“Há muita relação entre a festa e estes comeres, que paulatinamente foram ganhando um caráter identitário da ilha”, revelou à Lusa a antropóloga Teresa Perdigão, autora do livro "Doçaria Açoriana - Da História que os Gestos Contam", apresentado hoje em Angra do Heroísmo.

O livro centra-se nos oito doces já certificados pelo Centro Regional de Apoio ao Artesanato (CRAA): a massa sovada, que se encontra em todas as ilhas, ainda que com particularidades diferentes de ilha para ilha; o alfenim, que é feito nas ilhas Terceira e Graciosa; as Donas Amélias, da ilha Terceira; as queijadas da Vila e os bolos lêvedos, de São Miguel; as espécies, de São Jorge; os biscoitos de orelha, de Santa Maria; e as queijadas da Graciosa.

“Não é um livro de receitas, é um livro de como é que a receita tem evoluído, porque a cozinha não é uma coisa estática, é algo que evolui ao sabor dos gostos da própria família, da própria comunidade e também em função da existência ou não de ingredientes”, frisou a autora.

Por exemplo, em São Jorge há quem encomende especiarias dos Estados Unidos da América para fazer espécies, por considerar que têm um sabor mais ativo.

Cada doce tem uma história e, embora atualmente se façam durante praticamente todo o ano, muitos começaram por ser feitos apenas para determinadas festas.

Ainda hoje, a massa sovada (espécie de pão doce) está associada às festas do Espírito Santo, bem como o alfenim, que é feito também pelo Santo Amaro e, na Graciosa, pelo São João.

Teresa Perdigão defende que o alfenim deve ser “inscrito pelo menos no património cultural imaterial regional”, porque atualmente há apenas três pessoas a comercializá-lo na ilha Terceira e duas na Graciosa.

Nos últimos anos, este doce feito à base de açúcar deixou de ser exclusivamente branco e ganhou novas cores e formas, sobretudo para atrair turistas.

No entanto, os picos de encomendas de alfenim continuam a ser as festas religiosas em que as pessoas oferecem imagens dos símbolos do Espírito Santo (coroas e pombas) ou de partes do corpo, como agradecimento por um pedido de ajuda, em caso de doença, por exemplo.

“O alfenim tem características simbólicas e sagradas muito importantes ligadas aos ex-votos que se continuam a dar pelo Santo Amaro ou no momento do Espírito Santo”, adiantou Teresa Perdigão.

Segundo a antropóloga, nem sempre se consegue ir à origem da receita devido à falta de documentação, mas é possível identificar a forma como evoluíram, fazendo a comparação com doces muito semelhantes encontrados noutras partes da Europa.

Por exemplo, em Malta há um doce igual às espécies de São Jorge, que utiliza igualmente muitas especiarias e a mesma forma, enquanto na Sicília, em Itália, é oferecido no dia dos defuntos um doce muito semelhante ao alfenim.

A história do nome das Donas Amélias é contada no diário da Rainha Dona Amélia que, aquando de uma visita à ilha Terceira, recebeu uns bolinhos e quando perguntou como se chamavam foi-lhe dito que não tinham nome, mas poderiam passar a chamar-se Donas Amélias.

Para Teresa Perdigão, a maior parte dos doces certificados dos Açores já são comercializados nas grandes cidades no continente português e têm cada vez maior procura por parte dos turistas, por isso é pouco provável que deixem de ser produzidos, mas há outras receitas em risco de se perderem no arquipélago.

A antropóloga, que visitou todas as ilhas dos Açores durante a pesquisa para o livro encomendado pelo CRAA, pretende editar um segundo volume sobre outros doces não certificados, como o regelo, um rebuçado colorido da ilha do Corvo, ou o arrelique, um bolo da ilha das Flores, originalmente feito pela festa de São Pedro.

“Espero que isso contribua para que a comunidade se aperceba de que tem riqueza própria e de que essa riqueza pode ser preservada e divulgada”, frisou.

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