2016 foi o ano em que o "streaming" de músicas se tornou o principal meio de consumo de música nos EUA, ultrapassando as vendas digitais de faixas. Foram mais de 251 mil milhões de transmissões, um crescimento anual de 76% que representa igualmente 38% de todo o mercado de consumo musical, segundo dados da Nielsen Music.
No terceiro trimestre do ano passado, já havia mais de 100 milhões de pessoas a pagar por serviços de streaming de música, com o Spotify a conseguir cerca de 40 milhões (de um total de 100 milhões de subscritores), seguido pela Sirius XM Radio (mais de 30 milhões) e pela Apple Music, com 20 milhões de assinantes pagos.
Com 78 milhões de assinantes gratuitos, a Pandora pode desequilibrar o mercado quando lançar uma oferta paga nos próximos meses. O Premium anuncia-se como um serviço personalizado mas ainda não tem data de lançamento previsto.
Duas décadas de mudanças
As plataformas de distribuição online estão agora a facturar e a generalidade das editoras igualmente a lucrar com o "streaming" legal de músicas. Mas muito se percorreu desde que, a 24 de Junho de 1993, a banda Severe Tire Damage realizou o primeiro concerto ao vivo, em "streaming", na Internet.
Os receios da indústria discográfica para não disponibilizar músicas online acabaram por promover a pirataria, fosse por afrontarem a partilha ilegal desses conteúdos ou temerem a simples listagem de sites onde era possível obter músicas.
Num documento sobre o impacto da Internet, "Change - 19 key essays on how Internet is changing our lives", mostra-se como nos Estados Unidos o negócio da música - "não só editoras mas agentes, estúdios e outros intermediários" - teve sinais de desemprego desde 2001, "caindo para cerca de 40% em 2012", acompanhando uma queda semelhante da facturação de 40% entre o "pico" de 1999 e "o nadir de 2011".
No entanto, a partilha de ficheiros "teve efeitos negativos moderados na compra de música", não sendo totalmente responsável pelo declínio no negócio. Razões para essa situação podem ser encontradas na "combinação do fim do ciclo de produção dos CD, a falta de um novo género (como o rock ou o rap) para dinamizar vendas, a reacção negativa do consumidor aos elevados preços e processos judiciais da indústria contra 'downloads' de estudantes e o aparecimento de novos modelos legais, mas menos lucrativos, de acesso à música", como o Pandora ou o Spotify.
Para "muitos músicos", a partilha de ficheiros pode "expandir oportunidades para obter pelo menos algum lucro do seu trabalho", já que são poucos os que conseguem sustentar-se pela arrecadação dos direitos de autor. As alternativas passam pelos "concertos, venda de 'merchandise', ensino" e como produtores ou tocando para registos discográficos de outros músicos.
Mas se a "destruição tecnológica é criativa", os grandes perdedores neste sector foram as editoras multinacionais e a minoria de artistas que tinham contratos milionários com elas, assim como quem sustentava o seu negócio na comercialização de discos físicos.
O epifenómeno das vendas em vinil
O suporte analógico parece mostrar alguma resiliência, embora os valores de facturação sejam inferiores aos analógicos, como demonstra o sucedido no Reino Unido. No final de Novembro passado, o anúncio de que as vendas de discos em vinil na última semana do mês tinham ultrapassado os "downloads" foi recebido com alguma estupefacção.
Se a venda de discos em vinil atingiu naquele país o valor mais baixo em 2007, com apenas 205 mil unidades comercializadas, o crescimento tem sido sustentado desde então. Em 2013 chegou às 780 mil unidades, no ano seguinte subiu para 1,3 milhões e, em 2015, ultrapassou as 2,1 milhões de unidades vendidas.
Até final do ano passado, calculava-se que as vendas em vinil deviam chegar aos três milhões de unidades - o "pico de vendas" nos últimos 30 anos, segundo a Entertainment Retailers Association (ERA). Na última semana de Novembro, "foram vendidos 120 mil discos em vinil", em comparação com 295 mil versões digitais. Ainda segundo a ERA, as vendas em vinil totalizaram 2,8 milhões de euros, enquanto o segmento digital se ficou por quase 2,5 milhões de euros.
A associação do sector alertou que não só os discos em vinil são mais caros (e um CD pode custar até 24 euros) como o líder de vendas era um álbum triplo de Kate Bush ("Before The Dawn"), comercializado a 61 euros - enquanto "um 'download' do mesmo disco estava acessível por 14 euros", segundo a BBC.
Assim, será difícil regressar ao passado analógico. A facturação da música digital ultrapassou os suportes físicos em 2015. Dados globais da International Federation of the Phonographic Industry (IFPI) mostram que o negócio digital contou com 45% para um total de 15 mil milhões de dólares, enquanto os formatos físicos como os CDs ou o vinil se ficaram pelos 39%. O "streaming" era então o principal responsável pelo primeiro crescimento significativo nos lucros do sector "em cerca de 20 anos". Os dados agora divulgados pela Nielsen parecem confirmar a tendência, que pode afectar o negócio da venda de faixas musicais por empresas como a Apple e o seu iTunes.
O negócio pirata
Não é fácil definir se a partilha ou o "streaming" de músicas causaram ou não danos à indústria discográfica. Segundo o referido estudo "Changes", entre 1998 e 2010, o lançamento de discos pelas maiores editoras decresceu 40%, enquanto os lançamentos nas editoras independentes aumentou "drasticamente, ultrapassando as grandes editoras em 2001 e atingindo um pico em 2005".
O "streaming" diferencia-se da pirataria porque a audição é ouvida em tempo real, enquanto a cópia potencia o "download" para um dispositivo de reprodução, desde o antigo iPod à forma actual mais generalizada nos "smartphones". Mas nem todas as cópias para estes dispositivos são ilegais, como bem sabe quem paga pelos serviços Spotify ou iTunes.
O iPod da Apple marcou a reviravolta da indústria discográfica, que praticamente considerava não ser possível fazer dinheiro no mundo digital. Pelas mãos de Steve Jobs, a empresa demonstrou ser um negócio viável e tornou-se a maior distribuidora de música, alterando o modelo de negócio das editoras da comercialização de álbuns inteiros para a venda de músicas isoladas.
Ao partilhar o acesso a ligações para conteúdos protegidos por direito de autor, sites como o Pirate Bay foram acusados de pirataria, apesar de, como alegava o seu advogado, uma directiva europeia de 2000 afiançar que "quem fornece um serviço de informação não é responsável pela informação que é transferida". Os utilizadores eram os responsáveis por essa transferência.
Mais de uma década depois, as queixas sobre a "pirataria" prosseguem. Em 2015, a Google foi inundada com mais de mil milhões de pedidos para remover hiperligações "piratas" do seu motor de busca, correspondendo a mais de 90% desses pedidos. Com "mais de 50 milhões" de remoções dirigidas a um único site, o 4shared.com, isto demonstra como os pedidos são dirigidos aos mesmos conteúdos - mas assim se inflaciona o número dessas requisições.
Do lado dos "piratas", as justificações também têm de ser analisadas com algum cuidado. Recentemente, a polícia francesa anunciou o encerramento do Zone Téléchargement, "o principal site francês a permitir disponibilizar directamente filmes, séries, músicas ou videojogos protegidos por direito de autor". Segundo David El Sayegh, secretário-geral da Société des Auteurs, Compositeurs et Éditeurs de Musique (Sacem), após uma queixa em 2014, foi necessário contabilizar uma "perda de mais de 75 milhões de euros para os titulares dos direitos". Estes cálculos são normalmente feitos sobre todas as obras disponibilizadas nestes sites e não reflectem necessariamente as que seriam adquiridas pelos seus utilizadores.
Mas o responsável da Sacem demonstra como estes sites lucram à conta dos legítimos detentores de direitos, com a publicidade. Neste caso, o site "gerava pelo menos 1,5 milhões de euros por ano, com contas 'offshore' em Malta, Chipre e Belize". Os dois administradores do Zone Téléchargement tiveram mandados internacionais por se terem instalado em Andorra, com os servidores do serviço alojados em países como a Alemanha ou a Islândia.
"É um caso de falsificação com fim lucrativo, em elevada escala. Estas pessoas não pagam impostos, não pagam aos detentores de direitos, não respeitam nada. Eles desenvolvem um mecanismo sofisticado para se colocarem fora da lei, de forma voluntária e muito organizada", explicava El Sayegh.
O 'streaming' não passa da rádio do século XXI
Entre o negócio pirata e a perda de valor das editoras, o consumidor passou a ter uma maior escolha, nos últimos anos. Foi quem mais ganhou na alteração tecnológica entre os "criadores amadores e os profissionais não pagos", como os definiu Peter Godfrey-Smith, da City University de Nova Iorque. "No caso da música, a ameaça surge menos da criatividade do amador do que dos comportamentos novos no lado do consumidor, e dos novos negócios mediadores entre os músicos e os ouvintes".
O "'streaming' não passa da rádio do século XXI", cita Miguel Caetano, na Revista Crítica de Ciências Sociais, salientando que a "adoção generalizada dos serviços de streaming como Netflix, YouTube ou Spotify um pouco por todo o mundo não pode ser adequadamente compreendida sem ter igualmente em consideração a ofensiva jurídica travada a nível global com recurso a leis e outras medidas regulamentares de proteção da propriedade intelectual contra quem partilha, programa software P2P e fornece acesso à Internet".
Para o investigador português, o "streaming" permitiu às "indústrias culturais readquirirem o controlo do acesso às obras protegidas por direitos de autor que tinham perdido com o surgimento e consequente popularização das primeiras redes de partilha de ficheiros", sendo que "a aplicação férrea dos direitos de propriedade intelectual na Internet representa uma desestabilização fundamental no equilíbrio entre os direitos dos utilizadores e os direitos dos criadores que vigorou até à massificação da Internet".
Os números nesta disputa são difíceis de apurar porque cada lado dá a sua versão mas diferentes trabalhos académicos demonstram que os maiores consumidores de cópias piratas são igualmente os que mais compram discos, em formato analógico ou online.
Um recente estudo da Internet Foundation na Suécia (IIS) é indicativo deste panorama. Ele mostra que os chamados "piratas" (ou "partilhadores de ficheiros"), vistos como "destruidores das indústrias criativas", são quem mais compra música (60%), uma percentagem que cai para os 39% nos que o não fazem e para 44% na população em geral.
Dos 3.000 inquiridos com mais de 11 anos, "oito em 10 ouvem música" na Internet mas com os serviços de "streaming" disponíveis, "mais começaram a pagar por música e filmes".
Apesar da partilha de ficheiros se manter "nos 20% da população, tal como tem acontecido há quase 10 anos", o pagamento por serviços legais de "streaming" aumentou dos 15% em 2011 para os "38%, 42% e 44% em 2014, 2015 e 2016 respectivamente".
Segundo o IIS, quem partilha ficheiros "comprou anteriormente pelo menos tantos CDs quantos aqueles que não partilham ficheiros e hoje podemos ver que é mais comum que eles se inscrevam em serviços de 'streaming' de música e de filmes do que aqueles que o não fazem".
Pode alegar-se que, neste caso e sendo o Spotify uma empresa sueca, tal possa gerar uma empatia nacional sobre o modelo. Mas um outro estudo, realizado para o Department of Communications and the Arts do governo australiano entre Janeiro e Março de 2016, considera igualmente uma estabilização na pirataria de conteúdos de música derivada da maior acessibilidade de serviços legais de "streaming".
O inquérito, efectuado junto de 2.400 pessoas com mais de 12 anos, mostra que os mais "piratas" são quem consome mais conteúdos legais, das músicas aos filmes - isto apesar dos custos mais elevados e das desfasadas janelas temporais de lançamento oficial desses conteúdos no país.
O "download" de música baixou de 29% em 2015 para 26% este ano, a mesma percentagem que diminuiu na pirataria de todos os conteúdos (que passou de 26% para 23%). Como sucedia em 2015, "para cada tipo de conteúdo, aqueles que consumiram uma mistura de conteúdo lícito e ilegal gastaram mais dinheiro durante um período de três meses do que aqueles que consumiram 100% do seu conteúdo legalmente", segundo o estudo. E apenas "um em 20 infractores (6%) disse que nada os faria parar", valores também consistentes com os apurados em 2015.
"Streaming" alavanca negócio digital da música
Em Portugal, com a crónica ausência de dados atempados, um estudo relevante foi divulgado em Outubro de 2008 pelo Obercom. "Entre o CD e Web 2.0: os consumos digitais de música em Portugal" apontou que - apesar da inclusão das vendas digitais nas estatísticas oficiais ter ocorrido apenas para 2006 e existirem "diversas lacunas na recolha e sistematização dos dados", nomeadamente os coligidos pela Associação Fonográfica Portuguesa (AFP) - ocorreu "uma tendência de declínio contínuo" nas vendas dos suportes analógicos de música.
"Em 2000, venderam-se aproximadamente 15 milhões de unidades, diminuindo para valores aproximados a 12 milhões de unidades nos três anos seguintes, diminuindo para cerca de 9 milhões em 2005 e 8 milhões de unidades vendidas em 2006 e 2007. Em apenas 7 anos, a evolução retratava uma redução do mercado áudio físico para cerca de metade do seu volume de vendas", diz o Obercom.
As fracas vendas de CDs foram a principal causa nesse período 2000-2007 mas, "quando se entra em linha de conta com a parcela do mercado áudio digital, a partir de 2006, verifica-se que a tendência se inverte e, em 2007, quando finalmente são contabilizados os 'streams' (devido à agilização deste tipo de serviço pelas operadoras nacionais [de telecomunicações]), observa-se que o volume de vendas total em 2007 excede o volume de vendas de qualquer ano anterior no período em análise", diz o estudo.
Os dados para 2007 permitem perceber que o áudio digital atingiu o mesmo patamar dos registos analógicos: "é possível retratar uma transição no mercado áudio português, de uma situação de hegemonia do áudio físico (com destaque para o formato CD) para uma situação de diversidade de formatos com crescimento acelerado dos formatos digitais para Internet e telemóvel. Em 2004, o mercado era dominado pelo formato físico (93.7%). Em 2007, a composição do mercado áudio é a seguinte: 47.8% áudio físico, 4.6% audiovisual [serviços como o YouTube], 47.6% áudio digital".
Dados mais recentes, relativos a 2015, mostram igualmente que os portugueses estão a consumir "mais música através de serviços de 'streaming' online, o que representa um aumento de cerca de 60% face a 2014", segundo a Associação para a Gestão e Distribuição de Direitos (Audiogest). Os dados apontam para valores aproximados "de 5,9 milhões de euros referentes a 'streaming' em 2015", quando no ano anterior se ficou nos 3,7 milhões de euros (de um total de negócio para o sector orçado em 17,6 milhões de euros).
Para o director-geral da Audiogest, Miguel Carretas, o "streaming" em serviços como Spotify ou Google Play Music "alavancou o mercado digital" em Portugal e pode ter representado mais de 30% do sector da música em 2015.
E, finalmente, como está o artista?
A indústria musical no seu maior mercado, os EUA, revelou em Setembro estar finalmente a ter uma "frágil recuperação", após quase duas décadas de declínio.
Registou um crescimento de 8,1% para os 3,4 mil milhões de dólares no primeiro semestre deste ano, segundo a Recording Industry Association of America (RIAA). Os lucros nos serviços de "streaming" cresceram 57% para 1,6 mil milhões de dólares. Note-se que os dados anuais da Nielsen Music apontam para o consumo musical, pelo que este valor tenderá a ser maior.
Para a presidente da RIAA, Cary Sherman, "muitos serviços arrecadam milhões de dólares para si mesmos às custas da popularidade da música, mas pagam apenas cêntimos aos artistas e editoras".
O modelo de pagamento não é claro entre plataformas online, editoras e artistas (nem entre o artista e os músicos acompanhantes). Os valores pagos são um segredo bem guardado. Sabe-se que o Spotify paga uma média de 0.006 a 0.0084 cêntimos de dólar por música transmitida.
Numa análise efectuada em 2015, considerando o valor pago pelas plataformas digitais por cada música para um artista atingir o "ordenado mínimo" nos EUA de 1.260 dólares, descobriu-se que nesse mesmo Spotify se precisava de ter um milhão de faixas ouvidas (se ligado a uma editora, porque o valor baixava para as 180 mil audições no caso de ser independente). No YouTube, o "ordenado" era atingido ao fim de quatro milhões de audições (ou 700 mil, no segundo caso).
Perante o sucesso do "streaming", a concorrência nestes serviços começa a sentir-se igualmente com "lançamentos exclusivos" por artistas como Beyoncé, Drake, Frank Ocean ou Kanye West nas plataformas Apple Music ou Tidal.
As editoras não gostam e artistas como Lady Gaga não apreciam a postura das editoras que querem impedir os artistas de terem esse tipo de acordo com as plataformas online. Mas estas também aparentam não gostar da exclusividade dada à concorrência e estão a encontrar modelos alternativos, como a Spotify que anunciou recentemente dois novos modelos de audição musical, com os "Singles" (gravação de algumas músicas) e o "Live", com registo ao vivo de bandas.
A empresa sueca também adiou a prevista aquisição da SoundCloud por "não precisar de uma dor de cabeça adicional no licenciamento" de artistas, quando pretende entrar em Bolsa em 2017.
Os acordos "são terríveis para a indústria da música e para os fãs", segundo uma fonte do sector, citada pela Rolling Stone. "A indústria tem sido tradicionalmente terrível para os consumidores. Levou-os à pirataria ao fazer pagar por CDs com duas boas músicas anexadas a 13 [faixas]. Agora, as editoras e os serviços de 'streaming' estão a fazê-los pagar por um serviço de assinatura que não tem toda a música que eles querem".
Mas não ter toda a música significa que não há suficiente boa música nesses serviços, nomeadamente nos serviços gratuitos? Só o consumidor sabe.
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