(1) Crianças e (2) vestidos

Por esta altura, haverá apenas sete portugueses que ainda não conhecem o vídeo das crianças a invadir uma transmissão da BBC. Se o leitor é um dos sete, não perca mais tempo. Aqui tem a ligação.

O vídeo é, claro está, delicioso. Parece que estamos perante um fenómeno de viralidade (em português de lei, “partilhas em barda”) como já não se via desde o caso do vestido que era branco e dourado — ou azul e preto.

Pensava eu que este vídeo das crianças era o contraponto da foto do vestido. O vestido dividia-nos sem querer: ou éramos dos Azuis e Pretos ou dos Brancos e Dourados. Não havia meio termo. A divisão era irremediável, imediata, eterna. Um pouco como o chapéu do Harry Potter (quem não gostar desta referência a dar para o infantil, aguente a respiração que daqui pouco já trago aqui à crónica artilharia pesada da literatura).

O vestido dividia-nos. Já o vídeo das crianças vem unir-nos no riso sincero e deliciado de quem se reconhece no caos da vida em família — que tentamos esconder por trás da máscara que vestimos no mundo, ali bem à vista no fato do homem e nos livros em fila por cima da cama (até os filhos mandarem aquilo tudo abaixo). Ninguém pode deixar de rir e ficar deliciado com aquilo...

(3) Holofotes e (4) casais

Pensava eu. Mas, não: abro o Facebook e percebo que há quem tenha ficado sinceramente triste com o vídeo: encontrei gente inteligente, informada e normalmente tolerante a dissecar sem dó o comportamento daquele casal, como se todos estivéssemos preparados e soubéssemos o que fazer quando estamos em directo para a BBC e os filhos nos invadem o quarto.

Li quem dissesse que se sentiu incomodado. Li quem achasse que o único comportamento aceitável seria pegar na criança ao colo. E li ainda quem visse naquilo uma prova imediata do machismo daquele homem — porque era a mulher que estava a tomar conta das crianças.

Na verdade, não sabemos nada sobre aquele casal: não sabemos se dividem as tarefas ou não nem quem costuma tomar conta dos filhos.

Tanto quanto sei, pode até dar-se o caso de a mulher ser famosa na Coreia e o pai passar os dias a tomar conta dos filhos enquanto ela fala na televisão. Vai-se a ver e aquele foi o único dia em que foi o pai a falar na TV.

É provável? Não. Mas é possível. Não sabemos. Aquele momento nada diz sobre como é a vida daquele casal, para lá do estonteante facto de terem filhos que gostam de ir ver o que o pai está a fazer.

O momento não os define — mas, suspeito, vai marcar aquele casal durante muitos e bons anos.

(5) O Eça e (6) um porco

Eu avisei que vinha aí artilharia literária. Aqui está: lembram-se de «Frei Genebro», o conto de Eça de Queirós? Um frade de vida santa corta a perna a um porco para dar de comer a um eremita. Sim, Frei Genebro foi cruel para o pobre animal. Mas todo o resto da sua vida foi de uma perfeição a toda a prova.

Pois, quando morre, na balança divina, vemos toda a vida de santidade num dos pratos e, do outro, o pobre porco mutilado.

Deus, com o sentido de justiça implacável dos seres superiores, acaba por repelir o pobre homem com um gesto da sua gigantesca mão. «Então o Anjo, baixando a face compadecida, alargou os braços e deixou cair na escuridão do Purgatório a alma de frei Genebro.» És santo, mas aleijaste um porco. Estás tramado.

Nós todos, em conjunto, com o nosso olhar implacável sobre alguns pobres humanos apanhados no holofote da fama imediata, somos esse Deus implacável. Até ao dia em que nos calha a nós sermos as vítimas.

(7) O peso da vergonha

Estes momentos de vergonha pública são um problema porque vão acompanhar a pessoa ou organização de forma muito mais intensa do que acontecia há uns anos.

Reparem: há uns séculos, alguém envergonhava outra pessoa em praça pública e o envergonhado, se reconhecesse a culpa, lá baixava a cabeça — mas, enfim, sempre podia mudar de cidade ou esperar pacientemente que a memória dos vizinhos começasse a falhar.

Durante o século XX, a vergonha pública acabava por desaparecer mesmo se tivesse sido relatada nos jornais e na televisão. Anos depois, só quem fosse às hemerotecas saberia o que se tinha passado com aquela pessoa (há excepções, bem sabemos).

Hoje, basta ir ao Google. A vergonha acompanha a pessoa para sempre, à distância duma pesquisa na Internet.

Isto não seria grave se as razões para estas vergonhas não fossem tão aleatórias e, às vezes, tão triviais. Reparem: o tal homem do vídeo está a ser criticado porque os filhos entraram no quarto. Foi só isso que aconteceu!

Julgam que o caso não é sério? Proponho-vos a leitura de um livro (que, infelizmente, ainda não está traduzido em português): So You’ve Been Publicly Shamed. Verão as consequências duradouras e pouco conhecidas da exposição pública intensa e descontrolada nestes tempos de partilhas virais por milhões de pessoas.

Todos nós ouvimos falar destas famas fugazes, mas não sabemos o que acontece às vítimas quando a atenção desaparece. O autor do livro, Jon Ronson, foi saber. O resultado é magnífico, perturbador e hilariante. Vale bem a pena ler o livro.

E também vale a pena descontrair e rir daquele vídeo que nos faz lembrar como a vida familiar consegue ser deliciosa. Deixem lá as vergonhas públicas para quem as merece.

Marco Neves é autor do blogue Certas Palavras. Publicou em Janeiro o seu segundo livro, com o título A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa (Guerra e Paz). É tradutor na Eurologos e professor na FCSH/NOVA.