“A Desobediente”, editada pela Contraponto, não é uma “biografia científica”, é uma biografia que está “contaminada pelo afeto” que marca a amizade existente entre Maria Teresa Horta e Patrícia Reis, explicou a autora em entrevista à Lusa.

Por isso mesmo, Patrícia Reis assume desde o início que esta não é uma “biografia imparcial” e que escolheu não escrever sobre certos acontecimentos, para assim respeitar a intimidade de Maria Teresa Horta.

“As coisas de alcova a mim não me interessam nada”, afirmou, salientando que não passou “por cima de nenhum episódio importante da vida de Teresa”.

Talvez por isso também, este não é um volume maçudo, contando com pouco mais de 400 páginas, em que a autora procurou sobretudo manter o “ritmo” e “uma certa eficácia”, para que “as pessoas o lessem com alguma dose de prazer”.

Para escrever esta obra, Patrícia Reis conversou dezenas de vezes com Maria Teresa Horta, acumulando mais de cem horas de gravações, um privilégio, por um lado, de ter os acontecimentos narrados na primeira pessoa, mas uma dificuldade também em validar as informações por fontes secundárias.

“Muitas das pessoas com as quais a Teresa privou, já cá não estão, outras não se mostraram acessíveis, porque sendo a Teresa uma biografada viva, há muita gente que não queria de forma nenhuma melindrá-la e, portanto, eu diria que o equilíbrio foi um equilíbrio instável, sempre. As opções são minhas, claro, a responsabilidade é minha, mas era no fio do arame, para tentar perceber até onde é que eu poderia ir e como é que poderia ir”.

Um desses casos é a história que abre a biografia, é “a memória inaugural da Teresa, a memória mais antiga que tem”, “um episódio que a marca para todo o sempre”, mas que não tem ninguém para a validar.

Maria Teresa Horta tinha 4 anos e estava sentada no chão com um livro, quando viu a mãe aproximar-se do carrinho de bebé onde dormia Chilinha, a irmã mais nova, de poucos meses, e pôr-lhe a almofada sobre a cara.

“Levantou-se, rápida, lembra-se desse gesto, e ficou a olhar para a mãe, tão bela. Tudo mudou, num repente. A mãe deixou a irmã no carrinho, voltou a pôr a almofada debaixo da cabeça da menina, os olhos presos na filha mais velha”, lê-se nas primeiras páginas de “A Desobediente”.

Carlota Mascarenhas pegou então em Teresa e “pendurou-a fora da janela, o seu corpo no ar”, a “mãe que a deveria proteger, que deveria ser colo e consolo, cega por um momento de desvario”.

Este é um “episódio inaugural de uma certa ideia da mãe, a mãe como mãe perigo e não apenas mãe amor ou mãe consolo. Porque a Carlota Mascarenhas sofria de depressões pós-parto gravíssimas, e naquela altura ninguém falava sobre isso”, explica Patrícia Reis.

Este acontecimento é a ponta de um novelo que se vai desenrolando ao longo de toda a biografia, marcadamente ligada à infância da escritora, revelando que “a mãe e o pai são figuras centrais na narrativa de vida da Maria Teresa, por razões diferentes, mas são”.

“A verdade é que a própria Teresa assume ser uma pessoa carente e encontra a explicação para essa carência no abandono a que é sujeita pela mãe, porque a mãe sai de casa da família, deixando-a para trás com as duas irmãs mais pequenas – ela é a mais velha - e o marido para ter uma outra relação. E a Teresa passa uma vida inteira à procura do amor da mãe. Sobre isto, eu não tenho a menor dúvida”, afirmou a biógrafa.

Ao mesmo tempo, Maria Teresa Horta torna-se “defensora da mãe, de uma forma muito veemente”, e nunca dirá “a mãe tentou matar a Chilinha”, escolhendo, numa conversa tida mais tarde com a avó Camila (avó paterna e uma mulher ousada para a época), dizer que “a mãe foi assaltada pelo susto da existência”, que “a mãe cegou por instantes, queria tudo menos ser mãe”.

A razão por que, apesar de tudo, Maria Teresa Horta sempre defendeu a mãe terá explicação no facto de ter percebido que “a mãe era, como ela se tornou, desobediente, mas ao mesmo tempo alguém que procurava o seu lugar no mundo”.

“A liberdade das mulheres era bastante condicionada e a mãe acabava por ser punida do ponto de vista social e familiar por querer fazer valer as suas vontades e as suas necessidades. Eu acho que a mãe é porventura o princípio, a par das reuniões com as sufragistas, às quais a Teresa foi com a avó Camila, eu acho que a mãe contribuiu grandemente para a construção de uma Teresa ativista do feminismo, claramente”.

Tem que ver com esse sentimento de proteção um dos episódios que mais surpreendeu Patrícia Reis: quando “Teresinha” recebe uma carta da mãe e tem “perfeita noção do perigo e do inusitado daquela correspondência”.

“Portanto, a primeira coisa que fez depois de ler foi enterrar a carta. Quando é confrontada com a existência da carta e exigem que a mostre, ela acaba por ir ao esconderijo, desenterrar a carta e comer a carta, e disse-me - de uma forma que para mim teve um impacto tremendo quando ela me contou a primeira vez – ‘engoli a minha mãe, para a proteger, engoli a minha mãe’”.

Aqui, como em outros momentos, a biógrafa encontrou a voz infantil da biografada: “Para ela era uma memória muito vívida, muito intensa e eu percebi a urgência daquela criança. É muito bom quando conseguimos ter uma conversa com alguém que tem a memória da sua infância tão explícita, portanto, há ali um momento em que, conversando com a Teresa, se vê a Teresinha”.

A primeira parte do livro (a maior) aborda a infância, a adolescência, os primeiros anos enquanto jovem adulta, até ao encontro com Luís Barros, que seria o seu marido, e é o chão fundador de quem é Maria Teresa Horta.

Tudo se desenha a partir daí e sem esse começo não existiria a Teresa jornalista, a Teresa feminista, a Teresa escritora, a Teresa política e a Teresa poetisa, a multiplicidade de Teresas que se espalham pelas páginas do livro, unidas pelo fio condutor da “Liberdade”, como assinala a autora.

No entanto, a palavra escolhida para o título foi “desobediente”, desde o início, porque Teresa fez um percurso de libertação de uma família aristocrática conservadora católica para uma vida engajada politicamente à esquerda, toma o partido das mulheres desde sempre, faz um percurso de liberdade, não queria estar sem voz, não queria ser submissa, “ela era e é desobediente”.

As perseguições pela PIDE, as “Novas Cartas Portuguesas”, as amizades com outros escritores, o aborto, o cancro de mama, tudo isto está na sua biografia, que é, como a autora a designa, uma “biografia com a colaboração da biografada” e não uma "biografia autorizada”.

Na base da investigação, estão também as entrevistas que Maria Teresa Horta dá desde os anos 1960, os artigos que escreveu, os diversos trabalhos académicos e a sua obra, porque “a vida da Teresa está na obra dela toda”.

Para Patrícia Reis, esta biografia tem um objetivo que vai muito além do meramente laudatório, pretendendo dar a conhecer não só “a vida ímpar da Teresa”, mas também “manter a sua obra viva”.

A ideia de escrever a biografia existia desde 2019, as conversas começaram em 2020, o trabalho foi concluído em 2023, ano em que Maria Teresa Horta completou 86 anos.

Hoje, a escritora e poetisa tem a solidão como “a sua maior companheira”, desde a morte do marido, em 2019, não sai de casa, com medo das quedas, vive rodeada de livros e fotografias, a televisão ligada nas notícias, vê muitos filmes, com a saudade constante de uma sala de cinema, e escreve poemas todos os dias, sem nunca se esquecer de lhes pôr a data.

Patrícia Reis admite que a visão que tinha da biografada mudou no final do trabalho e que hoje compreende melhor Maria Teresa Horta naquela sua permanente necessidade de conflito.