Volto ao caso do acórdão do Tribunal da Relação do Porto sobre a mulher violentada pelo amante e pelo marido. O entendimento radical que se pode fazer da Bíblia é também algo que está datado. Estamos numa outra era. Entendemos melhor a Bíblia, as questões dramáticas da tradução, das diversas traduções (excelente trabalho de Frederico Lourenço, acaba de sair o terceiro volume da sua tradução a partir dos textos gregos). Sabemos hoje factos históricos que colocam em causa muito do que tomámos por certo ao longo de séculos.

A iniciativa de reunir várias vozes de líderes cristãos partiu da academia, da Universidade Lusófona, onde existe um mestrado - há 20 anos – dedicado às Ciências da Religião. O mestrado é um espaço de aprendizagem e de estudo, de partilha e aquisição de conhecimento e, nessa perspectiva, inscrevi-me há um ano e pouco, tendo cumprido os dois primeiros semestres. Aprendi muito, li o que de outra forma não leria, reanalisei os meus mitos, conferi histórias e, sobretudo, entendi a enorme importância da religião na história da Humanidade, mesmo para quem se diz ateu ou agnóstico. Porque a religião não é exclusivo do intelecto, é da dimensão do emocional.

Eli Wiesel, ele que recebeu o prémio Nobel da Paz, escreveu: “Podemos não ser a favor de Deus ou contra Deus, mas não podemos ser sem Deus”.

Ora, a Bíblia, que reúne textos importantes para as três religiões monoteístas, nunca foi a melhor plataforma para ajudar a causa das mulheres. Pelo contrário. Mas existem crenças colectivas extraordinárias que não correspondem à verdade e uma delas, exemplo máximo de como um texto sagrado pode ser desvirtuado e usado para manipular as mentes, é a questão de Maria Madalena.

Se perguntarmos,  numa sala cheia de pessoas de diferentes proveniências e condições sócio-económicas, qual a profissão de Maria Madalena, a resposta é: prostituta. Não há qualquer dúvida sobre esta matéria, é fazer o teste. Eu fiz, este ano, na feira do livro do Porto, numa conversa com José Luís Peixoto sobre o Sagrado e o Profano.

Ora, não há nada da Bíblia que nos indique claramente que esta mulher exercia a mais velha profissão do mundo. Nenhum versículo, nenhum evangelho. Há uma mulher, Maria Madalena, liberta de demónios (Lucas 8:2) que podem ser interpretados de várias formas; que acompanha Jesus, que esteve perto da cruz (Mateus 27.56; Marcos 15.40; Jo 19.25), que pode ser entendida como discípula até por ser aquela a quem Jesus aparece depois de ressuscitar (Mateus 28.9; Marcos 16.9; Jo 20.11-18).

Para o comum dos mortais, em Portugal ou em outro país, em pleno século XXI, Maria Madalena era uma prostituta. Porquê? A Igreja encarregou-se de dividir as mulheres em três figuras centrais: Eva, a tentadora demoníaca; Maria, a mãe silenciosa e cumpridora; Madalena, a devassa. Esta construção foi feita pelos homens e a virtude de Maria Madalena foi violada e vilipendiada ao longo dos tempos por causa de um papa: Gregório ( 540-604 d.C), que achou por bem afirmar que sabia de fonte segura que a senhora, afinal, era uma prostituta. E até hoje, o mito mantém-se.

Não é só errado invocar os textos sagrados e a religião, com o seu manancial de subjectividade e contexto histórico tantas vezes perdido, para reclamar boas acções ao nível da prática da Justiça, como  também  é terrível perceber que os homens o fazem há séculos e séculos e as maiores vítimas são sempre as mulheres.

Por isso, esta iniciativa do departamento de Ciências da Religião da Universidade Lusófona não é de somenos, é uma grande conquista. São as religiões de inspiração cristã em defesa das mulheres. Este gesto que, para muitos, pode ser simbólico, é uma porta que se abre com a força de uma ventania a que podemos chamar justiça.

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