Há países dos quais temos a impressão de que sabemos muito pouco, há outros de que temos a certeza de que não sabemos nada. Todas as informações que de lá saem — para nós, os curiosos comuns, e mesmo para os serviços especializados em saber tudo — são contraditórias, difusas e envoltas em mistério.

A Coreia do Norte está certamente no topo da lista destas nações em que o segredo é institucionalizado. Há dúvidas sobre a sua história, a identidade completa dos líderes (até mesmo a data de nascimento, descendência e a causa de morte), sobre o funcionamento do aparelho estatal e o que pensam os cidadãos. O mistério é considerado uma questão de sobrevivência, uma qualidade de soberania.

Vejamos, muito abreviadamente, a sucessão de acontecimentos que levaram a esta originalidade. No pós-II Guerra Mundial, com a derrota dos japoneses, uma parte das elites dos países do Oriente recém-libertados aderiram a uma leitura marxista da História. Em alguns venceram quase imediatamente — como a China, em 1949. Noutros ocorreram guerras civis com resultados diversos. Os norte-americanos, que tinham libertado a região (em colaboração com ingleses e australianos, diga-se), acharam, evidentemente, que o sistema comunista não é o que as pessoas querem, e acreditavam na chamada “teoria dos dominós”, também conhecida por “doutrina Eisenhower” (em 1957): se um país “caísse”, caiam todos os próximos. 

No caso da Coreia, foi logo dividida em 1945 por dois dos países vitoriosos; o Norte ficou sob a tutela da União Soviética e o Sul sob a dos Estados Unidos. Em 1950, o Norte iniciou uma guerra de unificação (ainda apoiado pelos russos) e os Estados Unidos acorreram a defender o Sul. Depois de anos de conflito intenso sem ganhos significativos de parte a parte, foi assinado um cessar-fogo em 1953, que ainda vigora. Note-se que não se tratou de um armistício, ou seja, um tratado de paz definitivo; estima-se que três milhões de coreanos tenham morrido num conflito que ficou por resolver.

Aqui cabe um parêntesis para explicar que a cultura da Península da Coreia é considerada pelos estudiosos como a mais antiga da região; terá começado no século XXIII antes da Era Cristã. Ou seja, é mais antiga do que a chinesa e, claro, muito mais do que a japonesa, que tem mais ou menos a idade daquilo a que chamamos cultura ocidental cristã, ou pós-românica, cerca do Século X. Ao contrário das outras culturas, que, tal como as pessoas, perdem vigor com a idade, a coreana parece que “refinou” e se tornou mais radical. Assim, a divisão nas duas coreias criou dois exemplos extremos de comunismo e de capitalismo, pois os dois sistemas são praticados com uma dedicação e persistência — uma “pureza”, se quisermos — que não parece ter acontecido em nenhum outro sítio. Um exemplo é que no Sul os adolescentes se suicidam por ter más notas, no Norte são enviados para “campos de reeducação”. (A antiguidade é um facto histórico, o refinamento expressionista uma opinião que compartilho com alguns observadores.)

Voltemos à História. O homem escolhido pela URSS para liderar a Coreia pós-guerra foi Kim Il-Sung. (Segundo o sistema asiático, o primeiro nome é o apelido, o segundo o nome próprio. Kim é um apelido muito comum, como o nosso Silva,) Il-Sung seguiu os soviéticos, que lhe deram apoio logístico total, até ao famoso discurso de Nikita Khrushchev a denunciar a barbárie estalinista, em 1953, que marca a cisão entre a União Soviética e a China maoista. Il alinhou como Mao e a Coreia desde então passou a seguir a metodologia e os apoios da China.

Quando a China entrou num entendimento com o Ocidente (1987) e a União Soviética desabou, (1989) a República Popular da Coreia, sem padrinhos, entrou numa miséria aterradora. Parca de recursos naturais, com uma agricultura de subsistência e dependente industrialmente, restou ao país apertar o cinto e fechar-se numa ditadura brutal, enquanto a Coreia do Sul prosperava espetacularmente na via capitalista.

A biografia oficial de Kim Il-Sung, como todas as biografias dos dirigentes norte-coreanos, está repleta de mitos, a começar pelo lugar de nascimento, que terá sido numa montanha sagrada, e pela data, 1912. É certo que lutou contra os japoneses e que fundou a “União Abaixo com o Imperialismo” em 1926. participou de várias disputas entre os comunistas chineses e coreanos, mas em 1935 rebatizou-se com o nome pelo qual é conhecido, que quer dizer “Kim tornou-se o Sol” e passou a ser o líder incontestado dos coreanos anti-ocidentais. Há relatos contraditórios que apontam outros líderes da revolta contra os japoneses, impossíveis de verificar.

À semelhança do seu primeiro patrono, Estaline, Il-Sung estabeleceu o culto da personalidade na sua pessoa, como líder absoluto do Partido e, depois do fim da guerra em 1953, do país. Seguiram-se purgas, “suicídios” e todos os instrumentos habituais para o tornar uma espécie de Rei Sol coreano. Como rei, foi sucedido por um dos seus filhos, Jong-il. 

Sabe-se que casou duas vezes e terá tido seis filhos; não se sabe porque Jong-il foi o sucessor escolhido. Jong-il, tal como todos os Kim depois dele, estudou fora. Era apreciador da cultura ocidental — expressamente proibida, aliás, ignorada, no país — especialmente cinema e música. Chegou a mandar raptar uma atriz que muito apreciava. Faleceu em 2011, deixando duas viúvas oficiais e, calcula-se, seis filhos declarados. 

O terceiro da dinastia, Jong-un é talvez o mais bem sucedido em termos de imagem internacional. Trump deu-lhe a importância que os Kim sempre desejaram e nunca conseguiram, ao encontrar-se com ele e declarar que tinham uma excelente relação. É de realçar que, para a ideologia do país, a Coreia do Norte representa o bem absoluto e está em pé de igualdade com os Estados Unidos, o diabo universal; como na religião cristã, a luta entre Deus e o Diabo é eterna e terminará um dia, quiçá, com a vitória do bem. Existe uma paranóia real (tanto de facto como figurativamente) de que o diabo está sempre à espreita para atacar. Daí que um país pobre, onde as pessoas morrem de fome regularmente, tenha construído uma indústria balística nuclear sempre em aperfeiçoamento.

Sabe-se que o dinheiro vem de um esquema de roubo de fundos montado ao nível internacional por um departamento especialmente dedicado a práticas financeiras criminosas. O dinheiro serve para comprar equipamentos nos mercados paralelos (há sempre negociantes de peças, chips e o que for negociável, “no questions asked”), mas não serve para comprar alimentos para a população, que é mantida a um nível de vida medieval. Um bom exemplo do sistema de controle é que os rádios, que todas as famílias são obrigadas a ter em casa, não têm sintonizador: só ligam na estação do Estado. O mesmo para a televisão, embora nas zonas fronteiriças seja possível captar alguns canais chineses... Telemóveis, nem pensar, Internet, desconhece-se o que seja. 

Jong-un nasceu em 1982 mas, apesar de só ter 41 anos, parece que não é muito saudável. De vez em quando há vagas notícias de que médicos estrangeiros são chamados a Pyongyang para tratar de alguma doença cardiovascular não identificada. Tem excesso de peso e fuma, isso é visível. A questão da sucessão coloca-se, evidentemente, apesar de ser mais uma decisão para ele tomar do que uma questão nos corredores do poder. Jong-un casou em 2009 com Ri Sol-ju, que começou a aparecer esporadicamente ao lado dele, e crê-se que têm três filhos. Contudo, ao que parece, o pai acha-os incapazes e/ou pouco confiáveis, porque tem promovido uma irmã mais nova, Yo-jong, de 35 anos.

Uma estranheza é Yo-jong ser mulher. A hierarquia norte-coreana é avassaladoramente machista. Embora a constituição — sim, o país tem uma constituição — preveja 20% de deputadas, essa quota nunca foi preenchida. Nas forças armadas, que são a instituição mais poderosa do país, para não dizer a única instituição poderosa, nem vê-las. É só generais geriátricos, com grandes uniformes cheios de medalhas penduradas até nas calças. A sociedade em si também é machista, formal e praticamente. Não se sabe como reagiria a nomenklatura à unção de uma mulher para supremo líder, mesmo sabendo que a nomenklatura aprendeu a não reagir.

Yo-jong, que é casada e tem um filho, tem feito uma carreira ascendente no aparelho do Estado. É Vice-diretora do Departamento de Propaganda e Agitação desde 2014, membro do Politburo desde 2017 e membro da Comissão de Assuntos de Estado desde 2021. (O que são estes órgãos não vale a pena esclarecer, os nomes falam por si). Mas, mais do que isso, tem aparecido em público frequentemente, tanto acompanhando o irmão, como a falar sozinha sobre assuntos importantes, o que é significativo — tanto mais que os filhos do irmão nunca aparecem nem dizem nada.

No Ocidente, onde não faltam especialistas oficiais e particulares a tentar destrinçar os meandros do poder norte-coreano, comenta-se que ela é assertiva e parece dizer o que quer, com a benção do irmão.

Barbara Decker, a jornalista do “The New Yorker” especialista no Reino Eremita”, cita várias fontes que estão certas que temos ali uma rainha em formação.

Os tempos estão mesmo a mudar. Até, quem diria, na Coreia do Norte.