João Cravinho nem sequer era orador na conferência "Era Digital e Robótica: implicações nas sociedades contemporâneas", que decorreu esta terça-feira, 21 de Fevereiro, na Assembleia da República (AR), mas acabou por sintetizar alguns dos desafios que esta nova "era digital" pode trazer ao mercado laboral, com a emergência da robótica e da inteligência artificial (IA).

Para o ex-governante socialista, num mundo em transição para novas questões demográficas e ambientais, e em que "Portugal perdeu três revoluções industriais e não perde a quarta porque ela não existe, porque é um novo modelo", há questões a enfrentar para não perder competitividade nesse modelo a que se convencionou chamar de Indústria 4.0 - erradamente, segundo o economista.

Elas passam pela educação e formação, quando "os miúdos que vão entrar no ensino vão chegar ao século XXII mas a serem ensinados como se estivessem no século XX", num "sistema educacional que cria desigualdades", quando o próprio Estado "é obsoleto" e não tem "estrutura para novos processos e processos de apoio à decisão".

Em termos de investigação científica, Cravinho considera que "temos de deixar o paradigma de apoio público" mas saber "onde o fazer, quais as prioridades, porque não se pode apostar em tudo".

Do lado do trabalho, notou a perda de valor. Com a robótica, "não é uma questão de emprego mas do emprego bem remunerado e estável". Isso deixou de existir e, agora, perdeu-se quando em empregos de baixo valor se recebe "sete ou oito dólares por hora nos EUA, quando no emprego industrial eram 25 dólares". Neste cenário, defendeu a necessidade de pensar na "criação de um novo sistema de redistribuição de riqueza".

"Tudo isto pode ser gerido para um bem comum" que contemple "as políticas redistributivas, as políticas fiscais têm de voltar a ser mobilizadas, a uma escala supranacional", considerou igualmente Ferro Rodrigues, porque "a estagnação salarial e social da classe média ocidental não é sustentável por muito mais tempo". Para o presidente da AR, "como é típico dos períodos de transição histórica, este processo está a deixar muita gente para trás: os excluídos da era digital".

"Pensar que o progresso tecnológico só traz coisas boas é uma ideia ingénua"

No entanto, "pensar que o progresso tecnológico só traz coisas boas é uma ideia ingénua", assim como "é ingénua a ideia de que travar a mudança é uma opção nesta era da globalização e da interdependência económica. Nada de bom viria daí. Não vamos agora destruir os robôs como no passado faziam os luditas com as máquinas - seria contraproducente e não teria resultados positivos".

Em termos de implicações sociais, considerou ainda como as tecnologias "mudam as relações humanas" pelo que "a preocupação deve ser sempre o equilíbrio entre modernização tecnológica e a inclusão social, entre liberdade de expressão e respeito pelos direitos da pessoa humana. Porque as tecnologias avançam mas os nossos valores humanistas e democráticos devem permanecer".

O que são as "pessoas electrónicas"?

O debate na AR foi "importante porque estamos a fazê-lo no momento certo - não necessariamente nos parlamentos mas também por o estarmos a fazer no Parlamento [português], o que mostra como o país evoluiu, a discutir o nosso tempo e numa discussão global", salientou o artista Leonel Moura.

As áreas científicas "mais interessantes aparecem nas fronteiras das áreas de conhecimento" actualmente, considerou Alexandre Quintanilha (presidente da Comissão de Educação e Ciência da AR), referindo que "os parlamentos estão conscientes da necessidade absoluta de ter mecanismos e instrumentos que possam dar aos parlamentares conhecimento do que se está a passar na ciência, tecnologia ou humanidades - uma avaliação do novo para que a AR possa estar informada sobre aquilo que legisla, qual a melhor forma de introduzir o conhecimento de que necessitamos e que venha das várias áreas de conhecimentos e de diferentes áreas partidárias".

No caso do cruzamento entre robótica e IA, em sistemas com "capacidade de aprender e tomar decisões, de interagir com humanos, há uma nova espécie artificial a surgir no planeta", considera Leonel Moura. Aliás, Sara Costa, do grupo parlamentar do PSD, recordou como no final do ano passado o Parlamento nacional já estabeleceu a diferença para os "animais como algo entre pessoa e coisa".

A questão é fulcral, num momento de dúvidas. "Precisamos de pensar nestas coisas agora, considerando quanto tempo leva o sistema político a funcionar", disse recentemente Martin Ford, autor de "The Rise of the Robots". Segundo ele, está a ocorrer "um ponto de inflexão envolvendo uma transição que vai deixar a maioria das pessoas para trás" e "podemos discutir se a grande disrupção vai chegar em 10, 15 ou 20 anos - mas está a chegar".

O assunto é igualmente importante porque o Parlamento Europeu antecipou o debate sobre os robôs serem uma "pessoa electrónica", com identidade e potenciais direitos. Os impactos desta decisão passam pela "criação de um conjunto vasto de leis para as pessoas electrónicas", os "conflitos que alguém vai ter de gerir", criando um "novo campo para as seguradoras" e advogados, a necessidade de "debater e definir as questões éticas porque agora são os programadores que o estão a fazer" ou ainda "os direitos e garantias destas máquinas". Pode uma delas ser desligada, quando o seu grau de autonomia ou de aprendizagem autónoma podem impedir que um humano a desligue, questionou o artista.

No campo fiscal, que Moura considera "ser um dos mais importantes", é também preciso "saber quem paga e em que modelo", quando a "tributação favorece a criação local de emprego" mas se pode "criar desemprego com os robôs que vêm de fora". Ou seja, após "a deslocação de trabalho para a China, agora vêm os robôs da China para aqui". Por isso, a tributação para pagar o desemprego - que até Bill Gates defende, nem que seja como uma "medida temporária" - é "um problema novo e muito sério que temos de encarar".

Para este artista, "a libertação do trabalho assalariado é positiva, não é um ataque ao humano, porque o ser humano é curioso, activo e há-de procurar novas coisas para fazer - não lhe vamos chamar trabalho mas uma outra coisa".

"Os robôs vão levar-nos para a felicidade ou para a depressão" mas o que vão fazer os humanos com o tempo livre, questionou igualmente a deputada socialista Edite Estrela. A inovação tecnológica até pode parecer que "nos vai libertar e não escravizar, e até nos poderemos dedicar ao ócio" mas "cuidado com as expectativas", alertou. Por exemplo, sobre o uso do seu tablet, "não fiquei com mais tempo livre".

Desemprego nos desqualificados e nos serviços qualificados

Pedro Lima, do Instituto Superior Técnico, elencou como os robôs inteligentes ainda não sabem fazer bem "muitas coisas", como reconhecer e perceber o mundo envolvente, dialogar com o ser humano, tomar decisões de forma autónoma, aprender com a experiência, serem versáteis e  multifunções ou caminhar como os humanos. Mas isso não impede a antecipação de "questões sociais", nomeadamente no impacto a "grande escala no emprego, até porque "admitindo que a produtividade vai aumentar e tem aumentado nas revoluções tecnológicas, deve haver uma melhor distribuição de riqueza e não a deixar concentrada".

Para Nuno Teles, do Centro de Estudos Sociais (CES), "o progresso tecnológico nunca produziu desemprego estruturado" mas, no caso actual, ocorrem "dois movimentos", com "a destruição do trabalho não qualificado na indústria e nos serviços (nos transportes mas também em restaurantes de 'fast-food'", onde há emprego mais mal pago, mas também no próprio emprego qualificado, que afecta "jornalistas (de informação financeira ou desportiva) ou advogados, como no processamento de documentos legais".

Em paralelo, ocorre uma "desconexão entre produtividade e horas de trabalho", quando "estas não têm acompanhado a evolução da produtividade". Nos EUA, por exemplo, "a produtividade nos últimos sete anos diminuiu - mesmo com a robotização - mas ainda não aparece nas estatísticas".

Num outro recente artigo, o New York Times mostra uma relação entre a produtividade e o investimento de capital. Se ambos estão actualmente a decrescer, a comparação é notável. Só nos anos mais recentes, o capital investido anualmente cresceu 5,1% entre 1996-2002, com a produtividade a aumentar 3,3%, mas baixou para 2,2% entre 2003-07 (quando passou para 2,9% no investimento) e, entre 2008 e o terceiro trimestre de 2016, o investimento passou para 1,7% e a produtividade para 1,3%.

Nesse sentido, Nuno Teles recordou que "a tecnologia não é exógena à sociedade, à economia, e desenvolve-se por incentivos". Por exemplo, comparando a emergência dos robôs à máquina a vapor, "esta demorou 60 anos a ser adoptada, perante os moinhos de água na indústria têxtil e porque era mais barata do que o carvão".

Noutro caso, mais recente, a Uber "não revolucionou a produtividade, porque o processo continua a ser o mesmo, mas o modelo de negócio tem diferenças", nomeadamente a sua emergência devido à "forma como está organizado o mundo de trabalho, com o desemprego de massas e a precarização, [e a Uber] só existe pela desregulamentação do mercado". Para este investigador, "o que temos é de analisar como organizar o trabalho, porquê taxar os robôs e porque não reduzir o horário de trabalho e o dia de trabalho"?

Também "a Segurança Social tem de ser repensada" e é uma "pressão a que os legisladores têm de responder, porque o mercado o não faz, com tributação sobre empresas assentes na automatização", considerou Pedro Filipe Soares. Em alternativa, "estaremos a contribuir para algo em que só alguns beneficiam". Para o deputado do Bloco de Esquerda, "isto não é novo e o grau de destruição de desemprego - desqualificado - tende a ser no futuro o repetitivo, exacto, sem criatividade ou espírito humano, e por isso a educação ao longo da vida é essencial e devemos formar jovens para a criatividade para não serem máquinas - porque as máquinas já cá estão".

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