Há poucas semanas, em pleno Verão, almocei em Lisboa com um amigo português que há muitos anos vive em França. No decorrer da conversa, falámos de refugiados. Por causa de refugiados falámos da guerra na Síria. Por causa da guerra na Síria, falámos da Turquia. Acabámos com ele a perguntar-me se eu teria mais duas horas para que me pudesse começar a explicar o que se está a passar.

Facto: os acontecimentos no Médio Oriente são complexos, nada binários e não se explicam entre dois cafés.

Facto: a maior parte de nós, ocidentais, europeus, portugueses, não tem disponibilidade para perceber o que se passa no seu próprio país, quanto mais lá longe.

Facto: as duas premissas anteriores podem conduzir-nos a tempos muito negros e isto não é uma afirmação produzida por causa do novo episódio de Segurança Nacional que ontem estreou em Portugal.

Todos os dias caem bombas, todos os dias morrem pessoas, todos os dias pessoas cujos nomes não memorizamos trocam acusações. Impressionam-nos famílias com velhos e bebés a jogarem a sua sorte em barcos sofríveis ou em percursos acidentados. Impressiona-nos o bebé Aylan. Impressiona-nos Noujain Mustaffa, a adolescente do sorriso doce. Enfurece-nos o proto-ditador húngaro, mesmo que não saibamos o nome. Enfurece-nos a lentidão da Europa. Enfurece-nos o vizinho do lado que vê perigosos radicais onde vemos simplesmente pessoas.

Mas, ainda assim, continuamos sem tempo para perceber o que se passa e provavelmente devíamos, há muito tempo, ter começado por aí.

Ontem à noite, em Londres, Meryl Streep falou no evento “Mulheres no Mundo” que foi organizado este ano pela primeira vez. O The Guardian faz-nos chegar as vozes de várias mulheres presentes neste encontro. Streep, a actriz que dará voz a Emmeline Pankhurst no filme “Suffragette”, lembrou que, apesar do direito do voto estar consagrado no Ocidente, ainda há muito para fazer. Ursula von der Leyen, a primeira mulher a ocupar o cargo de ministra da Defesa na Alemanha, também falou. Foi ela, mãe de sete filhos, que introduziu a licença parental partilhada na Alemanha (quando era ministra do Trabalho) e foi ela que recordou a grande tempestade que isso causou entre alguns homens de meia idade instalados na política e a enorme ajuda que teve de outros homens instalados na política.

Depois falou a rainha Rania, da Jordânia e não podia não falar de refugiados. Na Alemanha entram por dia, actualmente, 10 mil refugiados. A Jordânia, país ‘encravado’ entre a Síria, o Iraque e Israel, tem no seu território 1,4 milhões de refugiados sírios. São 20% da população e têm uma fatia de 25% do orçamento do país alocada.

“É como se o mundo árabe tivesse sofrido uma série de tremores de terra e todos os dias sentíssemos as ondas de choque”, disse Rania. Ela, nascida numa família palestiniana, pediu, uma vez mais, que o Ocidente não se deixe contagiar pela propaganda extremista. “É muito perigoso pensar no ISIS como islâmico porque de islâmico não tem nada …”.

A noite fechou com o testemunho de Vian Dakheel Saeed, uma representante Yazidi (comunidade étnico-religiosa curda) no parlamento do Iraque. Lembrou as 5800 mulheres e crianças raptadas pelo ISIS. Lembrou que muitas são vendidas como escravas sexuais. Lembrou que mil crianças entre os 3 e os 10 anos são mandadas pelo ISIS para campos de treino para se tornarem a próxima geração de terroristas. A irmã também falou. Delan Dakeel Saeed, médica no hospital universitário Rezgary, falou das violações de mulheres e de meninas e do horror que presenciam.

Ontem estreou em Portugal a nova temporada de Segurança Nacional. Numa das cenas iniciais, um dos protagonistas, Quinn, agente da CIA, é chamado a contar aquilo a que assistiu em dois anos na Síria. O discurso é contido, factual, desprovido de qualquer sinal de emoção.

Quinn é pressionado por outro elemento da CIA, sediado em Langley, na Virgínia, para que diga se a estratégia seguida pelos americanos é correcta ou não. O discurso azeda e termina com duas possibilidades de estratégia: ou se enviam não apenas tropas, mas também batalhões de médicos e professores para as zonas de guerra ou se transforma toda aquela zona num parque de estacionamento.

Para os cínicos: antes de responderem, oiçam os relatos de pessoas como as irmãs Dakheel Saeed e depois voltem a pensar no assunto.

Tenham um bom fim-de-semana!

Leituras sugeridas

Já que estamos em maré de nos interessarmos pelo mundo dos outros, fica a sugestão para lermos Svetlana Aleksievitch, a jornalista e escritora russa que ganhou o Nobel da Literatura. Já agora, Aleksievitch é autora de uma série de cinco volumes intitulada "Vozes da Utopia” que foi iniciada com "A Guerra Não tem o Rosto de uma Mulher" baseado em entrevistas a centenas de mulheres que participaram na II Guerra Mundial.

Porque a música nos ajuda a levar a vida para a frente, levamos John Williams para o fim de semana. Autor de bandas sonoras inesquecíveis como as de Star Wars, Tubarão, Indiana Jones, Harry Potter e Jurassic Park , foi o escolhido pela American Film Institute (AFI) para receber o prémio carreira deste ano. O melhor tributo é escutar a sua música.

A fechar, uma notícia curiosa e quem sabe animadora. Talvez a imortalidade seja uma … anémona. Os cientistas descobriram que este animal, que já se julgou ser uma planta e que partilha ancestrais comuns com os humanos, pode encerrar o segredo da imortalidade.