A Taça de Portugal é sinónimo de romaria. Domingo, todos os caminhos foram dar ao Jamor. À mata e ao Estádio Nacional.
O imenso pulmão verde sito em Oeiras foi invadido pelas cores encarnadas e brancas representativas dos dois clubes: Benfica e Vitória de Guimarães. Foi a 77ª edição da Prova Rainha, um jogo que é sempre especial, que se distingue de todos os outros.
Bem diferente é também a festa. Que se faz antes. Muito antes do apito inicial. De caras pintadas, vestidos a rigor, com roupas excêntricas, de bandeiras e cachecóis. No lado encarnado pontificavam grupos mais ou menos organizados de adeptos, essencialmente homens. No feudo do Guimarães, a mancha branca era tanta - tantas eram as camionetas estacionadas com inscrição no vidro da frente a denunciar a procedência - que parecia que a cidade tinha ficado vazia. Vieram os “Conquistadores”, os “ultra” mas também muitos miúdos, mulheres e idosos.
Com lugares mais ou menos marcados com antecedência, foram centenas de barracas montadas. Umas mais profissionais que outras. Roulottes de farturas, cachorros, tendas, cadeiras, mesas desdobráveis, mantas e almofadas estendidas.
Nas festas que se amontoam e acotovelam lado a lado não houve, nem há, listas VIP, “guest list” nem restrições à entrada. Sem “muros” nem “portas”, todos eram convidados a comer à mesa e a falar. De futebol e de tudo o resto.
De entre milhares de adeptos anónimos, o capitão de futsal do Benfica, Gonçalo Alves, deu a cara numa festa que organizou para amigos e quem quisesse se juntar. Sinal representativo máximo que em dia de Taça o mundo da bola é capaz de unir nações.
Comida gourmet não entra. Aqui só se come coiratos, febras e entremeada
As matas circundantes do Estádio Nacional oferecem uma montra daquilo que se come em todos os lares. Esqueça, no entanto, aquele género gastronómico que apelidamos de gourmet ou tapas nacionais. Tais géneros não cabem naquelas bandas longe da invasão turística que toma de assalto zonas próximas, mais para a beira-rio.
No Jamor pontifica a boa e tradicional comida portuguesa. Pesada e farta. No imenso pic-nic, o porco foi o prato preferido. O animal rodou e rodou lentamente em dezenas de espetos à espera de ser transformado numa simples carcaça. Nada escapa à boca mais exigente. Nem mesmo o tradicional coirato, febras e entremeada.
Tachos e panelas, eram “mais que as mãos”. Fogareiros e grelhadores. Sacos de carvão e brasas acesas. Arroz, pão, batatas fritas, rissóis e croquetes com óleo que salta à vista. Com o fumo dos grelhados e assados a competir com algumas tochas, o cheiro a pele queimada ganhou clara vantagem. E o colesterol saiu em ombros.
Para acompanhar tudo foi bem regado. Máquinas e barris de cerveja e geleiras a cada esquina, garrafões de vinho, águas e sumos. E bidões e sacos de lixo, bem à vista, que as preocupações ambientais têm ganho terreno nos últimos anos, para lamento dos animais que vivem nas matas e que antigamente tinham o banquete do ano na final da Taça de Portugal.
“Ajoelhou vai ter que rezar...”
Ainda o relógio não apontava a hora do almoço e os exageros causavam já algumas “vítimas”. A sesta começava antes da hora com alguns adeptos de cabeça pesada, deitados em mantas, aproveitaram para descansar os ossos. E a voz.
Entre petiscos e conversa, o barulho foi uma presença constante desde cedo. Cânticos entoados de cada um dos lados da barricada. “SLB, SLB...Glorioso ...SLB”, com vista para a Praça da Maratona, e o “Sou Vitória, Sou Vitória”, vindo da zona mais próxima da Cidade do Futebol. Pequenos grupos de amigos, familiares, miúdos e graúdos pulavam e gritavam numa coreografia algo desafinada. Em especial à passagem das máquinas fotográficas ou de filmar das equipas de reportagem que vagabundeavam a fazer horas para entrar no tapete verde do Estádio Nacional.
Festa no Jamor é sinal de música. Muita e variada com sons a atropelarem-se uns aos outros. Da canção popular, ao ritmo de “...ajoelhou vai ter que rezar...”, um hit nacional que levou a um casal a dar os primeiros passos da tarde, à de cariz mais eletrónica, com um DJ de serviço, passando pelas diversas notas de acordeões e o rufar dos tambores.
O amor sobrevive a tudo. Até aos corações divididos clubísticamente
Houve quem dormisse de véspera como foi caso de dois amigos que embora morassem perto, Sobral de Monte Agraço, Torres Vedras, resolveram montar uma tenda paredes meias com a Avenida Pierre Coubertin. Do lado do Vitória, houve quem tivesse chegado poucas horas antes do encontro... vindo da Suíça.
Os adeptos vieram dos quatros cantos de Lisboa, da cidade que tem a estátua do Rei D. Afonso Henriques, de Portugal Continental e das Ilhas. Um casal, vindo do Porto, representa a união e o exemplo claro que o amor consegue sobreviver a tudo, mesmo a questões clubísticas. Ela vestida dos pés à cabeça de encarnado. Bom dos pés é uma figura de expressão porque o calor que a manhã antecipava para a tarde de 28 de maio (que a chuva viria a trair) pediu que a indumentária ficasse reduzida a uns calções e um top. Ele, como um anjo, vestido de branco, a torcer pelo onze da Cidade-Berço.
A fé dos adeptos vimaranenses estava bem estampada nas camisolas da última presença no Jamor, em 2013, ano em que curiosamente Rui Vitória e o Guimarães subiram as escadas de acesso à Tribuna de Honra para levantar a Taça de Portugal. Do lado encarnado, “Somos Tetra” ou “36” pintavam costas e corações.
Divididos por parques, os adeptos dos dois clubes estavam entre “os seus”. Os movimentos entre as zonas representavam uma vontade de reagrupar.
Se uns “putos” do Guimarães mostravam os seus dotes com a bola nos pés, havia quem, do lado benfiquista, se entretivesse com um jogo de matrecos. Com uma curiosidade. No terreno de jogo defrontavam-se Benfica e... Sporting.
Com o aproximar da hora, a romaria ganhou o sentido das bancadas. Sul, norte e centrais ocupadas. Depois de um colorido e belo espetáculo no tapete verde proporcionado pela Força Aérea seria vindo do céu que a bola do jogo chegou.
A chuva não desanimou um encontro que é sempre carregado de misticismo e de magia. Início da partida, como consequência fim deste artigo... não... esperem. Ainda houve a festa dos vencedores (Benfica), o aplauso dos vencidos (Vitória de Guimarães) e com o Estádio Nacional já vazio, todos os caminhos foram dar, momentaneamente e de novo, às matas do Jamor. Porque ainda havia porco para comer e cerveja para beber.
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