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Sasha

Havia uma divisão na casa de Sasha que era um portal para outra dimensão, e essa dimensão era 1997. Ali, Sasha descobriu um computador iMac em forma de ovo com uma carapaça de plástico azul, um blusão de esqui com uma data de etiquetas de papel ainda presas ao fecho-éclair, uma pilha amarfanhada de bilhetes de avião e um cachimbo de erva em vidro com um velho isqueiro amarelo escondidos ao fundo de uma gaveta. Sempre que Sasha dizia ao marido que adoraria pôr a coleção de artigos da escola secundária da cunhada numa caixa, ele revirava os olhos e pedia-lhe que fosse paciente. «Ela há de vir buscar as suas coisas quando tiver tempo.» Mas Sasha tinha as suas dúvidas, e era esquisito viver numa casa em que um quarto permanecia completamente encerrado, como um altar conservado a um filho perdido.

Nos dias bons, ela conseguia reconhecer a sorte que tinha por viver naquela casa. Era um casarão de pedra calcária de quatro andares em Brooklyn, um palácio enorme e formal onde caberiam dez dos T1 em que Sasha tinha morado até então. Porém, nos dias maus, Sasha sentia que vivia numa cápsula do tempo, na casa em que o marido crescera e da qual nunca saíra, cheia de memórias e de histórias dele, mas, sobretudo, de tretas da família dele.

Três semanas depois de Sasha e Cord viverem juntos naquela casa, ela convidou os sogros para jantar. «Vou fazer tartes de cogumelos e uma salada de queijo de cabra», indicou no email.

Passou a manhã inteira a sovar a massa para as tartes e até foi a pé ao mercado chique de Montague comprar bagos de romã com que guarnecer as alfaces-bebés. Aspirou a sala de estar, limpou o pó às estantes e pôs uma garrafa de Sancerre no frigorífico. Quando os sogros chegaram, traziam três sacos de pano da L.L.Bean.

– Oh, não tinham de trazer nada! – exclamou Sasha, consternada.

– Sasha – cantarolou a sua sogra, a abrir o armário para pendurar o seu casaco bouclé da Chanel. – Mal podemos esperar por saber tudo sobre a vossa lua de mel.

E levou os sacos para a cozinha, começando por tirar uma garrafa de Borgonha branco, dois arranjos de flores em jarras baixas, uma toalha de mesa com flores-de-lis bordadas e três assadeiras com tampa da Williams Sonoma. Dispô-las na bancada da cozinha e, como uma mulher à vontade na cozinha que fora a sua durante quarenta anos, abriu o armário para tirar um copo e servir-se de vinho.

– Fiz tartes de cogumelos – tentou Sasha, que de súbito se sen- tia como aquela senhora da banca de provas gratuitas do supermercado, a tentar vender cubos mornos de queijo processado.

– Oh, eu vi no email, querida. Calculei que isso quisesse dizer que era um jantar com tema francês. Diz-me só quando te faltarem dez minutos para estarem prontas e eu ponho o meu coq au vin no forno. Também tenho endívias à provençal, e trouxe bastantes, por isso se calhar não vamos precisar da tua salada. As velas estão ali naquela gaveta, agora vamos lá ver a mesa para percebermos de que mais precisamos.

Por solidariedade, Cord comeu tarte de cogumelos e salada, mas, quando Sasha o apanhou a lançar um olhar desejoso às endívias, dirigiu-lhe um sorriso tenso que queria dizer: «Podes comer os mal- ditos vegetais, mas és capaz de ter de dormir no sofá.»

Luísa Sobral vem ao É Desta Que Leio Isto. Quer ler "Apenas Miúdos", de Patti Smith? Junte-se à conversa

Luísa Sobral junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 14 de setembro, pelas 21h.

Habituada a recomendar leituras nas suas redes sociais, traz um livro para o clube É Desta Que Leio Isto — e não deixa a música de fora: "Apenas Miúdos", de Patti Smith.

"Apenas Miúdos", de Patti Smith

Este é o primeiro livro de Patti Smith em prosa. É um livro de memórias — que começa no Verão em que Coltrane morreu, do Verão do amor livre e de todos os motins, do Verão em que conheceu a figura central deste livro — o lendário fotógrafo americano Robert Mapplethorpe. Mas é também um retrato de época — dos dias do Chelsea Hotel e de Nova Iorque no fim dos anos 1960 — e uma comovente história de juventude e amizade.

Just Kids é uma fábula em que encontramos poesia, rock’n’roll, sexo e arte que começa numa história de amor e acaba numa elegia.

Sobre Luísa Sobral:

Luísa Sobral é considerada uma das cantoras-compositoras mais importantes da nova geração de músicos portugueses. Estreou-se em 2011 com ‘The Cherry on My Cake’. Seguem-se ‘There’s A Flower In My Bedroom’ (2013), com convidados como Jamie Cullum, António Zambujo e Mário Laginha, ‘Lu-Pu-I-Pi-Sa-Pa’ (2014), destinado ao público infantil, e ‘Luísa’ (2016), gravado em Los Angeles. ‘Rosa’, o quinto álbum de originais, chegou em 2018.

"A sua faceta de compositora vai-se destacando ao longo dos anos, chegando a compor para artistas como Ana Moura, António Zambujo, Gisela João, Sara Correia, Mayra Andrade, entre muitos outros. Em 2017, assina ‘Amar Pelos Dois’, que entrega ao irmão, Salvador Sobral, para interpretar. A parceria fraterna revela-se um estrondoso sucesso: Portugal conquista a sua primeira vitória de sempre na Eurovisão", pode ler-se na sua biografia.

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O acordo era novo para todos eles, e Sasha percebia que ia demorar algum tempo a habituar-se. Os pais de Cord, Chip e Tilda, queixavam-se havia anos de que a casa era demasiado grande só para os dois, de que ficava demasiado longe da garagem, de que estavam fartos de limpar a neve do jardim e de levar a reciclagem até ao passeio. Tinham investido num prédio a dois quarteirões dali – o antigo cinema de Brooklyn Heights, que fora transformado em cinco apartamentos de luxo – e decidiram ficar com a maisonette, mudando-se para lá numa semana, usando apenas o velho Lexus e o marido da governanta, a quem pagaram trezentos dólares. Parecia um despojamento rápido de uma casa que tinham habitado durante quatro décadas, mas, para além das roupas, Sasha não via mesmo que mais eles teriam levado para a sua nova morada. Até tinham deixado no quarto a enorme cama de dossel, e Sasha sentia-se um pouco mais do que desconfortável a dormir aí.

Os Stockton decidiram deixar que Sasha e Cord se mudassem para a casa que tinham desocupado, podendo morar lá durante todo o tempo que quisessem. Depois, um dia, quando a vendessem, dividiriam o dinheiro entre Cord e as duas irmãs deste. Havia mais alguns pormenores no acordo, com o propósito de evitar impostos de sucessão desnecessários, mas Sasha tinha feito por ignorar essa parte burocrática. Ainda que lhe tivessem permitido casar com o filho, ela compreendia, a um nível bem profundo, que prefeririam que ela os apanhasse num aeróbico ménage à trois com a parceira de bridge de Tilda a que se pusesse a estudar-lhes as declarações de rendimentos.

Depois do jantar, Sasha e Cord levantaram a mesa enquanto os pais dele iam para a sala de estar tomar um copo. Havia um carrinho de bebidas a um canto da sala, com velhas garrafas de conhaque que gostavam de servir em copos minúsculos debruados a dourado. Os copos, como tudo o resto naquela casa, eram antigos e tinham uma história. A sala tinha cortinas compridas de veludo azul, um piano e um sofá desconfortável com pés de garra e bola que em tempos pertencera à mansão do governador. Certa vez, Sasha cometera o erro de se sentar nele e ficara com uma urticária tão má nas barrigas das per- nas que precisou de usar loção de calamina antes de ir para a cama. No átrio, havia um lustre; na sala de estar, um relógio de pé que dava as horas tão ruidosamente que ela até soltou um gritinho da primeira vez que o ouviu; e, no escritório, um quadro enorme de um navio num oceano ameaçadoramente escuro. Toda a casa tinha uma aura vaga- mente náutica, o que não deixava de ter graça porque estavam em Brooklyn e não em Gloucester ou em Nantucket, e, se bem que Chip e Tilda decerto tivessem passado alguns verões a velejar, o mais habitual era contratarem barcos tripulados. Os copos tinham lemes de navios gravados, os individuais pinturas a óleo de barcos à vela, a casa de banho uma carta náutica emoldurada e até as toalhas de praia tinham diagramas que ensinavam a fazer vários nós. Por vezes, ao final do dia, Sasha dava por si a vaguear pela casa, a passar a mão pelas velhas molduras e velas, sussurrando «Fechar as escotilhas!» e «Esfregar o convés!», o que lhe dava vontade de rir.

Sasha e Cord acabaram de levar os pratos para a cozinha e juntaram-se aos pais dele na sala, onde Cord serviu um pequeno copo de conhaque a cada. Tinha um sabor pegajoso e medicinal e deixava Sasha estranhamente ciente dos cílios das narinas, mas bebeu na mesma, só para os acompanhar.

– Então, meninos, que estão a achar da casa? – perguntou Tilda, a cruzar uma perna comprida sobre a outra. Tinha-se aprumado para o jantar e trazia uma blusa colorida, uma saia-lápis, collants transparentes e saltos altos de oito centímetros. Todos os Stockton eram bastante altos e, com aqueles tacões, a sogra impunha-se definitivamente sobre Sasha (e se alguém dissesse que isso não era para demonstrar o seu poder, estaria a mentir com os dentes todos.)

Livro: "A Casa de Pineapple Street"

Autor: Jenny Jackson

Editora: ASA

Data de Lançamento: 12 de setembro de 2023

Preço: € 19,90

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– Adoramos. – Sasha sorriu. – Sentimo-nos muito afortunados por ter uma casa tão linda e espaçosa.

– Mas, mãe – começou Cord –, estávamos a pensar que gosta- ríamos de fazer algumas alterações.

– Claro, querido. A casa é vossa.

– É mesmo – concordou Chip. – Estamos completamente instalados em Orange Street.

– Que amável – aproveitou Sasha. – Ocorreu-me que o armário do quarto é um pouco estreito, e se tirássemos aqueles cubículos embutidos da parte de trás...

– Oh, não, querida – interrompeu Tilda. – Não devem tirá-los. São mesmo perfeitos para todo o género de coisas pequenas... sapatos de outras estações, chapéus, qualquer coisa com uma aba que não queiramos que fique esmagada. Estariam a prestar um mau serviço a vocês mesmos se os retirassem.

– Oh, certo, está bem. – Sasha assentiu com a cabeça. – Faz sentido.

– Então e esta mobília da sala – tentou Cord de novo. – Podía- mos arranjar um sofá realmente confortável e, se mudássemos os cortinados de veludo, teríamos muito mais luz.

– Mas os cortinados foram feitos à medida para a sala. Essas janelas são absolutamente enormes, e acho que, se tirassem os cortinados, iam ficar chocados ao perceber como é difícil encontrar a coisa certa para este espaço. – Tilda abanou a cabeça com tristeza, ao que o seu cabelo louro refletiu a luz do lustre. – E se vivessem aqui durante algum tempo, ficassem a conhecer o lugar e pensas- sem bem no que poderia deixar-vos mais confortáveis? Queremos mesmo que se sintam em casa aqui. – Deu uma palmadinha firme na perna de Sasha e levantou-se, assentindo com a cabeça ao marido e tremelicando do alto dos seus saltos até à porta. – Bem, é melhor irmos andando... obrigada pelo jantar. Vou deixar a LeCreuset cá, podem lavá-la na máquina. Não tem problema nenhum (essas panelas não precisam de ser lavadas à mão) e da próxima vez que viermos cá jantar, levo-a. Ou vocês passam por lá e devolvem-na.

E podem ficar com as jarras... reparei que a decoração da mesa estava um pouco pobre. – Vestiu o casaco, cor de marfim e rosa com um toque de lavanda, pendurou a alça da mala no antebraço e seguiu com o marido pela porta, pelas escadas e até ao seu apartamento mobilado de fresco sem a menor referência náutica.

Sempre que alguém perguntava a Sasha como fora que ela e Cord se tinham conhecido, ela respondia: «Oh, eu era a psicóloga dele.» (Era uma piada – os WASP, homens anglo-saxões brancos e protestantes, não vão ao psicólogo.) Num mundo de Match e Tinder, o namoro deles parecia mais antiquado do que uma quadriga. Sasha estava sentada ao balcão do Bar Tabac a beber um copo de vinho. Tinha ficado sem bateria no telemóvel, pelo que pegara numas palavras-cruzadas abandonadas do The New York Times. Estavam quase terminadas – algo que ela nunca chegara sequer perto de fazer – e, enquanto estudava as respostas, Cord aproximou-se do balcão para fazer um pedido e começou a conversar com ela, maravilhando-se com a beldade que por acaso também era um ás das palavras-cruzadas.

Tinham-se encontrado para tomar cocktails uma semana depois e, apesar de «toda a relação se basear numa mentira», uma expressão que Cord passara a usar com frequência depois de descobrir que Sasha, na verdade, não conseguia sequer completar as palavras- -cruzadas mais fáceis de segunda-feira, fora basicamente um romance perfeito.

Bem, era o romance perfeito para um par de adultos reais e funcionais com uma quantidade normal de bagagem, independência, consumo de álcool e apetite sexual. Passaram o primeiro ano juntos a fazer todas as coisas que os casais nova-iorquinos com trinta e poucos anos fazem: cochichar seriamente ao canto do bar em festas de aniversário, despender um esforço ridículo para conseguir reservas em restaurantes que serviam ovos em ramen, contrabandear snacks comprados fora em salas de cinema, e vestir-se e encontrar-se com outras pessoas para um brunch, enquanto ansiavam secretamente pela altura em que se sentiriam suficientemente confortáveis um com o outro para passarem os domingos apenas deitados no sofá a comer sanduíches de bacon comprado na mercearia lá de baixo e a ler o Times de domingo. Claro que também discutiam. Cord levou Sasha a acampar e a tenda deixou entrar água, ele gozou com ela por ter medo de ir fazer chichi sozinha à noite e ela disse-lhe que nunca mais voltaria a pôr um pé que fosse no Maine. A melhor amiga de Sasha, Vara, convidou-os para a inauguração da sua exposição e Cord não foi, tendo ficado retido no trabalho, e não compreendeu a magnitude de tal transgressão. Cord apanhou uma conjuntivite e teve de andar por aí a parecer um coelho semirraivoso, e Sasha meteu-se tanto com ele que o fez amuar. Mas, no geral, o amor deles era como os das histórias.

Sasha demorou muito tempo a perceber que Cord era rico – demasiado, o que era embaraçoso, com um nome como Cord. O apartamento dele era simpático, mas normal. Conduzia um verdadeiro chaço. Vestia roupas anódinas e era uma desgraça no que dizia a cuidar bem das suas coisas. Usava a mesma carteira até o couro rachar, os seus cintos eram os mesmos que a avó lhe comprara quando andava na escola secundária, e tratava o iPhone como se fosse alguma espécie de código nuclear que tivesse de ser transportado numa pasta algemada ao seu pulso, ou, pelo menos, envolvido tanto num protetor de ecrã como numa capa mais grossa do que uma fatia de pão. Sasha devia ter assistido demasiadas vezes a O Lobo de Wall Street, pois sempre julgara que os ricalhaços de Nova Iorque teriam cabelo penteado para trás com gel e passariam a vida a pedir garrafas em qualquer bar a que fossem. Pelo contrário, ao que parecia, usavam camisolas até estas ficarem rotas nos cotovelos e tinham relações pouco saudáveis com as mães.

Cord era praticamente obcecado pela família. Ele e o pai trabalhavam lado a lado todos os dias, as duas irmãs viviam no bairro e ele estava sempre a encontrar-se com elas para jantar, e falavam mais ao telefone do que Sasha falava com quem quer que fosse. Cord fazia coisas pelos pais que a ela nunca lhe passariam sequer pela cabeça – ia cortar o cabelo com o pai, sempre que precisava de camisas novas comprava idênticas para o pai, escolhia o vinho francês de que a mãe gostava no Astor Place e massajava-lhe os pés de uma maneira que fazia Sasha ter vontade de sair da divisão. Mas quem é que massajava os pés à própria mãe? Sempre que via aquilo, Sasha lembrava-se da cena de Pulp Fiction em que John Travolta comparava o ato a sexo oral, e ficava tão maldisposta que até sentia o olho a tremer.

Sasha adorava os pais, mas as suas vidas não estavam interligadas dessa maneira. Eles interessavam-se vagamente pelo seu trabalho de designer gráfica, falavam com ela todos os domingos e trocavam algumas mensagens durante a semana e por vezes, quando ela ia visitá-los, ficava surpreendida ao saber que tinham trocado de carro por um novo sem nunca o terem referido, ou, certa vez, que até tinham mandado abaixo uma parede entre a cozinha e a sala de estar.

As cunhadas de Sasha tratavam-na com cortesia. Enviavam-lhe mensagens no dia do seu aniversário, nunca se esqueciam de lhe perguntar pela família, emprestavam-lhe uma raquete e roupa de ténis para que pudesse juntar-se ao desporto favorito da família durante as férias. Ainda assim, Sasha sentia que, em certa medida, elas prefeririam que ela não estivesse por perto. Podia estar a contar uma história à irmã mais velha de Cord, Darley, que, se ele entrasse na sala, Darley deixava simplesmente de a ouvir e começava a fazer perguntas ao irmão. Georgiana, a mais nova, podia dar a impressão de estar a falar com todos eles, mas Sasha reparava que o seu olhar nunca se desviava do dos irmãos. A família era uma unidade, um circuito fechado que Sasha não parecia sequer conseguir penetrar.

Os Stockton dedicavam-se ao ramo imobiliário. Ao início, isso fez com que Sasha achasse ainda mais estranho que a casa deles fosse tão atulhada. Não deveriam viver numa espécie qualquer de paisagem onírica e desprovida de excessos, como as das páginas da Architectural Digest? Porém, afinal o interesse que tinham pelo setor imobiliário tinha menos que ver com vender apartamentos e mais com investimentos em grande escala. O avô de Cord, Edward Cordington Stockton, herdara uma fortuna familiar modesta. Na década de 1970, quando a cidade periclitava à beira da bancarrota, usara esse dinheiro para comprar propriedades no Upper East Side. Gastara quatrocentos e cinquenta dólares por metro quadrado. Essa propriedade agora valia doze mil dólares por metro quadrado, e os Stockton eram extraordinariamente ricos. Com o filho – o pai de Cord – Chip, compraram propriedades à beira-rio, em Brooklyn, avançando por Dumbo e por Brooklyn Heights. Em 2016, quando as Testemunhas de Jeová decidiram livrar-se das propriedades que tinham em Brooklyn Heights, eles agarraram a oportunidade, reunindo um grupo de investidores para comprarem o famoso prédio Watchtower, bem como o antigo Standish Arms Hotel. Edward Cordington falecera, mas agora Cord trabalhava ao lado do pai, a terceira geração de homens Stockton no mercado imobiliário nova-iorquino.

Paradoxalmente, a família Stockton optara por viver na zona das ruas com nomes de fruta de Brooklyn Heights, os três peque- nos quarteirões das ruas Pineapple, Orange e Cranberry (1) situadas no promontório sobre a marginal. Apesar de tudo o que investiam para converterem edifícios antigos em novos apartamentos de luxo, tinham-se instalado numa zona completamente à prova de alterações significativas, protegida pela Comissão de Conservação de Marcos Históricos. Em várias casas do bairro, tabuletas e placas indicavam «1820» ou «1824». Havia casinhas muito peque- nas de madeira branca. Havia jardins folhosos escondidos atrás de portões de ferro forjado. Havia antigos estábulos e cocheiras. Até a farmácia parecia pertencer a um lugarejo britânico, com paredes de pedra cobertas de hera. Sasha adorava especialmente uma casa na esquina das ruas Hicks e Middah, uma antiga drogaria cujos ladrilhos da entrada diziam «drogas».

A família materna de Cord talvez tivesse um pedigree mais prestigioso. Tilda Stockton, cujo nome de solteira era Moore, provinha de uma longa linhagem de realeza política. Tanto o pai como o irmão tinham sido governadores de Nova Iorque, e ela participara em perfis familiares publicados pela Vogue e pela Vanity Fair. Casara com Chip Stockton aos vinte e um anos e, embora nunca tivesse tido um verdadeiro emprego das nove às cinco, obtivera a reputação de ser uma consultora de eventos altamente bem-sucedida, ligando os seus amigos abastados da alta-sociedade aos seus organizadores de festas preferidos. Para Tilda Stockton, uma noite nunca ficaria completa sem uma visão, um tema, um arranjo artístico da mesa e um código de indumen- tária. A Sasha, tudo isso dava vontade de se esconder debaixo de um monte de guardanapos de cocktail com monogramas bordados.

Sasha passou os meses a seguir ao casamento a tentar instalar-se na casa de Pineapple Street. Tentou convencer-se de que era arqueóloga e de que estudaria a antiga civilização dos seus sogros.

Assim, em vez do túmulo de Tutankhamon, encontrou um cinzeiro que Darley tinha feito no sexto ano e que parecia um cogu- melo deformado. Em vez dos Manuscritos do Mar Morto, encontrou o trabalho de Cord da escola primária sobre tipos de pinhas. Em vez do Exército de Terracota, encontrou uma gaveta cheia de escovas de dentes gratuitas de um dentista de Atlantic Avenue.

Dos quatro quartos, o de Darley era o pior, mas nenhum estava verdadeiramente livre. O antigo quarto de Cord tinha sido esvaziado quando ele fora para a faculdade, mas ainda tinha um candelabro de prata dourada, um conjunto de jarrões mandarins e dúzias de quadros emoldurados, obras de arte que a família adquirira ao longo dos anos, mas para as quais não tinha lugar. O quarto de Georgiana ainda guardava todos os manuais escolares e álbuns de fotografias dela, bem como toda uma prateleira de troféus de ténis; e o quarto principal, ainda que despejado de roupas e joias, continha ainda a decoração e os móveis dos residentes anteriores, e Sasha tinha imensa dificuldade em chegar ao clímax enquanto a cabeceira de mogno que provavelmente pertencera a um congressista ou a algum secretário de Estado dos transportes batia contra a parede.

Ao enfiar as malas vazias nuns armários já demasiado cheios, perguntou-se se a deixariam mudar a cortina do duche. Esperaria uns meses.

Chip e Tilda decidiram organizar uma festa de inauguração do apartamento novo em Orange Street e pediram aos filhos e aos cônjuges destes que chegassem cedo. Seria numa quarta-feira à noite, porque a maioria dos amigos passava o fim de semana em casas de campo e alguns preferiam partir logo na quinta. Na cidade, a vida social dos pais Stockton só tinha lugar entre segunda e quarta-feira, antes de os amigos se dispersarem pelos confins de Long Island e Litchfield County.

– O que hei de usar? – perguntou Sasha a Cord, em frente ao guarda-roupa. Nunca sabia como vestir-se para estar com a família dele. Era como se houvesse um quadro de inspiração que todos os outros consultassem mas cuja visão lhe escapasse sempre.

– Usa o que quiseres – respondeu Cord, o que não ajudava.

– Então posso ir de calças de ganga?

– Bem, eu não iria de calças de ganga. – Ele franziu o sobrolho. – OK, então é melhor ir de vestido? – perguntou Sasha, irritada.

– Quero dizer, a mãe disse que o tema era «em alta e em frente». – Não sei o que é que isso quer dizer.

– Eu vou vestir o mesmo que levei hoje para ir trabalhar. Tenho a certeza de que a maior parte das pessoas fará o mesmo.

Cord trabalhava de fato e gravata, pelo que isso era tão relevante para a vida de Sasha como se ele usasse roupa de bloco operatório ou farda de bombeiro. Como estava desconcertada, decidiu jogar pelo seguro e escolheu uma blusa branca bonita enfiada numas calças azul-escuras, e os pequenos brincos de diamante que a mãe lhe dera quando terminara o curso. Aplicou batom e, ao ver-se ao espelho antigo por cima da lareira, sorriu. Sentia-se clássica, como Amal Clooney a sair das Nações Unidas para jantar com George. Em alta e em frente, de facto.

Quando chegaram ao apartamento, as irmãs de Cord já lá estavam. Georgiana, com um lindíssimo ar boémio, deixara o cabelo comprido e castanho solto a cair-lhe pelas costas, usava um vestido leve que lhe chegava aos tornozelos e não disfarçara as sardas que lhe salpicavam o nariz; Darley optara por um macacão com cinto que decerto teria aparecido nas páginas da Vogue Italia. O marido de Darley, Malcolm, estava ao lado dela, e Sasha expirou um suspiro de alívio. Rapidamente o identificara como um aliado no estranho mundo da irmandade por afinidade, e eles até tinham um código que murmuravam quando as coisas ficavam mesmo esquisitas: NMF. Queria dizer «Não é a Minha Família» e exonerava-os de qualquer situação em que se sentissem como testemunhas externas de bizarros rituais de anglo-saxões brancos e protestantes, como aquela vez em julho em que os Stockton tinham insistido em contratar um fotógrafo profissional para um retrato de família que servi- ria para o postal de Natal e tinham obrigado toda a gente a usar tons de verde e vermelho e a ficar em semicírculo em redor de Chip e Tilda, sentados em duas cadeiras. O fotógrafo dera-lhes indicações durante quase uma hora sob um sol abrasador enquanto Berta, a governanta, ia entrando e saindo de casa, atarefada a preparar o grelhador, e a equipa de jardinagem tratava das plantas, todos com o cuidado de evitar contacto visual. Sasha tinha-se sentido como se fizesse parte da família Romney e ficara absolutamente mortificada com toda a situação, mas ao menos pudera trocar olhares sofridos com Malcolm. Juntos, eram estudantes estrangeiros a participar num intercâmbio, unidos pela noção de que haviam chegado a uma terra profundamente estranha.

Berta passara o dia a preparar a festa de inauguração e a mesa da sala gemia sob o peso das travessas de prata com camarão sobre gelo, rosbife e tostas, salmão fumado em triângulos de pão tostado e pastelinhos minúsculos de caranguejo. Ela tinha servido copos de vinho branco, que dispusera numa bandeja que ofereceria perto da entrada, de modo a que os convidados pudessem começar a beber assim que chegassem. O vinho tinto estava proibido, obviamente, sobretudo para proteger os tapetes novos, mas também porque, depois de beber vinho tinto, toda a gente ficava com os dentes com um aspeto terrível. Tilda era obcecada por dentes.

Os convidados começaram a chegar e Sasha reconheceu muitos do seu casamento. Os Stockton tinham tantos amigos no casamento que Sasha passara o copo-d’água todo a dar apertos de mão e a tentar memorizar nomes, parando apenas quando os primos a puxaram para a pista de dança para se abanar ao som de «Baby Got Back». Tinha sido uma coisa elegante.

Cord conhecia toda a gente e não tardou a ser levado para o escritório para mostrar a coleção de relógios do pai a um cavalheiro calvo. Alguns eram relógios militares raros, alguns Patek antigos, alguns Rolex com mostradores mates e dourados, e haviam pertencido ao avô de Cord. Eram tão valiosos que Chip já fora abordado por várias casas de leilões com ofertas pela coleção, mas sempre tinha declinado tais propostas. Nunca lhes tocava, nem sequer olhava para eles; mas Cord dizia que o pai gostava de saber que tinha sempre dinheiro no apartamento, como maços de notas escondidos debaixo de um colchão. (Sasha não o dizia, mas achava que aquilo era capaz de ter mais que ver com a aversão familiar a destralhar.)

Georgiana estava sentada no sofá a sussurrar com a madrinha, enquanto Darley e Malcolm entretinham um séquito de um pequeno grupo do clube de ténis de Montague Street, mostrando-lhes fotografias dos filhos. Era frequente Georgiana aparecer lindamente desleixada, com o casaco por cima dos ombros e os pulsos carregados de pulseiras de missangas desirmanadas, mas Darley tinha sempre um ar aprumado e dispendioso, com o cabelo castanho cortado pelos ombros, a maquilhagem praticamente impercetível, usando como únicas joias um pequeno relógio de ouro e os anéis de noivado e casamento. Sasha manteve-se acanhadamente na periferia da sala, sem saber como poderia incluir-se nalguma conversa. Sentiu-se aliviada quando uma mulher com um capacete de cabelo louro avançou na sua direção com um sorriso rasgado.

– Olá, queria outro Chardonnay, muitíssimo obrigada – disse a mulher, e entregou-lhe um copo com dedadas gordurosas.

– Oh, eu sou a Sasha – riu-se ela, levando uma mão ao peito. – Obrigada, Sasha – respondeu a mulher num tom animado.

– Oh, claro – recuperou Sasha. Levou o copo para a cozinha e encheu-o com uma das garrafas do frigorífico antes de o levar de novo para a sala de jantar, onde a mulher o aceitou com um agradecimento sussurrado e regressou à mesa, sentando-se ao lado do marido, que estava a comer rosbife. Sasha voltou para a sala, em busca de Cord, mas foi intercetada por um homem rotundo de laço ao pescoço que lhe passou o seu prato sujo, dirigindo-lhe apenas um aceno de cabeça antes de continuar a conversar. Confusa, Sasha levou o prato dele para a cozinha e pousou-o na bancada. Isto aconteceu mais quatro vezes até Sasha finalmente chegar ao lado de Cord e não o largar mais, com o seu próprio copo de vinho na mão e a contar os minutos até poder voltar para casa. Será que lhes cheirava a que ela não tinha sangue azul? Será que a educação numa escola pública lhe emanava do cabelo como se tivesse passado um dia comprido a cozinhar em frente a uma grelha que salpicasse tudo de gordura? Deixou o olhar cirandar pela sala, observando as mulheres à sua volta. Eram uma matilha de caniches sofisticados e ela sentia-se como um porquinho-da-índia a tremer de nervos.

Por fim, os convidados foram-se embora e Chip arrastou o filho para o escritório para lhe dar um artigo que tinha recortado do Journal. (Chip e Tilda ainda recortavam artigos, recusando-se a reencaminhar links como toda a gente.)

– Divertiste-te? – perguntou Darley, enquanto passava uma madeixa reluzente para trás da orelha.

– Sim, foi mesmo agradável – tentou Sasha.

– Que maneira fixe de se passar uma noite fora – replicou Darley com sarcasmo –, junto de velhos que não fazemos a mínima ideia de quem sejam.

– Por acaso aconteceu uma coisa esquisita – confessou Sasha. – As pessoas passaram o tempo todo a entregar-me a loiça suja. Quero dizer, não tem mal, mas também te fizeram o mesmo?

– Oh! – riu-se Darley. – Que ridículo! Não tinha reparado, mas estás vestida como a Berta! Devem ter achado que eras uma empregada... merda! Malcolm! – chamou o marido para lhe contar.

Toda a gente se riu, Cord aproximou-se para lhe massajar os ombros e assegurar-se de que ela também achava engraçado, e Sasha deixou-se levar, sabendo no fundo do coração que nunca na sua vida voltaria a usar uma blusa branca numa festa da família Stockton.

(1) Respetivamente, Ananás, Laranja e Arando. (N. da T.)