Para explicar o que se passa hoje em Brasília seria preciso explicar Brasília em si, uma capital isolada, geográfica e politicamente, do dia-a-dia dos brasileiros.

Tudo o que se passa em Brasília – e passa-se muito, constantemente – não fica apenas em Brasília; irradia sobre todos os Estados da República Federal, Estados esses já com problemas ao nível dos seus orgãos de poder. Este vórtex de movimentações não é de ontem, pode dizer-se que tem décadas. Acompanhá-lo, é bem mais difícil do que seguir qualquer uma das fantásticas novelas brasileiras, pois nelas, pelo menos, há bons e maus, facilmente identificáveis, enquanto nesta só parecem existir maus. Os heróis de um momento são os vilões do momento seguinte, num rodopio que faz as delícias da comunicação social e radicaliza, aterroriza e confunde os cidadãos. 

Pegue-se num exemplo, entre tantos: Sérgio Moro foi herói nacional em 1999. Juiz em Curitiba, à data, expôs vários escândalos relacionados com o Partido Trabalhista (PT), então no poder (Operação Lava Jato, entre outras); sendo que a sua fama se deve especialmente a ter conseguido condenar o ex-Presidente Lula. Mas em 2018, Moro passou a vilão por ter aceitado a tutela do Ministério da Justiça de Bolsonaro. Entretanto, Lula, Luís Inácio Lula da Silva, passou, nestes anos, de Presidente da República a arguido, acusado de corrupção, para vir depois a ser ilibado, ao verificar-se que o impoluto Moro, afinal, não era um juiz politicamente imparcial. Como se justiça e política na mesma frase fossem substantivos compatíveis.

Está a seguir? Então prossigamos agora para Renan Calheiros: em 2013 era Presidente do Senado; em 2016 afirmou que o sistema político brasileiro estava "caquético", "falido" e "fedido", defendendo a aprovação pelo Congresso de uma reforma visando a modificação das regras políticas e eleitorais do país; em 2007 foi acusado de corrupção e demitido do cargo; e em 2016, o Supremo Tribunal Federal indiciou-o por peculato; tal não o impediu de, nesse mesmo ano, propor uma série de “dez medidas anti-corrupção”. Atualmente, é o Presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que acusa o Presidente Bolsonaro, e mais 78 pessoas – entre as quais ex-ministros, ministros, políticos, funcionários públicos, empresários, membros do chamado "gabinete paralelo" – e duas empresas, a Precisa Medicamentos e a VTCLog, tidas como implicadas na luta contra a pandemia de covid-19. A indiciação inclui o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, o atual titular da pasta, Marcelo Queiroga, Ernesto Araújo (ex-chanceler), Walter Braga Netto, ministro da Defesa, Onyx Lorenzoni (ministro, chefe da Secretaria- geral da Presidência), Mayra Pinheiro (secretária do Ministério da Saúde conhecida como "capitã cloroquina"), Roberto Dias (ex-diretor de Logística do ministério), Francisco Maximiano (sócio da Precisa), Flávio, Eduardo e Carlos Bolsonaro (filhos do Presidente e respectivamente senador, deputado e vereador), Bia Kicis e Carla Zambelli (deputadas “governistas”), os empresários Carlos Wizard, Luciano Hang e Otávio Fakhoury e os médicos Nise Yamaguchi, Paolo Zanotto e Rodrigo Esper.

Ainda consegue acompanhar? Então veja os onze conselheiros do Supremo Tribunal designados para julgar – ou não, a decisão compete à Procuradoria-Geral da República – os resultados da Comissão Especial (CPI) cujo relator foi Renan Calheiros: seis deles foram nomeados pelo então Presidente Lula, sendo que dois, Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli, tudo fizeram para sabotar as investigações de Moro – se calhar tinham razão... –, mais quatro que foram escolhidos por Dilma Rousseff, a Presidente que sucedeu a Lula e foi demitida (“Impeached”) por uma manobra orçamental que talvez não merecesse a sua demissão, mas interessava ao seu vice-Presidente, Michel Temer. O Conselheiro mais recente, Nunes Marques, já foi escolhido por Bolsonaro, levantou 100 ações questionando as conclusões da CPI.

Essas conclusões prendem-se com afirmações do Presidente. Da primeira, segundo a qual a covid-19 é “apenas uma gripezinha”, à última, de que as pessoas vacinadas contra a covid-19 são mais susceptíveis de apanhar SIDA. Também incidem sobre a campanha de Bolsonaro contra a vacinação, a recusa em comprar vacinas no estrangeiro e conluio com uma farmacêutica para sobrefaturar vacinas. Na terminologia brasileira os crimes são: epidemia com resultado de morte, infração de medidas sanitárias preventivas, charlatanismo, incitação ao crime, falsificação de documentos, emprego irregular de verbas públicas, prevaricação, crime de responsabilidade e crimes contra a humanidade.

Pelo sistema judicial brasileiro, a parte criminal é encaminhada à Procuradoria-Geral da República (PGR), enquanto a parte civil é sujeita a análise da Câmara dos Deputados, para possível abertura de processo de impeachment. Por fim, as acusações de crimes contra a Humanidade serão remetidas ao Tribunal Penal Internacional (TPI).

Provavelmente, o processo criminal irá arrastar-se na mesa de Augusto Aras, o atual Procurador-Geral da República, nomeado por Bolsonaro. E mesmo que Aras seja pressionado a acelerar o processo, o tempo que demorariam as inquirições seria mais longo do que a permanência do Presidente até às eleições de 2022. 

Quanto à parte civil, é preciso que os 24 partidos, agrupados em “bancadas” – grupos informais com interesses comuns –, se entendam, o que não será fácil. Atualmente, há seis bancadas, que se sobrepõem parcialmente. Três delas são popularmente conhecidas como “Evangélica”, “Ruralista” e “BBB” (Bala, Bíblia e Boi). Os nomes dizem tudo.

A acusação de “crimes contra a Humanidade”, ultrapassa o âmbito nacional, mas o processo junto do Tribunal Penal Internacional será inexoravelmente lento. 

Concluindo, Bolsonaro está para ficar. Mas, também, considerando os interesses conflitantes em jogo, dos quais só nos referimos em parte, que diferença faz?

A diferença poderá acontecer em 2022, com a eleição presidencial. Nesta altura as sondagens são confusas, refletindo as hesitações e a radicalização do eleitorado. Segundo algumas, Lula está à frente; segundo outras, Bolsonaro ainda pode ganhar. Há, neste momento, onze pré-candidatos, mas os outros, entre velhos concorrentes, como Ciro Gomes, novos, como Sérgio Moro, e surreais, como Simone Tebet, aparecem com prognósticos de um dígito. A luta vai ser polarizada entre Bolsonaro e Lula, o que não é propriamente um cenário idílico para o país. Se a direita vencer, lá se vão a Amazónia, os índios e a ecologia em geral, para não falar no porte de arma livre e a roubalheira evangélica. Se ganhar a esquerda, a vingança será terrível e apanhará toda a gente. 

Entretanto, vença um ou outro, a corrupção, a confusão, a criminalidade e os outros males que afetam o país continuarão – como parece ser o seu destino.

É difícil viver sem esperança.