Desde criança que me lembro de ouvir e ler a expressão «Quem tem boca vai a Roma». Ora, de vez em quando, encontro quem tente corrigi-la. A versão certa seria «Quem tem boca vaia a Roma».

Vamos testar a ideia.

Imaginemos que «Quem tem boca vaia Roma» é, de facto, a versão mais antiga e «vai a Roma» é uma deturpação. Se for o caso, ao consultarmos os registos escritos da língua, vamos encontrar a versão «vaia Roma» nos registos mais antigos e a versão «vai a Roma» nos registos mais recentes. Mais: tendo em conta que esta expressão existe em vários idiomas, e sabendo que a deturpação só funciona na nossa língua («vaia» e «vai a» são semelhantes apenas em português), encontraremos certamente a versão «vaia Roma» nas outras línguas.

Pois bem, acontece precisamente o contrário: os registos escritos mais antigos são da versão «vai a Roma». Se formos ao conhecido Corpus do português (uma recolha dos registos escritos na nossa língua que encontra aqui), na sua secção de corpus histórico, encontramos várias ocorrências de «Quem tem boca vai a Roma» — em Machado de Assis, só para dar um exemplo. E a outra versão? Não aparece uma única vez. Só conseguimos dar com ela se pesquisarmos um corpus de textos mais recentes, retirados da Internet ou de jornais das últimas décadas.

Se olharmos para as outras línguas, encontramos a mesma expressão, pelo menos, em castelhano («Preguntando se llega a Roma») e em francês («Qui langue a, à Rome va»), todas semelhantes a «Quem tem boca vai a Roma». Também encontramos expressões com a mesma estrutura noutras línguas mais distantes: «Quem tem língua vai a Kiev», por exemplo, parece ser uma expressão do russo e do ucraniano.

Podemos, depois, acrescentar dados: a versão «Quem tem boca vai a Roma» é muito mais frequente, mesmo nos dias de hoje. O significado com que é usada faz sentido (já a versão «vaia Roma» só faz sentido noutros contextos). Os dicionários (e outras obras) registam «Quem tem boca vai a Roma».

Tudo somado, não há um único indício de que a versão «vaia Roma» seja a mais antiga. E, no entanto, ela passou a existir nos últimos anos. Os falantes gostam de inventar — e é assim que a língua se faz. No fundo, são duas expressões parecidas. «Quem tem boca vai a Roma» é a mais antiga e, de longe, a mais usada, com o significado «quem pergunta consegue chegar aonde quer». «Quem tem boca vaia Roma» é muito mais recente, muito mais rara e tem como significado «todos devemos reclamar perante o poder». Confesso: tendo em conta que a nova expressão é muito usada apenas como correção da mais antiga e não como expressão genuína, não tenho grande simpatia por ela...

Agora, o que é mesmo erro — objetivamente erro — é corrigir quem usa a versão «vai a Roma». Estes corretores estão a tentar impor uma expressão que não é mais antiga, não é mais correta e, ainda por cima, tem outro significado.
Por favor, deixem o velho ditado sossegado: «Quem tem boca vai a Roma»!

Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas na página Certas Palavras e fala sobre livros na Pilha de Livros. O seu mais recente livro é o Atlas Histórico da Escrita.