1. No momento em que escrevo, a Assembleia Geral da ONU prepara-se para condenar a declaração de Jerusalém como capital de Israel feita pelos Estados Unidos da América. Os últimos dias foram pródigos em guerrilha trumpista. A embaixadora dos EUA na ONU ameaçou as nações da Terra via Twitter: anotará o nome de todas as que condenarem a decisão dos EUA. As proscritas serão entregues ao patrão Donald Trump, que por seu turno ameaça tirar-lhes o dinheirinho.

Foi Trump, ele mesmo, quem nomeou esta embaixadora sem experiência anterior de diplomacia internacional: Nikki Haley, originalmente Nimrata Randhawa. Filha de imigrantes sikhs do Punjab, converteu-se ao cristianismo, é metodista praticante, tornou-se governadora da Carolina do Sul com apoio dos neo-cons do Tea Party, casou com um oficial veterano que combateu no Afeganistão, têm dois filhos adolescentes.

Os funcionários garantem o sistema. O mal sempre foi banal, acontecimento é o contrário.

2. Que nações mais dependem de financiamento dos EUA? Israel à cabeça, por aí tudo certo. Já o Egipto, que propôs esta condenação, tem mais a perder, está nos primeiros lugares da ajuda. Uma ajuda que na boca de Trump se transforma em suborno.

Entretanto, o assunto já fez uma baixa na ONU. O comissário dos Direitos Humanos, Zeid bin Ra'ad al-Hussein, um jordano, não quer “implorar de joelhos” por Jerusalém, e desistiu de se recandidatar. Li que António Guterres lhe terá pedido para refrear críticas à decisão de Trump. Uma decisão que contraria tudo o que a Assembleia Geral da ONU votou desde sempre.
Claro que no Conselho de Segurança é diferente, porque aí os Estados Unidos da América têm poder de veto, e basta um para vetar.

3. No meio destas notícias apareceu-me uma aparentemente não relacionada: aos 42 anos, uma judia ultraortodoxa de Mea Sharim deu à luz o seu 20º filho. Mea sharim é um bairro tradicional de Jerusalém habitado por “haredim”, os judeus utraortodoxos que vivem para o estudo da Torah (homens) e para a gestação de novos judeus (mulheres). O parto foi fácil, bebé e mãe encontram-se bem, acrescentava a notícia.

Há muitas formas de lutar por Jerusalém, ocupar Jerusalém, conquistar Jerusalém, da arqueologia à demografia. O primeiro-ministro israelita Bibi Netanyahu não é religioso mas os “haredim” dão-lhe imenso jeito contra a alta demografia palestiniana. Foi também assim que Israel mudou nas últimas décadas, que a esquerda israelita mirrou, que Jerusalém se transformou num formigueiro de ultraortodoxos, incluindo a parte Leste, palestiniana, ilegalmente ocupada e anexada.
Mea Sharim ficava a um passeio a pé da casa em que morei, quando morei mesmo em Jerusalém, há 12 anos. Foi o único lugar do mundo onde uma mulher veio com as próprias mãos desdobrar mais o meu lenço para que cobrisse totalmente os braços. Uma “haredi”, de peruca, cabelo rapado por baixo, de modo a não distrair o marido da sua missão sagrada. Pobres, cheios de filhos, que se encherão de filhos. Carne para canhão, ainda que não vão à tropa.

4. Um português — um, que eu saiba — viu com os seus olhos, dia a dia, a transformação de Jerusalém não apenas ao longo dos últimos 15 anos em que a conheço, mas praticamente ao longo dos 50 que tenho de vida. Viu, porque a viveu, toda a ocupação israelita a seguir à Guerra dos Seis Dias. E encostado à Cidade Velha, porque aí foi a sua morada todas essas décadas, o dédalo de ruas palestinianas que rodeiam a parte Leste das muralhas, casas de pedra, janelas em arco, ruas a cheirar a hortelã, cardamomo, pão saído do forno, café acabado de torrar, bruá de mercadores, muezzin e sinos, sombra de pinheiros, perfume de jasmim.

Os colonos foram alastrando por Jerusalém Leste. Vieram contingentes de judeus russos depois do fim da URSS. Judeus de todo o mundo dispostos a engrossar a Grande Israel. Rebentaram as intifadas palestinianas, pedras voaram frente à casa do meu amigo, batalhas campais de miúdos com pedras contra soldados de metralhadora, e depois as bombas suicidas na segunda intifada, no auge da qual aterrei pela primeira vez em Jerusalém, e fiz esse amigo para sempre.

Foi Adelino Gomes, um dos meus mestres, quem me deu o contacto dele, tinham-se conhecido num Natal mais recuado em que Adelino gravara para a rádio uma Missa do Galo palestiniana comentada por ele. Porque este meu amigo era frade dominicano, Francolino Gonçalves, professor de gerações na Escola Bíblica e Arqueológica de Jerusalém. Um dos grandes exegetas mundiais do Antigo Testamento.

Encontrámo-nos então a primeira vez na segunda intifada, Abril de 2002. Por um daqueles acasos, eu estava alojada do outro lado da rua dele, no mesmo bairro onde vim a morar, de modo que fomos sempre mais ou menos vizinhos nas vezes em que estive na cidade. Escrever-lhe a dizer que ia chegar era das primeiras coisas, depois visitá-lo, a cada vez ouvi-lo mais céptico, mas sempre, ainda, com uma gargalhada transmontana.

E se escrevo no passado é porque frei Francolino morreu este Verão, um par de dias depois de eu partir de Jerusalém. Vi ao longo dos 15 anos em que conversámos como lhe custava a indignidade, o rebaixamento, a humilhação humana, e apesar de tudo, creio, não deixou de ter uma esperança. Como, por mais que sempre passasse o Verão em Trás-os-Montes, entre os seres queridos, incluindo muitas árvores, Jerusalém não deixou de ser a sua casa escolhida.

Nunca o entrevistei, era um pacto, combinação sempre adiada, ele não queria pôr em risco ninguém, começando pela escola. E sobre ele e dele continua quase tudo por dizer. Muito por ler, espalhar a sua obra.

5. Em 2005 passei o Natal entre Jerusalém e Belém. Frei Francolino fez parte desses dias. Doze anos depois a ONU continua a votar resoluções sobre Jerusalém, como nos últimos 50 anos. Agora há um egomaníaco insuflável na Casa Branca, e o teatro da mediação dos EUA acabou. Desde que voltei de Jerusalém no Verão, o que coincidiu com a morte do meu amigo, tenho pensado como será difícil voltar lá, por todas as razões. Mas não deixei de ter saudades, as estranhas saudades de uma cidade criada individualmente, que de certa forma não existe para mais ninguém como para cada um. A diferença, tratando-se de Jerusalém, será ela dizer respeito a tanta gente, como poucas no mundo. De algum modo, é um espelho da nossa deriva, a tremenda deriva humana. Faz agora 2017 anos, não?

Frei Francolino acreditava que sim, nesse nascimento.

6. No momento em que termino, a votação da ONU já aconteceu. A declaração de Jerusalém como capital de Israel foi condenada por maioria esmagadora, 128 países. Apenas sete nações, além de EUA e Israel, votaram contra a condenação, ou seja estiveram ao lado de Trump: Togo, Micronesia, Nauru, Palau, Ilhas Marshall, Guatemala e Honduras. Mas 35 abstiveram-se, 21 estavam ausentes da sala. Muita cobardia, aquilo a que muitos chamam estratégia.

Tudo somado, Jerusalém, minha um bocadinho também, não será capital unilateral de nada. E boicotar Israel não exclui ir lá, ao contrário.