1. Desta vez não basta algum cheirinho, ainda que urgentemente, como pede a canção. A dois dias da mais dramática eleição de que tenho memória, o Brasil precisa de todo o alecrim. Dizer que estamos aqui, estamos a torcer, estamos a ver, somos todos nós, somos muitos em democracia, e muitos mais seremos se no domingo o pior acontecer. Ou seja, se o mais aberrante candidato da história recente do Brasil passar à segunda volta.

Há eleições por, eleições para dizer sim. Não esta. Esta é uma eleição contra, uma eleição para dizer não. Claro que esse não tem muitos sins lá dentro: sim à democracia, sim, à liberdade. Sim ao melhor do Brasil. Mas começa por ser um rotundo não, unindo quem vai votar Fernando Haddad, Ciro Gomes, Marina Silva, Guilherme Boulos, ou algum dos outros. Qualquer um que não seja Jair Bolsonaro. Essa é a grande maioria desta eleição, todos os que se opõem a Bolsonaro. Ou seja, todos os que se opõem à tortura, à ditadura, ao racismo, à violência contra mulheres, lgbtiq ou indígenas, ao armamento da população, ao fascismo escancarado. Mais: escarninho.

2. Nunca, em momento algum da vida do Brasil, vi tanta aflição, tanta raiva, tanta tristeza, tanto nó na garganta, tanta insónia, mas também tanta determinação, tanto tudo-por-tudo, gente tentando convencer os parentes, os amigos, falando, apelando, se desesperando, cortando, nem sabendo o que vai restar da família, com quem vai passar o Natal. O que vai restar do país.
Pois se um é gay, outra é mulher; um é negro, outra é trans; um é indígena, outro é artista; um é portador de hiv, outro é portador de deficiência; um é pacifista, outra é de esquerda; e todos eles são alvo directo do homem que quer presidir ao Brasil, como é que quem está de algum modo na vida deles admite votar em Bolsonaro? Como é que alguma mulher concebe votar num homem que não só zomba da violação de mulheres como diz da própria filha que foi uma fraquejada por não ter saído homem? Como é que algum democrata admite votar em quem, diariamente, se põe fora da democracia, insulta a democracia, é a anti-democracia?

3. Mas a cegueira anti-pêtista é tanta, o ódio a Lula é tanto, que vejo o tempo todo gente que se tem como democrata, cordata, equiparar o “extremismo de Bolsonaro” ao “extremismo do PT”, de Lula ou do seu substituto Haddad. Não. Há uma diferença básica, por mais anti-pêtista que se seja. Bolsonaro não é o extremo do sistema, é o seu demónio. Não está na democracia, não fará a democracia, destruirá a democracia. Por outro lado, o PT não é um extremismo do sistema. É o sistema, nas suas falhas, nas suas distorções, na sua corrupção, no seu melhor, no seu pior.
Esta eleição não é um Bolsonaro versus Pêtistas/Lulistas. Quem está a empurrá-la para isso pagará caro, e fará outros pagarem. Nem a responsabilidade, se Bolsonaro for eleito, será de Lula, do PT ou de Haddad. Será sempre de quem votou em Bolsonaro apesar de ele se comprovar diariamente como um fascista, violento, psicopata.
Estamos a dois dias da eleição. Já era tempo de a birra com o pêtismo não achar que vale tudo contra Lula e o PT, incluindo lançar o Brasil à fogueira, ou seja votar em Bolsonaro. Querem realmente acabar com o país? Dar aos vossos filhos um futuro de horror? Ou trata-se só de pisar o PT, pisar Lula — como se já não bastasse ele estar numa cela —, antes de se pirarem para Miami ou para Lisboa?
O espectáculo deste egoísmo, desta total falta de prioridades é de cortar o coração a quem acredita no Brasil, dentro e fora.
Tenho problemas — escrevo-o pela enésima vez — com muito do que o PT fez. Se fosse eleitora no Brasil estaria mais perto de um partido como o PSOL. Nesta eleição, o PSOL tem fantásticas candidatas federais, estaduais. Votaria nelas. E tem um óptimo candidato à presidência, Guilherme Boulos. Mas como as coisas estão, com o risco de um fascista psicopata ser eleito, o meu voto iria para Fernando Haddad, que me parece o melhor dentro do bom e do mau do PT. Aliás, para esta eleição, para este tempo, Haddad parece-me melhor candidato do que Lula.
O grande problema dele é o mesmo que já o impediu de ser reeleito para a prefeitura de São Paulo: o ódio ao PT. Mas esse ódio só pode ser combatido com votos.

4. No meu mural de FB estão muitos brasileiros. Estou longe de os conhecer pessoalmente a todos, nem a maior parte. Ainda assim, não me apareceu nenhum partidário de Bolsonaro, mas sei que quase todos os meus amigos brasileiros tiveram de lidar com isso. O meu mural balança entre Haddad e Ciro, sobretudo, sendo que também tenho amigos próximos que vão votar Boulos e Marina. E a cada dia há um momento irrealista em que penso: porque é que eles não se unem todos a bem do Brasil? Mas essa união, claro, só pode existir num grupo de amigos. A favor de quem é que Marina e Boulos (mais abaixo nas sondagens) abdicariam? De Ciro, porque não tem o problema do ódio anti-pêtista? De Haddad, porque não tem a péssima vice que Ciro arranjou?
Além de ter arranjado uma péssima vice (Kátia Abreu, servidora do agro-negócio), Ciro tem deitado umas achas bem desnecessárias para a fogueira do anti-pêtismo. E disse que as manifestações do #elenão eram lindas mas tinham acirrado a polarização, dando o centro do debate a Bolsonaro. Mal, muito mal. Claro que Bolsonaro está no centro do debate. O Brasil não se manifestar face a isso é que seria terrível.

5. O movimento #elenão é a grande novidade desta eleição, a maior acção de sempre liderada por mulheres no Brasil e levou às ruas centenas de milhares de pessoas em centenas de cidade do Brasil e algumas pelo mundo (incluindo em Portugal): as maiores manifestações desta campanha, de longe. Reflexo da nova capacidade de mobilização e organização feminina, que se traduz também na quantidade e qualidade das candidatas a estas eleições. Marielle Franco teria ficado orgulhosa, e a sua inspiração é uma das forças deste movimento.
Muitas destas mulheres, negras, mestiças, oriundas da periferia foram as primeiras das suas famílias a ter acesso a educação, a cultura, à cidade porque os governos de Lula criaram políticas que possibilitaram isso. Não há anti-pêtismo que arranque isso do coração de milhões de pessoas que há 20 anos simplesmente não tinham voz, e além disso tinham fome.
Ver as ruas do Brasil no dia 29 de Setembro, o Largo da Batata em São Paulo, a Cinelândia, no Rio de Janeiro, dava força a qualquer luta, foi uma inspiração. Acredito totalmente nesse país, na sua garra e na sua graça. Antídoto de um país de violência e medo, o de Bolsonaro.

6. Edir Macedo, líder da IURD — essa Igreja Universal do Reino de Deus que é todo um projecto de poder à custa do dinheiro dos mais pobres — esteve à altura de si mesmo e declarou apoio a Bolsonaro. Tudo claro, tudo às claras. Mais uma razão para a esquerda disputar o voto dos pobres onde ele está mais difícil, nas periferias cada vez mais sequestrados por um evangelismo ultra-puritano, homofóbico, anti-carnaval, anti-religiões afrobrasileiras.
Se a esquerda não souber falar a parte destas pessoas, agir pensando nelas, sem abdicar dos seus princípios básicos, terá falhado por completo. E essa será uma derrota do Brasil.

7. Vi muitas comparações de Bolsonaro com Trump. Ambos são casos psiquiátricos. Mas, com todos os seus problemas, a democracia americana não era uma ditadura militar apenas há uma geração, tem estruturas e instituições com uma solidez que atenua o pesadelo de Trump na Casa Branca. No Brasil, muito do que se avançou nos últimos vinte anos está em perigo. O mal que Bolsonaro pode fazer ao Brasil é impossível de sobrestimar.

8. Então, cada voto faz falta, cada voto faz diferença. Cada voto pode afastar Bolsonaro da segunda volta. Um terço dos votos ainda estará por decidir, tudo é possível. Não há como desistir, não há porque desistir, e a alternativa é lutar.
O Supremo Tribunal Federal afastou 3,4 milhões de eleitores do voto de domingo, obrigados a um recadastramento cuja divulgação não parece ter sido correctamente feita. Um estranho caso que afecta sobretudo eleitores do Nordeste, onde o apoio a Lula é muito alto, e portanto Haddad teria boas chances. Mas gostaria de terminar com outro número. O Brasil tem mais 6,5 milhões de mulheres do que homens. Elas já estão a fazer a diferença, e não ficará por aqui.