Ler e ouvir Yuval Harari está ao acesso de qualquer um, desde que tenha internet e/ou disponibilidade para comprar os seus livros. Harari está em todo o lado. Entrem no Google e  e escrevam “Yuval Harari”:  são quase 6,5 milhões de resultados, dos quais cerca de 360 mil em vídeo. Não, o filósofo, historiador e futurista israelita não terá assim tanta capacidade de cruzar o planeta como os números parecem indiciar, mas já esteve nas principais conferências, já conversou com os nomes maiores da política, economia ou cultura e, na semana passada, tivemo-lo em Lisboa, a convite da Fundação Francisco Manuel dos Santos.

Sendo alguém tão amplamente divulgado, faz diferença ouvir ao vivo o que podemos encontrar em múltiplas esquinas da internet? Faz e será difícil que as cerca de 500 pessoas que estiveram, na sexta-feira, a ouvi-lo na Estufa Fria, em Lisboa, não tenham saído de lá a pensar isso mesmo.

Porquê? Bom, se a ignorância é atrevida, a inteligência é contagiante e é bom pensar que pode ser contagiosa. É difícil assistir a uma conversa como a que assistimos com Yuval Harari e não sair de lá com vontade de continuar pelo tempo que fosse. Cada resposta sugere um sem número de novas perguntas e, sobretudo, faz-nos parar para pensar, um luxo de que nos temos privado, na maior parte dos casos, voluntariamente.

Yuval Harari em Portugal
créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

“Se somos tão espertos porque é que estamos a fazer coisas tão estúpidas”. Foi uma das questões que lançou logo no arranque da conversa que manteve com Pedro Pinto.

“O ChatGPT [projeto atual de maior democratização da Inteligência Artificial] é a ameba no processo de evolução”

E uma das “coisas estúpidas” que preocupa Yuval Harari é a forma como estamos a lidar com a inteligência artificial que descreve como sendo um bebé. Um bebé é uma imagem demasiado doce para a mensagem que quer comunicar e por isso dá-nos uma outra forma de perceber do que fala. A evolução na Terra tem quatro mil milhões de anos de evolução, uma linha de tempo longa na qual o homem é um aparecimento relativamente recente. Lá muito atrás, ainda antes dos dinossauros, existiam as amebas. “O ChatGPT [projeto atual de maior democratização da Inteligência Artificial] é a ameba no processo de evolução”, explica.

Ser um bebé deixou, subitamente, de ser tão doce. Yuval está a dizer-nos, e quem acompanha de perto os temas de Inteligência Artificial sabe disso, que o que estamos a usar hoje numa plataforma a que fazemos perguntas ou pedidos e nos devolve emails escritos de melhor forma que a maior dos humanos faria, teses académicas, notícias (a piada está muito estafada, mas não, esta que leem tem mesmo uma humana a escrevê-la) e também código de programação ou propostas para concorrer ao PRR – tudo isto é apenas a fase ameba.

Seguremo-nos à cadeira porque a turbulência maior nem é essa. Da ameba ao dinossauro, foram precisos uns milhares de milhões de anos. Não vai ser assim com a Inteligência Artificial, assegura Harari, que não precisará de mais do que décadas para passar de ameba a T-Rex.

Por esta altura, muitos podem ter pensado: e não é bom? Vamos ter máquinas inteligentes que nos libertam de tanto trabalho estúpido?

Vamos à segunda ronda de evidências que Yuval Harari nos quis trazer sobre Inteligência Artificial:

- é a primeira tecnologia que consegue tomar decisões por si própria [a bomba atómica, compara Harari, era perigosa, mas a decisão era sempre humana]

- é a primeira tecnologia que consegue criar ideias próprias [Gutenberg inventou a impressora e revolucionou a distribuição de ideias através da impressão, mas não criou uma nova Bíblia, apenas a imprimiu]

Há mais uma evidência, mas é sobre os humanos:

- a Inteligência Artificial pode ser para muitos apenas mais uma tecnologia que os humanos irão usar para progredir; só que esta tecnologia progride a um ritmo que os humanos não acompanham [“somos adaptáveis mas precisamos de tempo"]

“É responsabilidade dos governos comprarem-nos tempo”

É por estas razões que Harari defende uma intervenção especial dos governos no que respeita à regulação da IA. “É responsabilidade dos governos comprarem-nos tempo”, defende, sobretudo impondo limites temporais à entrada no mercado das novas soluções de IA, já que no que respeita ao seu desenvolvimento é bastante mais difícil controlar o processo. No fundo, exemplifica, não é assim tão diferente do que já acontece quando um novo medicamento entra em avaliação face aos efeitos que pode causar antes de ser vendido ou um novo carro em testes.

Assumir este compromisso significa também traçar uma linha entre democracias e ditaduras: “se a China quiser colocar no mercado uma determinada tecnologia, pode, mas não deve ser aprovada sem regras nos regimes democráticos”.

E é precisamente por causa do que  representam as democracias que Yuval Harari está particularmente preocupado com a IA. “A democracia é uma conversa entre pessoas e não entre bots e a conversa é baseada na confiança”. Onde fica a confiança quando é possível, através do uso da tecnologia, “criar seres humanos falsos” e “competir com a intimidade” que é própria da relação entre duas pessoas reais?

Mais uma vez, para o filósofo, os governos das democracias têm de agir - e agora. Regressando aos exemplos; há penalizações para quem falsifica dinheiro, deve haver penalizações para quem falsifica seres humanos.

"perdemos o primeiro combate com as redes sociais”

Chegados a este ponto, entramos num domínio da conversa com Yuval Harari que conhecemos melhor, porque é passado e presente e não uma projeção de futuro. As redes sociais são o primeiro exemplo de massas de utilização da tecnologia para condicionar relações entre pessoas e, por inerência, com impacto nas democracias. “São uma das principais razões do mundo polarizado em que vivemos e perdemos o primeiro combate com as redes sociais”.

Perdemos como? A primeira razão e mais óbvia é a forma como os donos das redes sociais persistiram em apresentá-las como sendo “só” plataformas. Sem sentimento, sem opinião. Apenas tecnologia que os humanos, eles sim com sentimento e opinião, usam de múltiplas formas. Hoje já sabemos que não é verdade. Hoje sabemos que as plataformas de redes sociais testam funcionalidades A e B para aumentar o tempo que as pessoas passam nos seus domínios e a interação que têm com os conteúdos que são partilhados.

“O objetivo é ter mais minutos do tempo das pessoas e o algoritmo testa opções. Se o conteúdo que gera revolta e ódio dá mais resultados que o conteúdo moderado, é o que vai ser promovido para que mais pessoas vejam e interajam”.

Conhecemos bem este relato, já todos passámos por lá. Agora temos alguém que nos diz: “Com a inteligência artificial vai ser muito pior”.

Trouxe-nos portanto o Armagedon em 45 minutos?

Não exatamente. Até porque, diz o professor e autor, se fala tanto de como a tecnologia nos pode prejudicar é porque os donos da tecnologia falam tanto de como nos pode beneficiar. Mas, ele, Harari, sabe pela sua experiência que a internet não é só isto.

“Não fomos criados para nos reinventar desta forma. É difícil e precisa de apoio mental e psicológico”

Para que os humanos possam continuar a progredir – a florescer, fica mais bonita uma tradução literal – na era da Inteligência Artificial, a capacidade mais importante a desenvolver é a de conseguir continuar a mudar. Mudar como um ato quase quotidiano, o que é uma exigência para a qual não estamos minimamente preparados. “Não fomos criados para nos reinventar desta forma. É difícil e precisa de apoio mental e psicológico”.

Yuval Harari em Portugal
créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Mas precisamos sobretudo de tempo. “É preciso abrandar”. Estamos a concorrer com material inorgânico, recorda. Que não se cansa, que não dorme, que não tem necessidades humanas. Noutro registo, recordo outra conferência em que um dia alguém fez o mesmo paralelo no que respeita ao jornalismo e às redes sociais: “não concorram com o Twitter, primeiro porque não é jornalismo e depois porque ganha-vos sempre se só contar a rapidez”.

Foi também neste momento da conversa que o filósofo e historiador teve um dos momentos confessionais quando partilhou o quanto o deixa exasperado ouvir as pessoas a dizer a toda a hora que estão muito entusiasmadas com isto ou aquilo, sobretudo em países como os Estados Unidos [“everything is exciting, we don’t need that”].

A ignorância é atrevida, mas a inteligência pode sê-lo muito mais – e com propriedade. A fechar, Harari trouxe-nos o atrevimento de desmontar lugares comuns, daqueles que as redes sociais estão cheias. Como, por exemplo, o do elogio do líder autêntico, que diz tudo o que pensa, sem filtros,  a que contrapôs exatamente o inverso, o elogio de pensar antes de falar.

E, a cereja que faltava, a de pararmos de falar da verdade como uma realidade subjetiva e indexada ao que mais nos convém. “Gostaria de dizer que os humanos da pré-história comiam sobretudo alimentos vegetais e que isso foi bom para a evolução. Só que não é verdade, comiam muita carne e foi essa proteína toda que permitiu a expansão do cérebro humano. Não me impede de defender que hoje devemos comer menos carne, mas não muda em nada a verdade da história”. Fala o autor de Sapiens: Uma Breve História da Humanidade a quem ficamos com vontade de pedir uma sequela sobre Uma Breve História da Estupidez.