1. Línguas de Jerusalém por volta do ano 30 d. C.

Quando Mel Gibson imaginou a condenação e execução de Cristo no filme A Paixão de 2006, tentou ser mais realista do que os tradicionais filmes bíblicos em que tantos judeus como romanos falam inglês… Pôs, assim, os judeus a conversar em aramaico e os romanos a conversar em latim.

Quanto ao aramaico, nada a dizer: era a língua da rua entre os judeus da época − uma língua que, diga-se, ainda hoje é falada em algumas comunidades do Médio Oriente, embora com as inevitáveis mudanças que 2000 anos impõem a qualquer língua. O hebraico era já uma língua essencialmente litúrgica − não se falava na rua da época de Cristo, mas voltou a ouvir-se na zona muito depois, quando foi ressuscitada como língua nacional de Israel. A recuperação de uma língua litúrgica é tão espantosa como se hoje voltássemos a recuperar o latim e o ensinássemos, desde a infância, aos nossos filhos, recuperando uma língua que já não se fala há milénios.

Mel Gibson tentou fazer isso mesmo em pequena escala: recuperar o latim e voltar a ouvi-lo como língua da rua. O esforço é louvável, mas esbarramos logo no problema da pronúncia: a pronúncia do filme é a do latim medieval, em que o <c> antes de <e> ou <i> se lia como em italiano. Durante o Império Romano, a leitura seria sempre /k/. O nome de Cícero, em latim, lia-se /’kikero/.

Mas há um problema mais grave: o mais provável é que os romanos daquela zona falassem grego, a língua mais importante do Mediterrâneo oriental dessa época. Mesmo que falassem latim, não seria a língua da rua em Jerusalém. (Aliás, mesmo em Itália, o latim ainda não era a língua de todo o território. Muitas inscrições em Pompeia estavam em osco, uma língua itálica diferente do latim.)

A língua do Império no Levante era o grego. Foi em grego que se desenvolveu uma tradição literária importantíssima, que o latim viria depois a imitar (com grande sucesso, diga-se). Esta tradição inclui as obras homéricas, mas também o Novo Testamento.

2. Línguas do Império

O grego e o latim são duas línguas indo-europeias entre muitas, mas a sua história tornou-as línguas importantes, línguas do Império, línguas da escrita.

O latim foi a língua do Ocidente mediterrânico e o grego a língua do Oriente mediterrânico − mas as fronteiras não são claras: houve colónias gregas na Península Ibérica e também era possível ouvir latim em Jerusalém (embora menos do que pensa Mel Gibson). Os Romanos reinventaram o alfabeto grego, imitaram o esplendor literário do grego, foram buscar muitas palavras gregas e ainda hoje ouvimos muito grego quando falamos português.

O latim e o grego eram as línguas com gramática, as línguas da literatura, de Homero a Horácio. Cada uma delas tinha um conjunto de funções e um prestígio um pouco diferente. O grego era a língua da epopeia, o latim era a língua do direito − mas também foi depois a língua da epopeia, numa tentativa de alçar o prestígio da língua espelhada, muito tempo depois, na maneira como Camões escreveu uma epopeia em português. A tradução latina da Bíblia tornou-se a versão oficial, o Novo Testamento foi escrito em grego…

Podia continuar por um capítulo inteiro, mas não vale a pena: todos sabemos que o latim e o grego são as grandes línguas da Antiguidade − são as línguas clássicas, com uma importância só rivalizada, em contextos religiosos, pelo hebraico. É difícil exagerar a forma como estas duas línguas ganharam um lugar especial entre as línguas da Europa, um lugar marcado pela importância do seu uso na escrita.

3. Línguas que sobreviveram

Depois da Antiguidade, a sorte de ambas as línguas parece ter sido muito diferente. Hoje já ninguém afirma ter o latim como língua materna − embora muitos continuem a estudá-lo −, enquanto o grego é língua falada por milhões, na Grécia e em Chipre. No entanto, se olharmos com atenção para o que aconteceu com as duas línguas, percebemos que o latim nunca chegou a morrer − mudou, sim, e mudou muito. Mas isso também aconteceu ao grego…

Note-se: há muitas línguas que morrem − e morrem numa determinada data. Que data é essa? Diria que é o dia em que morre o último falante − ou, talvez, seja melhor dizer que uma língua morre no dia em que morre o penúltimo falante, pois uma língua que não podemos usar para conversar com outra pessoa já não é bem uma língua. Não foi o caso do latim. O latim nunca morreu: continuou a ser usado no dia-a-dia, sem interrupção, acabando por se dividir em vários dialectos que, por sua vez, se tornaram a base de línguas com normas e formas escritas particulares.

Já o grego sobreviveu da mesma forma que o latim: foi mudando, transformando-se noutra coisa, como todas as línguas.

As diferenças entre o caso do latim e do grego são o facto de o grego não se ter dividido em várias línguas (embora, para sermos precisos, convenha referir que existem algumas variantes do grego que são estudadas como línguas separadas) e de darmos o mesmo nome à língua tal como era falada na época clássica e na actualidade.

No entanto, as diferenças entre o grego antigo e o grego moderno são comparáveis (não necessariamente iguais) às diferenças entre o latim e, por exemplo, o português.

É a comparar que percebemos aquilo que é comum e aquilo que é diferente no que estamos a estudar.

(Nota: o grego antigo não era homogéneo, claro está. Variava no espaço − e variava no tempo. O grego clássico de Péricles é diferente do grego do Novo Testamento − este último é denominado grego koiné e serviu como espécie de língua franca no Mediterrâneo oriental.)

4. História do latim

O latim estava associado a uma entidade política − o Império Romano − que, a certa altura, desaparece, pelo menos na forma mais reconhecível. A língua − na sua forma popular − continuou a ser falada na rua e a ser usada na escrita. A escrita, melhor ou pior, manteve a gramática e o léxico da época de ouro da literatura latina.

Já a língua da rua não ficou parada. O latim falado mudou ao longo dos séculos, assumindo diferentes formas em diferentes territórios, assumindo a forma de um continuum dialectal: a variação fazia-se gradualmente, sem fronteiras marcadas entre os vários dialectos do latim; todos compreendiam os vizinhos, mas os habitantes dos extremos dificilmente se compreenderiam; por outro lado, acidentes históricos e geográficos criaram fronteiras mais marcadas aqui e ali. Não terá sido muito diferente do que aconteceu com o proto-itálico, com o proto-indo-europeu e com todas as línguas que vieram antes dessas…

Com o tempo − e falamos de muitos séculos − algumas das variantes do latim começaram a individualizar-se e vários reinos e condados assumiram-nas como línguas próprias − estes dois processos alimentaram-se mutuamente. É verdade que as línguas neolatinas são bem diferentes do latim, mas nunca houve um momento em que se pudesse dizer: o latim morreu e nasceu o português, o castelhano, o catalão, o francês, o italiano, o romeno ou outra das línguas latinas.

A transformação do latim nas línguas neolatinas foi um processo contínuo − e também um processo complexo, com várias influências de línguas anteriores e línguas vizinhas, entre outros interessantes episódios de um enredo que só conhecemos parcialmente.

Da mesma forma, mesmo durante os séculos em que a língua teve o nome de latim e era parecida com a língua que conhecemos das gramáticas latinas, a sua gramática e o seu léxico nunca estiveram parados. O latim tinha uma norma escrita e oral, mas variava − no espaço e no tempo. O próprio latim já vinha de línguas anteriores, que não morreram: transformaram-se no latim…

Em paralelo à sua transformação nas línguas neolatinas, o latim, na escrita, manteve-se importante em muitos âmbitos − a começar pelo eclesiástico − onde ainda hoje é usado e aprendido. É, de facto, um caso extraordinário de sobrevivência linguística. Continuamos a ter gramáticas, dicionários e uma imensa literatura em latim − se pensarmos que cada língua é um rio que percorre vales pouco iluminados e florestas obscuras até chegar ao que é hoje, o latim é um pedaço de rio iluminado por mil holofotes. Mas o rio vinha de trás e continuou…

(Sobre o funcionamento do latim, mas também sobre a sua História, temos a recente Nova Gramática do Latim, Quetzal, 2019, de Frederico Lourenço.)

5. História do grego

Já o grego passou pelo mesmo processo, mas sem a divisão em várias normas escritas. O grego clássico nunca deixou de ser estudado, pelo menos como forma de acesso à literatura da Antiguidade, mas o grego das ruas foi mudando, como seria de esperar, com tantos séculos de permeio e tanto que aconteceu, desde a existência por tantos séculos do Império Bizantino à integração dos territórios de língua grega no Império Otomano.

Nos séculos xix e xx, houve uma tentativa de aproximar a língua da sua versão clássica. Esse grego arcaizante chamava-se katharévussa, foi criado no século xix e chegou a ser adoptado como língua oficial da Grécia, até que o grego demótico, uma norma baseada no grego actual, foi declarado oficial nos anos 70 do século xx. As lutas entre as duas versões do grego foram terríveis. Chegou a haver mortos − e ainda hoje há quem lamente que o katharévussa já não seja oficial.

Na próxima semana, iremos ver o que aconteceu a uma palavra em particular em latim e em grego: água. Há muito para contar...

Baseado num capítulo do livro História do Português desde o Big Bang.

Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu livro mais recente é Assim ou Assado: 100 perguntas sobre a língua portuguesa.