Os americanos estão de cabelos em pé; apesar de 80% serem a favor da IVG, 48% dos quais com reservas, esta segunda-feira rebentou a bomba de que o Tribunal Federal, a mais alta instância jurídica do país, está a considerar seriamente abolir essa opção.

No sistema jurídico de lá, o Supremo Tribunal tem a capacidade de legislar, ou seja, as leis podem ser feitas no Congresso, no Executivo (decretos-lei, como cá), ou por decisões judiciais. Como? Os casos jurídicos são apresentados ao tribunal, que escolhe quais deve apreciar. Portanto, se o tribunal decidir que não vai apreciar, significa que não quer mudar a lei. Se decidir apreciar, pode mudar ou não, mas a decisão já quer dizer que o caso justifica uma nova avaliação. Chama-se a este sistema “consuetudinário”, porque as decisões passam a ser legais, ou seja, são de facto novas leis.

As leis do Supremo são federais, portanto aplicam-se aos 50 Estados, mas estes podem legislar de maneira ligeiramente diferente. Ou seja, se o Supremo proibisse a pena de morte, nenhum estado a poderia aplicar, mas poderia criar penas igualmente fatais, como trabalhos forçados para toda a vida.

É o caso da IVG; quando se tornou lei federal, em 1973 (já lá vamos), os Estados deixaram de a poder proibir, mas pelo menos metade criou condições tão difíceis que a tornaram impossível. No entanto, não sendo crime nacional, as pessoas podiam deslocar-se a um Estado próximo e fazer o que era impraticável no seu.

A lei de Janeiro de 1973, conhecida como Roe v. Wade, ou simplesmente “Roe”, foi um caso em que Norma McCorvey, já com dois filhos, decidiu abortar do terceiro, por não ter condições para sustentar uma família maior (três filhos já é uma família numerosa, em Portugal).  Norma, que no processo é mencionada pelo pseudónimo Jane Roe, admitiu ser “uma mulher sozinha, sem ter para onde ir, e sem ninguém no mundo que me possa ajudar”, decidindo, por isso, procurar uma interrupção voluntária da gravidez. Mas ela vivia no Texas, onde o aborto era ilegal, excepto quando a vida da mãe estava em perigo. Os seus advogados accionaram o procurador do condado de Dallas, que recusou a causa, e o caso de Norma foi parar ao procurador-geral do Texas, Henry Wade, que manteve a recusa prévia. Os advogados apresentaram então o caso ao Supremo, que o aceitou e veio a tomar a decisão histórica. Dos nove juízes, sete votaram a favor e dois contra, vencendo a opinião francamente maioritária. 

Em Portugal, como na maioria dos países que descriminalizou a IVG, houve um grande debate público quando a lei foi discutida, mas, uma vez aprovada — à segunda, já se sabe —, os opositores consideraram já nada haver a fazer, e os favoráveis que é um avanço irreversível das liberdades individuais, especificamente da liberdade da mulher. Cada vez há mais países a descriminalizarem o procedimento, com diversos graus de permissividade. Actualmente, apenas 24 países proíbem a IVG em todas as circunstâncias, incluindo em circunstâncias que impliquem a violação ou o incesto. Nos últimos 18 meses, três países fortemente religiosos — México, Argentina e Colombia —, descriminalizaram a IVG, sob certas condições. 

As discussões andam sempre em torno do tempo de gravidez em que se pode interromper — ou seja, a partir de que número de semanas o feto é considerado uma pessoa, independente da mãe — e as razões que permitem o procedimento médico. Há países onde não é preciso apresentar razão nenhuma, apenas um manifesto de vontade, e outros há que são extremamente restritivos. 

No caso dos Estados Unidos, cada Estado tem legislado de maneira diferente, sendo que em alguns as restrições são quase totais – caso da Flórida, em que o Governador Ron deSantis acaba de aprovar leis em que o aborto só é possível caso a saúde da mãe esteja em perigo, e ainda instituiu prémios para quem denunciasse casos. Mas, para todos os efeitos, a lei federal permite a IVG, o que faz uma enorme diferença. O facto é que, ao contrário dos outros países, os americanos anti-aborto, “pro-life”, como eles se declaram, nunca desistiram de anular a decisão de 1973. Não só as igrejas fundamentalistas não se calaram, como sempre houve grupos radicais que praticaram acções deploráveis, desde colocar bombas em clínicas até ficar em frente das instalações a insultar quem entrasse.

Entretanto, a composição do Supremo Tribunal vai mudando. Os juízes são vitalícios, e quando um morre, o Presidente escolhe outro, que tem de ser previamente aprovado pelo Senado. Desde que Newt Gingrich politizou completamente as decisões senatoriais, a partir de 1995 (fazendo os interesses do Partido Republicano sobreporem-se descaradamente ao interesse nacional) as escolhas presidenciais ficaram sujeitas a um escrutínio excruciante. O seu sucessor actualmente em exercício, o inenarrável Mitch McConnell, chegou ao ponto de se recusar a considerar um juiz escolhido por Barack Obama, Merrick Garland, sob a alegação de que ao Presidente só restava um ano de mandato, para depois aprovar a despachar, três juízes: Amy Coney Barrett, Neil Gorsuch, e Brett Kavanaugh, já no final da presidência Trump. O resultado é que o tribunal tem agora uma maioria conservadora.

“Conservadora”, talvez não seja a etiqueta apropriada. Os três juízes escolhidos por Trump são cristãos fundamentalistas assumidos e pertencem a um grupo chamado Sociedade Federalista (Federalist Society) que há anos tenta impor uma visão “nativista” da Constituição, ou seja, que os princípios do documento de 1788 não devem ser modificados. (Estamos a simplificar, pois há mais ideologia que agora não vale a pena esmiuçar.) Quando foram ouvidos no Senado, os três juizes contornaram a questão da IVG, reforçando todos o princípio consuetudinário – o que já está na lei não se deve mexer. E a questão levantou-se porque Trump, sempre confrontacional, tinha dito que as suas escolhas judiciais tinham a intenção, entre outras, de reverter Roe v. Wade, e porque o movimento “pro-life” sempre trabalhou para que a mudança um dia pudesse ocorrer.

E agora, finalmente, sempre parece vir a ocorrer. O que aconteceu é que o Supremo Tribunal aceitou considerar um caso, “Dobbs v. Jackson Women’s Health Organization”, que é precisamente sobre a IVG. A aceitação levantou fortes suspeitas da parte dos grupos pró-IVG, mas essas suspeitas confirmaram-se esta segunda-feira: num caso inédito de fuga de informação, a revista “Político” teve acesso a um “draft” preparado pelo juiz Samuel Alito que, caso venha a ser aprovado pela maioria do Supremo, acabará mesmo com a descriminalização federal da IVG. O documento não oferece dúvidas: “Achamos que Roe e Casey devem ser substituídos. Está na altura de considerar o que está na Constituição e passar a questão do aborto para os representantes eleitos pelos eleitores (os órgãos governamentais dos Estados).”

Ora, a questão do texto original da Constituição, é precisamente o que não está escrito; na altura, as mulheres não existiam legalmente. O documento, escrito só por homens, não lhes dá direitos, aliás, nem se refere a elas. Portanto nada diz sobre gravidez, ou qualquer outro assunto relacionado com o sexo feminino. Também não fala de relações entre pessoas do mesmo sexo ou de sexos diferentes, e de muitos outros assuntos que posteriormente se levantaram e foram resolvidos com emendas constitucionais ou decisões do Supremo Tribunal. Sobre isto, Alito escreveu: “A Constituição não faz referência expressa ao direito de abortar, e portanto, aqueles que afirmam que este direito está protegido, têm de provar que está de algum modo implícito no texto.” E acrescenta: “A decisão de descriminalizar a IVG, que não está na Constituição, considerou que faz parte do direito à privacidade, mas esse direito também não é mencionado na Constituição”.

Mais claro, é impossível. São as ideias federalistas, em marcha. Vale a pena ler um artigo de Jill Lepore na revista New Yorker: 

“(Se a decisão for esta) em poucos meses cerca de metade dos Estados Unidos poderá estar a desobedecer à lei quando decidir interromper uma gravidez. Isso será, em grande parte, porque o juiz do Supremo Samuel Alito se surpreende por não haver nada sobre o aborto no documento de quatro mil palavras escrito por 55 homens em 1787. Realmente não há nada nesse documento que estabeleça legislação sobre gravidez, úteros, vaginas, fetos, placentas, sangue menstrual, seios ou leite materno. É um documento que não diz nada sobre mulheres. O mais fundamental é que não há nada lá escrito — nem nas circunstâncias em que foi escrito — que sugira que os seus autores pensassem nas mulheres como parte da comunidade abrangida pela expressão “Nós, o Povo”.

Não havia mulheres entre os delegados da Convenção Constitucional. Não havia mulheres entre as centenas de pessoas que participaram nas convenções estaduais que ratificaram o documento. Não havia mulheres juízes. Não havia mulheres legisladoras. Nessa época, as mulheres não podiam ser eleitas ou candidatar-se a nenhum cargo. Nem podiam votar. Legalmente, as mulheres não eram consideradas pessoas.

Abordar a IVG como uma questão feminina é uma postura tipicamente norte-americana. Não estando totalmente errada, ainda assim é apenas uma parte da situação. Em Portugal, por exemplo, nunca foi vista sob esse ângulo; foi (ou é) mais uma questão moral. De qualquer maneira, o facto é que estamos mais à frente, civilizacionalmente falando. Ou vamos estar, muito em breve. Não deixa de ser impressionante ver com os olhos abertos como uma cultura andar para trás.

Mas que sei eu, sou apenas um homem...