O Flamengo é uma nação. Mais de 40 milhões de torcedores. As suas últimas direções conseguiram reestruturar as finanças, saldar dívidas e aumentar fortemente as receitas. Mas faltavam os resultados desportivos.

O novo presidente, Rodolfo Landim, prometeu isso e mudou a abordagem de contratações. O Flamengo investiu mais de 50 milhões de euros para trazer Arrascaeta, Rodrigo Caio, Gabigol e Bruno Henrique. Depois vieram Rafinha, Filipe Luis, Gerson e Marí. Todos titulares com Jorge Jesus.

Mas antes da chegada de JJ ao clube, o treinador Abel Braga não conseguia encaixar todas as peças no mesmo onze. Arrascaeta estava no banco, Gabigol jogava a extremo direito. A equipa não brilhava e o peso da falta de títulos expressivos (a única Libertadores foi ganha em 1981 e o último Brasileirão em 2009) pesava. A máxima de que equipas com muitas estrelas não dão certo era entoada com clamor.

O Campeonato parou, então, para se jogar Copa América. Abel Braga pediu a demissão depois de uma série de conflitos com a direção do clube e da exigência da torcida, que pressionava por um melhor desempenho, apesar do título Carioca.

Supostamente, a direção já negociava com o português, que foi anunciado dia 1 de Junho. Chegou com a sua equipa técnica e teve tempo para restruturar a equipa, que se preparava para receber reforços na janela de transferências.

A adaptação e a derrota da virada (falar do Emelec e do Bahia)

O começo não foi tão bom como agora. O Flamengo oscilava e mostrava dificuldades para se encaixar na proposta de jogo do Mister. Nos primeiros jogos, alternou entre grandes atuações, como no 6-1 contra o Goiás, com a eliminação para o Athletico-PR na Copa do Brasil.

Na Libertadores, o Flamengo passou no sufoco pelo Emelec, apenas no desempate nos penáltis. Mas foi uma lição para Jesus. A competição continental era uma prioridade para a torcida e a festa feita durante este jogo foi o início da comunhão entre equipa e bancadas.

No fim de semana a seguir, a última derrota de Jorge Jesus no comando do clube carioca. O Bahia venceu o Mengão por 3-0 e mostrou que no Brasileirão não há jogos fáceis. Jogando em casa, todos os clubes (grandes ou pequenos) acreditam que podem vencer e tentarão jogar para isso. Nada de parar o autocarro.

Foram as lições que o português precisava para entender o funcionamento da equipa e do futebol brasileiro. De lá pra cá, bom futebol e nada de derrotas.

Quebrando paradigmas (datas FIFA, recuperação de lesão, rodízio e escalação ofensiva)

Jorge Jesus conseguiu encaixar no onze inicial todos os principais talentos à disposição (Diego estava lesionado). Formou um meio campo com William Arão na posição de trinco e Gerson como construtor de jogo. O primeiro era muito criticado pela torcida mas evoluiu muito na nova posição. O segundo foi a cereja que faltava no bolo carioca para dar dinâmica e força ao meio-campo do Mengão.

Arrascaeta de um lado, Everton Ribeiro do outro e Bruno Henrique e Gabigol a "partir" tudo na frente. Linhas avançadas com Rafinha e Filipe Luís ajudando a equipa a criar e a dupla de defesas-centrais, Rodrigo Caio e Marí, distribuindo a bola a partir da defesa com muita qualidade. O Flamengo jogava como uma orquestra e criava muitas jogadas de perigo.

Na ascensão rubro-negra, para além da vantagem tática e técnica sobre os adversários, destacam-se o planeamento e trabalho de bastidores do clube para dar tranquilidade ao trabalho de campo e para colocar todos à disposição do treinador, nomeadamente no que diz respeito à recuperação de lesões em tempo recorde. Arrascaeta, por exemplo, foi operado ao joelho entre a primeira e a segunda-mão da meia-final de Libertadores contra o Grêmio.

Mas há mais: dois paradigmas brasileiros também foram quebrados. Primeiro, a ideia de que o calendário recheado de jogos no meio da semana exigia o rotação dos jogadores. Jesus poupava um ou outro, quando era necessário, mas ia sempre com a força máxima disponível. Não priorizou uma competição sobre a outra e chegou bem e forte para a disputa dos títulos.

Por fim, o inexplicável conflito entre jogos das Seleções e as jornadas do Brasileirão no mesmo dia foi driblado com maestria. Primeiro, Reinier, miúdo-maravilha promovido por Jesus, rejeitou a convocatória para o Mundial sub-17 e foi fundamental em muitos jogos nesse período no Brasileirão. Na última semana, Arrascaeta alegou lesão para não viajar com o Uruguai para os amigáveis no Médio Oriente, jogando os 90 minutos pelo Flamengo no embate contra o Grêmio, nas vésperas da final da Libertadores. Se viajasse, chegaria cansado e atrasado em relação ao plantel, que já estaria no Peru.

Rivais e o protecionismo do mercado local

Depois da derrota com o Bahia, o Flamengo jogou contra todos os principais adversário no campeonato sem perder, brilhando nos jogos-chave contra os grandes rivais. Venceu o Santos de Sampaoli, humilhou o Palmeiras (treinado então por Felipão, que foi demitido depois do jogo), aplicou 5-0 ao Grêmio (na 2.ª mão da meia-final da Libertadores) de Renato Gaúcho, principal rival do português nos media, e, com oito reservas, venceu novamente por 1-0 na casa do mesmo clube antes de viajar para o Peru.

A torcida e a imprensa foram à loucura com a sequência de vitórias e, principalmente, com o bom futebol do Flamengo. Há muito tempo que uma equipa brasileira não vencia e convencia desta forma. Jorge Jesus colocou em xeque os treinadores canarinhos e afetou até a imagem de Tite na Seleção, que passa a ser pressionado para fazer a Seleção render mais.

Em reação à adoração ao novo ídolo rubro-negro, alguns treinadores e comentadores brasileiros ficaram defensivos e passaram a questionar o trabalho do português. Mano Menezes, sucessor de Felipão no Palmeiras, disse que, com esse plantel reforçado, Abel Braga teria feito o mesmo. Renato Gaúcho, do Grêmio, acusava Jesus de só ter tido sucesso em Portugal, como se ele, Renato, tivesse tido sucesso fora do Brasil. O dinheiro investido virou a muleta para os que se recusaram a ceder. Todos foram passando vergonha com o crescimento, jogo a jogo, do rubro-negro carioca. E agora, com o título e campanha tão superior aos adversários, fica difícil levar a sério essa resistência.

Flamengo 2019 x Flamengo 1981 e um rival em comum

O maior Flamengo da história é o de Zico, campeão da Libertadores e Taça Intercontinental (atual Mundial de Clubes) em 1981. Tinha grandes nomes como Leandro, Júnior, Mozer e Nunes. Todos tiveram carreiras longas e expressivas pelo rubro-negro.

Hoje, depois da vitória na Copa Libertadores e do título do Brasileirão, é justo elevar essa equipa ao mais alto patamar? São épocas completamente distintas para o futebol brasileiro, nomeadamente no que diz respeito à dificuldade de manter os talentos em solo nacional. Mas este Flamengo conseguiu reunir uma quantidade de talento há muito tempo não vista no Brasil. Não tem um Zico, mas os demais podem ser equiparados com a equipa-maravilha de antigamente. E, para os flamenguistas mais jovens, o título passado foi há quase 30 anos, pelo que é esta a equipa que habitará os seus sonhos mais saudosos.

Tal como há 38 anos, o principal adversário na segunda parte desta época de glória continental e mundial - leia-se, juntar ao Mundial de Clubes do próximo mês à Copa Libertadores agora conquistada - vem de Inglaterra e chama-se Liverpool.

Em 1981, um baile brasileiro, arrasou os Reds com um sonante 3-0. Em 2019, os ingleses estão, contudo, noutro patamar. São a melhor equipa do mundo e jogam um futebol ao mais alto nível. Não obstante, há muito tempo que um clube brasileiro não chega a um Mundial de Clubes criando a esperança nos seus torcedores mais ousados de conseguir competir com os gigantes europeus, autênticas seleções mundiais no futebol atual.

E o futebol brasileiro?

Jorge Jesus abriu o mercado brasileiro para os treinadores estrangeiros. Mostrou a beleza da festa que se faz por lá e o crescimento da estrutura das equipas locais. Hoje, conseguem pagar salários equivalentes aos europeus e atrair grandes nomes.

Os clubes se encantaram com o trabalho de Jesus e Sampaoli (argentino que treina o Santos), os estrangeiros em destaque neste campeonato, e estão de olho no mercado exterior. O argentino Eduardo Coudet deve ser o treinador do Internacional. O português Leonardo Jardim já foi especulado para alguns clubes.

Mas o principal impacto de Jorge Jesus foi mostrar que não é possível para o Brasileirão acomodar-se e aceitar um futebol parado no tempo. JJ não resgatou o futebol ofensivo brasileiro, apenas aplicou as mais modernas lições táticas e modelos de treino, num grupo qualificado como o plantel rubro-negro. E o impacto foi brutal.

Imprensa e torcida clamam para que esta mensagem sirva de exemplo e que a revolução se estenda à formação dos jovens jogadores, ao desenvolvimento dos treinadores locais e ao crescimento do jogo praticado no país como um todo.

O Mundial de 2014 foi o primeiro baque da distância do futebol brasileiro para o topo do mundo. Mas os caminhos escolhidos após o chamado Mineiraço (copiosa derrota do Brasil por 7-1 frente à Alemanha, nas meias finais da competição) provaram-se ineficazes. Tite começou bem na Seleção, mas parece perdido após o Mundial de 2018. E, principalmente, ficou evidente que, à nível local, o futebol brasileiro pode mais. Muito mais. E foi preciso um português para descobrir isso. Jorge Jesus redescobriu o futebol do Brasil, colocou o Flamengo no mapa da bola mundial e pode ter dado início a uma nova fase no país do futebol. Mesmo que não fique para 2020, ou que não repita o sucesso absoluto que teve este ano, o seu nome já está escrito na história do futebol brasileiro.