Não há Paez, malas de marca nem vê-las, e, na Amora, estamos no reino dos androids (até a aplicação da Festa do Avante! apenas existe para Android). Mas, em contrapartida, há t-shirts revolucionárias, sacolas a tiracolo, boinas à Che, colares, brincos e outros adereços que nos levam de volta àqueles anos 80 em que Portugal era tardiamente hippie (não confundir com hippie-chic, isso foi do outro lado do rio, na Bela Vista, uns meses antes).

Há quase vinte anos que não ia à Festa do Avante!. Esta Festa pareceu-me mais familiar – mas, provavelmente, dir-me-ão os mais novos, é porque estou mais velha. Há aquele efeito de nos (re)vermos nos outros – quando estamos grávidas também só vemos mulheres grávidas. Mas, mesmo assim, é factual que se vêem muitas famílias. No relvado, sob um calor que transgride as regras convencionadas da temperatura politicamente correcta, há várias famílias que se espraiam sob mantas ribatejanas (sim, mantas ribatejanas, das quentes), toalhas de praia, esteiras de campismo. Há geleiras daquelas azuis inconfundíveis, há cadeirinhas desdobráveis, há carrinhos de bebé.

À minha frente, alinhadas enquanto se aguardava o discurso de Jerónimo de Sousa, estavam três gerações. O homem de tronco nu, calções e ténis de caminhada teria quarenta e poucos anos. É um filho de Abril e do PREC. Do lado direito, tem um filho com não mais de 10 anos. Do lado esquerdo tem o pai, terá mais de 70 e menos de 80. A mulher (namorada?) está de pé, descalça, usa biquíni, lenço hippie no cabelo, calças largas, de padrão colorido, a lembrar as mil e uma noites. Estão em silêncio, estão juntos, e mesmo a criança de 10 anos mostra que compreende o ritual.

Mais atrás, outro filho de Abril não se verga ao calor nem ao cansaço com que o calor nos verga. De pé, quase sempre imóvel, bandeira em riste. Só o iremos ouvir, com voz de comando, quando o alinhamento o exigir. Sabe o seu papel. A luta continua.

Há muitos casais. Casais de novos, casais de velhos, casais de meia-idade. Muitos casais de mão dada – poucos casais de braço dado. Impressionaram-me sobretudo os mais velhos. Quase todos têm no olhar uma certeza qualquer. Estão juntos, continuam juntos, há qualquer coisa ali que lhes faz sentido e que os faz ter sentido.

Há um clima de festa. Desde que entras, até que sais. Boa festa, camarada. Correu tudo bem, camarada. Se estás cá, és do nossos. Se estás cá, sabes porque estamos cá.

Há menos selfies e mais fotografias. Há bastante menos selfies. Não são proibidas – em jeito do que Alice Cooper propõe caso fosse eleito presidente dos Estados unidos – mas não são tão procuradas. Nada que se pareça com o festival do outro lado do rio. Ou outro qualquer. Há mais fotografias e mais máquinas fotográficas. Impossível não pensar na conotação ideológica de uma e de outra, o indivíduo e o colectivo.

"Sometimes you win. Sometimes you learn" leio numa t-shirt. E é qualquer coisa como isso que anda no ar. Não vi gente zangada. Decerto que me cruzei com gente que traz em si alguma amargura, alguma desilusão – mas parece que deixaram tudo isso lá fora por três dias. Por três dias o comunismo é apenas uma ideologia do bem que traz a felicidade às pessoas. Por três dias, se assim se quiser, canta-se, come-se, bebe-se, contam-se histórias heróicas de quando os justos ou os corajosos ou os revolucionários venceram aqueles que ganham sempre. Por três dias.

"Não desistiremos. Este combate tem de ser vencido", diz Jerónimo lá do palco. Os punhos erguem-se. A luta continua. (Usas o punho esquerdo ou o direito, pergunta uma garota de 16, talvez 18 anos, à amiga ali ao lado).

Por três dias há pessoas que dançam umas com as outras em qualquer parte. Ao ritmo hispânico, brasileiro, até do fado. Por três dias a carvalhesa parece fruto de uma qualquer poção mágica activada pelo som. Aos acordes da música, há um momento suspenso e depois é a festa-que-não-há-como-esta e a certeza que o sol brilhará para todos nós.

Regressar à Festa do Avante!, vinte anos depois, teve qualquer coisa de viagem no tempo. Há ali, simultaneamente, um tempo que parou e um tempo que nunca deixou de continuar. Duas coisas racionalmente contraditórias mas que coexistem. Ainda se diz URSS – mesmo na era da Rússia de Putin. Cuba é um ícone imaculado do comunismo – mesmo depois do desfile da Chanel. Ao mesmo tempo que a Venezuela continua a representar a luta do proletariado contra o grande capital e no espaço do Partido Comunista Espanhol jovens e menos jovens entoam, emocionadamente, hinos que lembram o massacre de operários.

No meu estatuto de observadora fiquei a pensar nos reformados, nos professores, nos funcionários públicos de forma geral que por ali andavam. Arrisco dizer que seriam em maior número do que agricultores, mineiros ou operários fabris. Grupos que podem encontrar amparo numa ideologia que desiste há demasiados anos de fazer revisões periódicas e reality checks. E que por isso corre o risco de se tornar irrelevante ou apenas uma festa que se faz durante três dias.

Hasta la victoria, siempre.

Tenham um bom fim-de-semana

Outras sugestões:

Não se trata propriamente de um lançamento, mas só agora cheguei até ao livro e ao artigo escrito pela Fortune sobre a experiência de um jornalista de 52 anos que foi contratado para trabalhar numa startup (e não é uma startup qualquer, trata-se da Hubspot, um nome bem conhecido nas áreas da tecnologia e do marketing. Dan Lyons escreveu o livro "Disrupted: My Misadventure in the Start-Up Bubble" e a Fortune publicou a sua história sob o título "My year in Startup Hell". Nem tudo é um conto de fadas.

Aviso prévio: não é uma piada. Sobretudo porque o protagonista se leva muito a sério. E o protagonista é nada mais nada menos que Kim Jong Un, o mesmo que anda a fazer a terra tremer em testes nucleares. Qual é a novidade no reino de Kim? O sarcasmo foi banido. Aparentemente, na Coreia do Norte, algumas pessoas fazem comentários e dizem coisas doutrinadas pelo regime – como, por exemplo, é tudo culpa da América – mas não são sinceras. Estão a ser sarcásticas, imaginem só.