Quanto a cerimonial, é coisa linda de se ver. A Rainha, vestida à civil, com um dos seus icónicos chapéus e a sempre presente bolsa, fala na Câmara do Lordes, sentados e revestidos com as suas imponentes capas vermelhas. Os Comuns são convidados a assistir de pé, na geral. Há vários salamaleques institucionais, como o fechar da Câmara dos Lordes até que o representante dos Comuns lhe dê duas pancadas, abrindo-a. O cetro real, um pé de mesa dourado de tamanho e peso consideráveis, é solenemente levado numa almofada. A coroa inclui 23.578 pedras preciosas, inclusive os dois Cullinan que são os dois maiores diamantes do mundo, e peças que datam do século XII. Pesa um quilo, e os 91 anos da senhora já não lhe permitem equilibrar aquele monumento na cabeça enquanto lê o discurso. Portanto fica majestosamente pousada numa almofada ao lado de Sua Majestade.

Toda esta pompa e circunstância é realmente o oposto do que parece. A Rainha lê um discurso que não escreveu, expondo um programa de Governo para o qual nem sequer foi ouvida. Não podendo dizer o “nós” majestático em relação à autoria, diz “o meu Governo” e “os meus ministros”. Os lordes, vestidos de Pai Natal e confortavelmente sentados à sua frente, têm cada vez menos poder, quase nenhum. Quanto aos Comuns, os membros do Parlamento, que ficam em pé ao fundo da sala, são os que realmente detêm o Poder – tanto legislativo como executivo (uma vez que os membros do Governo têm de ser parlamentares).

O discurso da Coroa de hoje era especialmente aguardado, uma vez que pela primeira vez Theresa May é obrigada a dizer claramente qual vai ser a política do seu Governo para os próximos cinco anos, com destaque para o modo como tenciona 'brexitar' o país – isto depois de ter feito uma campanha com um mínimo de promessas e um máximo de evasivas. O próprio estatuto de May está em discussão, uma vez que não tem maioria no Parlamento. Tem andado em negociações com os dez deputados do DUP, o partido unionista (protestante e pró-britânico) da Irlanda do Norte, que tem fama de ser ainda mais conservador que os conservadores ingleses. O DUP está disposto a vender caro os seus votos; quer, por exemplo, dois mil milhões de libras para a Segurança Social irlandesa, e as mais diversas concessões morais e materiais. Uma delas, muito complicada, refere-se à mais complexa situação criada pelo Brexit: a fronteira entre a Irlanda do Norte, que sai da União Europeia, e a Irlanda do Sul, que permanece. Fechar a fronteira criaria uma crise muito perigosa na Irlanda do Norte; a livre circulação de pessoas e bens manteria o território do Reino Unido com uma passagem aberta à Europa. Uma solução intermediária, que será provavelmente a negociada, custará uma fortuna em controlos alfandegários minuciosos e será quase impossível de funcionar.

May incidiu o seu discurso em dois pontos principais, o Brexit e a economia britânica depois da separação – que será dentro de dois anos, inexoravelmente. Quanto ao Brexit, os conservadores continuam a sonhar com uma separação dura e suave, ou seja, em que manterão privilégios (como circulação de pessoas e capitais no espaço europeu) sem contrapartidas (como controles da imigração europeia no Reino Unido e ausência de fronteiras para as companhias aéreas). Problemas sérios, como o facto dos fabricantes de automóveis ingleses serem propriedade dos fabricantes de automóveis alemães, não se sabe como serão resolvidos.

A ideia de que o Reino Unido negociará numa posição de força é contrariada à partida pelo que aconteceu no primeiro dia de negociações, na véspera do discurso da Coroa; o ministro do Brexit britânico, David Davis, cedeu imediatamente num dos pontos essenciais para os ingleses, que era que todas as negociações (custo da saída, mercado de trabalho, movimento de capitais, etc) fossem negociadas ao mesmo tempo. Michel Barnier, o negociador da União Europeia, impôs sem dificuldade aparente a agenda europeia: as negociações serão sequenciais, começando com o valor a pagar pelos ingleses para sair.

Esta partida débil dos ingleses deve-se a vários fatores, todos eles culpa dos próprios. Theresa May ainda não conseguiu fazer uma agenda de trabalhos concreta; a sua fraqueza no Parlamento impede-a de ser muito incisiva; e nem sequer conseguiu ainda negociar com o DUP uma maioria mínima. Por outro lado, os trabalhistas, fortemente apoiados pelas camadas mais jovens, anti-Brexit, tiveram uma subida substancial nas eleições e, embora Corbyn continue a ser vago em relação à separação, é evidente que o Labour não facilitará a vida ao Governo.

O segundo ponto fulcral do programa de May é a economia britânica. Por um lado, a senhora promete um país com uma indústria de ponta, especialmente em novas tecnologias e setores estratégicos, duas áreas em que tem sido bastante fraco. Por outro, fala de uma Grã Bretanha rainha do comércio mundial, com acordos bilaterais favoráveis de Leste a Oeste, quando nem a massa crítica do país nem a existência de blocos comerciais muito fortes (logo a começar pela própria União Europeia) fazem prever esse cenário.

Finalmente, May promete um reforço da segurança social, da educação e da segurança contra o terrorismo, áreas em que os conservadores têm cortado verba sistematicamente e não se percebe onde irão buscar novos fundos. Não houve qualquer menção aos dinheiros necessários para pagar aos médicos e enfermeiros – a maioria estrangeiros, ainda por cima.

Também não se falou nos custos estratosféricos e no trabalho labiríntico que será adaptar às leis e aos organismos britânicos toda a legislação e órgãos de Bruxelas, que Londres seguia e utilizava desde que entrou na União Europeia.

Resumindo, o Discurso da Coroa, com toda a sua pompa e circunstância, lembra uma daquelas casas nobres arruinadas, em que se janta no salão nobre, de fraque e à luz castiçais, mas não há dinheiro para pagar aos empregados de librés coçadas que servem o jantar.

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