Desde que existe imprensa, as relações entre o Poder e a Comunicação Social nunca foram fáceis, nem estão destinadas a sê-lo. Como dizia George Orwell: “Jornalismo é dizer aquilo que alguém não quer que seja dito; o resto é Relações Públicas”.
De facto, a Comunicação Social (CS), o “quarto poder”, que só indirectamente é reconhecido constitucionalmente (através da figura da liberdade de expressão e de informação) tem um papel fundamental em relação aos três poderes democráticos – legislativo, executivo e judicial – e que consiste, basicamente, em expor ao público a actividade desses poderes. Muitas vezes, só por levantar questões, tem um papel crítico, indispensável para que os governados saibam o que fazem os governantes.
Os jornalistas são parciais? Certamente. A imparcialidade não existe. Só a escolha de um certo número de notícias, de entre as milhares diariamente à disposição, já implica uma opinião. Mas, ao serem parciais, a favor ou contra, os órgãos da CS informam sobre situações que assim podem ser conhecidas e discutidas por toda a gente. É no equilíbrio precário entre a parcialidade de uns e a parcialidade de outros que se pode avaliar onde estará a verdade.
Nas sociedades com liberdade de informação, o poder político vê o poder jornalístico como um incómodo, mas um incómodo que precisa tem de ser aceite, pelo papel que tem junto da opinião pública. Quando um político é criticado por um órgão da CS, geralmente opta por uma atitude conciliatória, para não prolongar a questão e para mostrar que aceita democraticamente opiniões divergentes ou notícias incómodas. Nos bastidores, muitos políticos tentam calar a CS, comprando, intimidando, suplicando. É sabido.
Também é da História que a primeira preocupação de todos os regimes autoritários é controlar a CS. Quanto chegam ao poder absoluto, simplesmente censuram, perseguem e/ou eliminam. Quando querem ter uma aparência mais suave, compram e intimidam. Todos conhecemos casos de várias épocas e de todos os continentes; Hitler, Estaline, Salazar, Fidel, Pinochet, Erdogan, Putin... A lista é extensa.
Mas, independentemente do que o Poder considera, a opinião pública também se queixa da CS. Simplificando as muitas nuances, quem é de esquerda acha que a CS está vendida à direita, e quem é de direita vê a CS como esquerdista. Estamos numa época em que as pessoas classificam as notícias segundo as suas percepções pré-concebidas; se um artigo é favorável ao que pensam, está certo, se é desfavorável é “fake news”. Parece que a pertinência dos argumentos já não faz ninguém mudar de ideias.
O que nos leva de volta a Donald Trump. Logo a seguir à tomada de posse, entrou em confronto com a CS por causa do número de pessoas que assistiu à cerimónia – o maior de sempre, segundo ele, enquanto as fotografias publicadas nos jornais mostravam o contrário – e pela sua afirmação de que muitos eleitores votaram ilegalmente – um dado que a CS questionou, sem que o Presidente apresentasse um único caso concreto.
Trump e o seu ideólogo principal, Steve Bannon, afirmaram várias vezes, peremptoriamente: “a CS é o nosso inimigo”. Numa conferência de imprensa que ficou para a história, Trump acusou os media de serem mentirosos e desonestos, recusou-se a responder a jornalistas dos órgãos considerados hostis e até mandou calar alguns.
Este foi o primeiro degrau de uma escalada de hostilidade; depois de se queixar na generalidade, passou a atacar especificamente as publicações (e televisões) que não lhe agradavam.
Insistindo que apenas estão a fazer o seu papel, essas publicações não desistem das suas pautas desfavoráveis ao Presidente, até porque ele lhes fornece diariamente material, com as suas mentiras (facilmente comprovadas), evasivas e afirmações muito discutíveis.
Ari Fleischer, um republicano que foi assessor de imprensa de George W. Bush, afirma que “a relva está tão seca dos dois lados, que basta um fósforo para pegar fogo”.
Na Conferência de Acção Politica Conservadora, que decorreu agora, a 15 e 16 de Fevereiro, a hostilidade subiu outro patamar. A CPAC é um evento anual que reúne cerca de cem organizações conservadoras, unidas em torno de uma plataforma “cristã” que inclui, entre outras exigências, a educação religiosa obrigatória nas escolas e negação da Teoria da Evolução, a ilegalização da interrupção voluntária da gravidez e do casamento entre pessoas do mesmo género. É também uma coligação anti-imigração e anti-islâmico. Acontece anualmente desde 1973 e tem endossado todos os candidatos republicanos, começando com Ronald Reagan em 1976. Convém notar, a talhe de foice, que embora se trate da associação mais conservadora do panorama político norte-americano, com apresentações de estrelas como Ann Coulter ou Rush Limbaugh, nunca aceitara cordialmente as franjas mais reaccionárias e racistas; Steve Bannon, por exemplo, nunca tinha conseguido apresentar as suas teses e muito menos discursar.
Este ano, muita coisa mudou. Bannon foi um dos oradores mais aplaudidos, assim como Reince Priebus. E Bannon falou da CS em termos inequívocos: “Vocês acham que ELES (a CS) vão devolver o país (ao povo) sem lutar? Estão tristemente enganados!” Seria, portanto, na ótica de Bannon, o povo contra a CS. Mas o orador mais aplaudido e a estrela do encontro foi o próprio Trump, que falou com a sua franqueza habitual: “Os órgãos da comunicação social são os inimigos do povo!”
Ou seja, os jornalistas já não são os adversários do Governo; são os adversários do país inteiro, representado por ele, Donald Trump.
A mudança de discurso, não tão subtil, e apoiada entusiasticamente pelos participantes da CPAC, abre caminho para o passo seguinte, que é uma acção mais activa em relação aos órgãos de informação.
Coincidentemente, no mesmo dia em que Trump fazia esta declaração de guerra, ocorreu um facto inédito na política norte-americana: numa conferência “informal” de Sean Spicer, o Assessor de Imprensa da Casa Branca, alguns órgãos de informação foram impedidos de entrar. Concretamente, o jornal “New York Times”, a televisão CNN e o site da Internet “Politico”. Os jornalistas da revista “Time” e da Associated Press recusaram-se a participar, solidários com os colegas. Mas os correspondentes da ABC, CBS, “The Wall Street Journal,” Breitbart, One America News Network, “The Washington Times”, Bloomberg e a Fox News nada disseram. Contudo o “The Wall Street Journal”, que é conservador, já afirmou que não participará no futuro, a manter-se acesso selectivo às conferências de imprensa.
Não há como ignorar esta escalada. O sistema politico norte-americano não permite que Trump recorra a instrumentos como censurar jornais ou prender jornalistas; além disso há muitos republicanos, inclusive membros do legislativo, que não se sentem nada bem com esta situação. São conservadores e têm maioria nas duas câmaras, mas não estão dispostos a aceitar que se ultrapassem certos limites.
A questão concreta que está a incomodar Trump, para lá de todas as atitudes da CS que ele considera hostis – ou seja, as que não são laudatórias – é a famigerada e inexplicada “conexão Moscovo”. Com efeito, uma investigação bastante complexa de vários serviços de segurança vai mostrando cada vez mais ligações entre próximos de Trump e funcionários russos. Há também a inexplicável recusa de Trump em criticar Putin, acompanhada por uma tendência para o elogiar. Trump teve contactos mal explicados com os russos – o mais exótico terá sido ir a Moscovo para a apresentação de Miss Universo, um dos seus negócios.
Dizem as más línguas que este ataque de Trump é já a antecipar novas revelações incriminatórias com a gente de Putin. Mas isso são especulações. O facto concreto é que a guerra do Maior Presidente de Todos os Tempos com os Inimigos do Povo está apenas a começar. Haverá vítimas, e talvez a liberdade de expressão e de imprensa seja uma delas. Os direitos fundamentais, por mais antigos que sejam e consolidados que pareçam, nunca estão garantidos.
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