois de 500 componentes terem sido atualizados ou substituídos, equipamentos de convés, eletrónica e uma nova estação de media (câmaras e microfones) e navegação, ficou pronto a ser testado.

De novo içado para um outro berço, com as velas novinhas em folha, com o mastro e a quilha no devido lugar, pintura à medida, o Donfeng Race Team foi colocado, de novo, na água, 15 semanas depois de lá ter saído. Em terra, tal como cada uma das equipas em prova, tem um contentor que serve de “escritório” e que acompanhará a tripulação na viagem pelo mundo.

A estreia na água, a 27 de janeiro, da Donfeng (Vento do Leste), a equipa chinesa que tem como skipper o francês Charles Caudrelier, aconteceu exatamente nas vésperas do Ano Novo Chinês, sob o signo zodíaco do Galo (que é curiosamente o símbolo de França), que significa energia, e no mesmo dia em que se celebra vitória histórica obtida há dois anos na anterior edição da VOR que ligou a etapa Abu Dhabi-Sanya (China).

Com expectativas de superar o 3º lugar obtido anteriormente, dando seguimento à regra de “quotas” femininas que a organização introduziu, Caudrelier garante pretender ter uma ou duas velejadoras a bordo, com a holandesa Carolijn Brouwer (esteve na última VOR com o Team SCA, equipa totalmente feminina) à cabeça. A tripulação que contará com franceses, australianos e neozelandeses terá ainda a bordo dois jovens velejadores chineses. Entre os quais o repetente Liu Xue. O ex-jogador de basquetebol, num inglês aprendido “a bordo”, reconhece que tem nos seus ombros a responsabilidade de ser “um dos heróis que a China necessita para ter mais velejadores”.

Este barco tem tanto de tecnologia como de condições espartanas. A nova casa de banho, com cortina e tudo, para as equipas mistas de pouco servirá uma vez que “quem receia partilhar intimidade estará com certeza no local errado”, diz Graham Tourell, “capitão” do Dongfeng Race Team. Este garante ter “recebido um barco que é o mesmo da primeira edição, mas que parece hoje um completamente novo”. Lisboa será o principal campo de treino da equipa chinesa, mas também Lorient, em França. Regressará para afinar a máquina antes de partir na aventura dos mares. O mesmo acontecerá às embarcações que saem de Pedrouços.

Um estaleiro para 10 anos e para fazer os barcos para dar a volta ao mundo, tal como há 500 anos

Entretanto, no “boatyard” o movimento continua. Há mais barcos na linha de montagem que sairão, nas próximas semanas, praticamente como novos. “Tirando o casco, fazemos praticamente barcos novos”, explicou Rodrigo Moreira Rato, destacando também o impacto que este trabalho tem na economia portuguesa, com a residência das equipas e respetivas famílias.

Ambicionando que o estaleiro da Volvo Ocean Race fique em Lisboa por mais 10 anos, e que aquele mesmo espaço possa acolher uma academia de vela oceânica, Rodrigo Moreira Rato referiu “que mais de 10% do material utilizado nas reparações é comprado em Portugal” e que as equipas vão utilizar os “24 semirrígidos de apoio feitos em Portugal”.

Para o fim expressa um desejo. Que a construção dos próximos veleiros da regata que dá a volta ao mundo passe na íntegra por Portugal, 500 anos depois de ali ao lado terem sido fabricados os primeiros barcos para a primeira viagem de circum-navegação.