No dia de 17 agosto, a plataforma de venda de produtos de luxo liderada pelo português José Neves reportou as contas do segundo trimestre e ficou a saber-se que a retalhista passou dos lucros aos prejuízos — e Wall Street reagiu logo no dia a seguir, com as ações a desvalorizar para níveis históricos.

E nem mesmo o recorde de utilizadores ativos (4.1 milhões, mais 7%) e um crescimento do valor bruto das mercadorias de 1,2% (o chamado Gross Merchandise Value - GMV, métrica importante para o e-commerce porque traduz o valor monetário das transações num determinado período de tempo) impediu que o valor das ações batesse no fundo, pois até mesmo as métricas positivas não animaram as previsões dos analistas.

Principais dados do relatório:

  • Um prejuízo de 281,3 milhões de dólares (enquanto no ano passado tinha registado um lucro de 62 milhões de euros);
  • Registou 572 milhões de dólares de receitas (menos 1,28% do que o ano passado), valor aquém do esperado (analistas esperavam 650 milhões de dólares);
  • O EBITDA (o resultado antes de juros, impostos, depreciações e amortizações) agravou, sendo agora de 30,5 milhões de dólares negativos (contra os 24,2 milhões milhões no segundo trimestre do ano passado).

Estes resultados da Farfetch desapontaram tanto o mercado como os analistas, tendo as ações da retalhista afundado 40% no dia a seguir à divulgação do relatório. Segundo o Jornal de Negócios, os títulos chegaram a desvalorizar 43,07% para 2,71 dólares, um novo mínimo histórico desde a sua entrada em bolsa em 2018. A ação fecharia nos 2,61 dólares.

Desvalorização em bolsa

Há rumores de que um "sentimento negativo" tem vindo adensar-se em Wall Street em torno da retalhista, de acordo com o jornal Público. Segundo o diário, há "algumas franjas do mercado bolsista" que não estão "a aderir à narrativa da administração" e nem mesmo a reestruturação para reduzir a base de custos (os fixos e com pessoal) ou o acordo "histórico" do setor do luxo com a Richemont (dona da Cartier, entre outras) para ficar com uma participação da Yoox Net-A-Porter (TNAP), parecem mudar os ares de desconfiança de alguns analistas.

O jornal fez inclusive uma análise de alguns dados contabilísticos dos últimos anos, que podem ajudar a explicar o sentimento dos mais céticos relativamente à rentabilidade da empresa luso-britânica (que a Farfetch diz ser algo "não-negociável" — daí ter deixado cair o negócio da beleza apenas um ano depois de ter comprado a cosmética Violet Grey).

  • Lucros. A Farfetch fará cinco anos de bolsa em setembro, sendo que apresentou lucros em dois (2020, 2021). No entanto, os resultados foram suportados por "fatores extraordinários" (pandemia e confinamento) e por "fatores contabilísticos", como as reavaliações do justo valor de instrumentos financeiros, que o jornal indica serem ações "usadas como pagamento e como colateral".
  • EBITDA (o resultado antes de juros, impostos, depreciações e amortizações). Em 14 trimestres desde 2020, o EBITDA ajustado apenas foi positivo em quatro ocasiões. Segundo o Público, mesmo que a Farfetch não tivesse que pagar impostos nem financiamento, e os bens em uso não perdessem valor, ainda assim, "a empresa teria sido globalmente deficitária".
  • Preço por ação. Em 2018, quando se estreou no mercado bolsista de Nova Iorque em setembro, a ação ao preço unitário era de 28,45 dólares. Quase cinco anos depois, no dia 24 de agosto de 2023, na abertura, cada uma valia apenas 2,87 dólares. A título de comparação, há um ano, no fecho do dia 24 de agosto de 2022, a ação foi negociada a 9,5 dólares.
  • Não é uma situação nova. Há uns anos a esta parte que os analistas estão preocupados com a rentabilidade e margens da empresa. Já em 2019 o Expresso escrevia que o "primeiro unicórnio português estava a perder brilho" por causa das ações terem afundado 42% para 10,48 dólares, metade do valor a que foram vendidas na oferta pública inicial realizada em setembro de 2018. Mas na altura, tal como agora, de acordo com o artigo do semanário, a administração parecia não estar incomodada com desvalorização por acreditar que o caminho a seguir é uma estratégia tipo Amazon, que passa por "apresentar prejuízos no curto prazo, mas construir negócios de biliões" no longo prazo. E adiantou que se a empresa parasse de investir e de crescer, já seria rentável.

Confiança mantém-se em alta

Apesar da queda em bolsa de 40% em 24 horas e dos resultados do relatório do segundo semestre deste ano (um momento que o Público caracteriza como "chave" na curta experiência da Farfetch em Wall Street), a confiança de José Neves mantém-se inabalável, acreditando que os objetivos delineados para 2023 vão ser cumpridos.

No comunicado que deu conta dos resultados do segundo trimestre, o CEO e fundador salienta que a empresa "está a crescer, a tornar-se mais eficiente, e a cumprir as nossas prioridades estratégicas" e que em 2023 deverá ser mesmo "um grande ano para a Farfech, com um forte crescimento do volume de mercadorias [Gross Merchandise Value - GMV], com lucros ao nível do EBITDA ajustado e com cash-flow positivo".

Em resposta ao artigo do Público, a empresa adiantou também que não receia a dívida acumulada no balanço, pois além de não ter dívidas para pagar até 2027, espera ter disponíveis "mais de 800 milhões de dólares em caixa e equivalentes" até o final do ano. Adicionalmente, de acordo com as suas projeções, espera "gerar 400 milhões em cash por ano até 2025".

Olhando para o futuro, a Farfetch projeta uma receita para o ano inteiro de aproximadamente 2,5 mil milhões de dólares, acima dos 2,3 mil milhões de 2022. A par, há ainda uma troca de CFO a caminho e as coisas podem mudar — tanto nos números como na perspetiva dos analistas mais céticos. Elliot Jordan ocupou o cargo de diretor financeiro nos últimos 8 anos, mas a partir do dia 1 de setembro vai ser substituído por Tim Stone, que com 20 anos de Amazon e com passagens pela Ford ou a rede social Snapchat, chega à Farfetch para a garantir "o melhor desempenho financeiro possível nos próximos anos".