E o que é que isto tem que ver com Justin Bieber? Quando me perguntaram se estaria interessado em escrever um texto sobre ser adulto – mais perto dos 30 anos do que gostaria – e gostar da música de Justin Bieber, essas memórias de infância e adolescência vieram à mente imediatamente, sem filtro. Não que a sexualidade tenha de necessariamente estar associada a um determinado gosto musical, porque não está, mas no meu caso há paralelos que se estabelecem (ou que eu estabeleço para mim mesmo).

Durante demasiados anos vivi a admiração por artistas pop e as suas músicas de forma contida. Uma equação complexa, que envolve, por um lado, sentimentos de culpa por sentir intuitivamente uma admiração por canções pop cheias de açúcar, que se colam ao ouvido e que usam o coração na lapela sem pruridos, quando o que lia na suposta intelligentsia indie repudiava tudo isto, e, por outro lado, a culpa que sentia pela vontade que tinha de manifestar o desejo (também físico) por alguns desses artistas. A repressão da minha sexualidade foi seguindo de par em par com a repressão aos meus gostos musicais.

Quando parte destas questões se resolveram internamente percebi claramente que o conceito de guilty pleasure é verdadeiramente aberrante, porque valida toda a culpa e repressão que vivi. Daí que quando Justin Bieber surgiu pude abraçar este fenómeno de braços abertos. Foi há coisa de seis anos que o ouvi pela primeira vez e foi difícil de resistir a uma canção tão eficazmente pop como Baby, com o nível de inocência ideal própria do doo-wop dos anos 1950 com doses seguras (e pouco arriscadas) de r&b contemporâneo. O primeiro álbum, “My World 2.0”, tinha uma canção ainda melhor que “Baby”, intitulada “Somebody to Love”, que encapsula de forma perfeita toda aquela excitação pós-infantil/adolescente, onde não há filtro. Através das canções de Bieber (e não só, mas é dele que falo aqui) passei a viver essa utopia não experienciada, como se tentasse recuperar o tempo perdido, viver da forma livre o que em miúdo tanto ansiava, mas não tinha coragem para tal.

O melhor de tudo isto é que de ano para ano o canadiano foi melhorando musicalmente. “Believe”, o segundo álbum, apontava já para a transição de estrela pop além de ídolo juvenil. A despercebida coletânea “Journals” foi o início de tudo isso, arriscando novas fórmulas interpretativas, ancoradas no r&b moderno e distantes, por isso, dos trejeitos pop infanto-juvenis que caracterizaram as suas primeiras músicas.

Hoje já não é uma grande surpresa encontrar adultos (a maioria nas casas dos 20 e 30 anos) a ouvir Justin Bieber sem pudores. Não só porque, felizmente, a noção bafienta de guilty pleasure se foi desvanecendo, aos poucos, da cabeça de muitos, mas porque o próprio teve a sapiência de deixar a sua pop ser apropriada por vários espectros da música de dança, o que resultou em singles como “Where Are Ü Now”, “What Do You Mean” e “Sorry” que tornaram o nome de Justin Bieber bem mais transversal do que até então. Paralelamente, foram surgindo colaborações com artistas que claramente serviram para levar Bieber a outros públicos, desde os Migos, Sage the Gemini, Future, Lil Wayne, Travis Scott até, mais recentemente, Major Lazer, DJ Snake e Post Malone. Tudo isto aliado à muito partilhada campanha da Calvin Klein que fez com que fosse “aceitável” objectificar sexualmente o corpo deste rapaz de 22 anos, estratégia que faz parte deste manifesto de crescimento que conduz atualmente a sua carreira, tornou possível que Justin Bieber não seja apenas visto como um ídolo juvenil.

Só espero é que os miúdos de hoje não precisem de chegar à vida adulta para viverem e experienciaram na plenitude todos os seus gostos.

Desde 2015 que João Moço se dedica à comunicação dos festivais internacionais de cinema Queer Lisboa e Queer Porto, mas também colabora regularmente com o Centro Cultural de Belém, ou com publicações como o Diário de Notícias e a DIF. Mantém o Suspensão da Dúvida na Rádio Quântica, programa sem uma linha programática demasiado rígida sem ser o caos musical que lhe anda na mente, porque é, acima de tudo, contra toda e qualquer regra normativa.