1 — Escutar a Sabedoria dos Mais Velhos

Devemos ouvir os conselhos dos mais velhos,
não porque eles têm sempre razão,
mas porque já erraram muito mais do que nós.

Petiza. Era como ele me chamava. Petiza. Falo do meu bisavô, que me ensinou a saber ouvir. Não apenas a ele ou a outros humanos, mas tudo o que nos rodeia — os animais, as aves, as máquinas. E, também, a escutar o silêncio. Há momentos na vida em que nada nos sabe tão bem como ouvir o silêncio. Quem se disponibilizar a isso poderá dar por si recentrado, retemperado e mais em paz com quem é e com as suas atuais circunstâncias, com o lugar e com o momento que agora ocupa. Alguns chamam a isto meditação. Recentemente, há quem tenha começado a chamar-lhe conscientização.

Cresci na Nova Zelândia rural, rodeada pela minha família, o que tanto pode ser bom como mau. Para mim, foi simplesmente a educação que recebi, era a minha realidade e não conhecia outra. Dois pomares separavam a casa dos meus bisavós da casa onde eu vivia com os meus pais e com quatro irmãos. Fui a segunda a nascer, dois anos e dois dias depois do meu irmão mais velho. Seguir-se-iam outros três rapazes, que, para mim, eram um incómodo a ignorar. Vivia em Pirongia, um lugar a que não se pode chamar uma vila ou sequer aldeia. A montanha de que a povoação tomou o nome emprestado agigantava-se sobre nós como se fosse a nossa soberana. As suas encostas, a sua floresta e os seus rios e riachos eram o meu pátio das traseiras. Era para lá que eu me escapava, muitas vezes com o meu irmão mais velho. Toda a região estava vocacionada para os laticínios e o nosso dia a dia girava em torno das vacas. A ordenha era feita duas vezes por dia, as vacas pariam e havia todas as tarefas que tivessem que ver com bovinos. Tudo isso estava no nosso ADN. Ainda hoje a vaca é o meu animal favorito. Éramos autossuficientes em todos os grupos da roda dos alimentos — o que não produzíssemos nós, produzia algum vizinho e procedíamos a trocas. Da mesma maneira, havia entreajuda nas tarefas. Por vezes, ia com o meu pai para uma propriedade vizinha, onde ele e os outros homens da região se juntavam para enfardar feno, para plantar, e, de modo geral, para ajudar no que fosse preciso. Algumas das melhores recordações que guardo desses tempos reportam-se a tais ocasiões.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Anos mais tarde, quando vi o filme A Testemunha, ambientado numa comunidade amish nos Estados Unidos, senti-me regressar à infância. Aquela entreajuda entre vizinhos era a mesma a que eu assistira. A única diferença era que, no nosso caso, não nos unia uma religião. Quando não tinha escola, encantava-me ir com os meus pais para casa de alguém da família para ajudar nos trabalhos da sua propriedade. Tinha um tio e uma tia que viviam a cerca de duas horas de caminho. Eram ovinocultores e tinham cinco filhas. Naquela região, o género era uma questão irrelevante. Havendo trabalho para fazer, as raparigas mediam-se de igual para igual com os homens. Montávamos a cavalo e íamos recolher as ovelhas dispersas por muitas centenas de hectares, encaminhávamo-las para o banho parasiticida, e, de lá, para a tosquia.

O meu outro escape era a escola — com apenas quatro salas de aula e menos de cinquenta alunos repartidos pelos seis primeiros anos de escolaridade. Se o número de amigos seria necessariamente limitado, por outro lado, o género não era fator no forjar de amizades. A maioria das crianças ia para a escola de autocarro e regressava da mesma maneira, portanto, ficar a brincar com os amigos depois das aulas não era opção. Como não passava nenhum autocarro perto da nossa casa, eu e o meu irmão íamos e regressávamos da escola a pé, um trajeto que eu adorava fazer no inverno. As poças sucediam-se de um lado e doutro ao longo de uma estrada tosca e encantava-me a camada de gelo que se formava à superfície de cada uma. Adorava parti-la com o calcanhar e muitas vezes passava o dia com as meias e os sapatos ensopados em consequência disso. 

Naquele lugar, os homens eram homens. E, enfim, as mulheres eram mulheres, porém, não o tipo de mulher que eu desejava ser. Não que haja algo de errado em uma mulher ocupar-se da casa e dos filhos — se de facto quiser essa vida para si. Contudo, nas décadas de 1950 e 1960, mulheres como a minha mãe, como as minhas tias e como todas as outras que eu conhecia na região passavam a vida a queixar-se da sua sina. Diziam ter inveja dos homens, embora eu não entenda porquê, porque os homens trabalhavam a qualquer hora do dia ou da noite e pareciam-me tão insatisfeitos e tão infelizes como as mulheres. Pelo que recordo, havia uma única diferença entre uns e outros — os homens não se davam ao trabalho de se queixar. Repito: vivia na Nova Zelândia rural. Não imagino quais seriam as queixas das neozelandesas das grandes cidades e vilas urbanas.

Orgulho-me de ser neozelandesa. Fomos o primeiro país onde as mulheres puderam votar e, desde 1997, tivemos três primeiras-ministras, um feito notável. A primeira foi Jenny Shipley, dama da Ordem de Mérito da Nova Zelândia, sucedendo-se Helen Clark, e a atual titular do cargo é Jacinda Ardern, que personifica todos os atributos exigíveis num líder, sobretudo num momento como este, em que vivemos sob a ameaça de uma pandemia de covid-19. Compassiva, empática e alguém que sabe escutar aqueles a quem governa, a nossa atual primeira-ministra faz a inveja de muitas outras nações. Os neozelandeses dão-lhe ouvidos e seguem o seu exemplo, e, da mesma maneira, ela ouve o seu povo.

Às crianças, trazemo-las debaixo de olho e não damos ouvidos. Esta frase poderia servir de mote à minha infância. Era o que todos faziam, exceto uma pessoa: o meu bisavô. Infelizmente, em retrospetiva, mais ninguém da minha família tinha paciência para ouvir uma criança e muito menos ligava ao que tivéssemos para dizer. Não queriam perder tempo a conversar connosco, a aconselhar-nos ou a transmitir a sua sabedoria. A exceção era o meu bisavô. Quanto ao meu pai, era um homem calado e meditabundo, mas, se o apanhássemos sozinho e na disposição certa, também podia acontecer. 

Depois, havia a minha mãe. Sempre ouvi que, por norma, a relação entre mãe e filha é complicada. No meu caso, descrevê-la-ia como praticamente inexistente. Raramente a minha mãe me dirigia a palavra, a menos que para me mandar fazer alguma coisa. O afeto primava pela ausência e eu obedecia contrariada de cada vez que ela me mandava limpar o que os meus irmãos tinham sujado ou preparar as lancheiras que eles levavam para a escola. Tocava-me ajudar nas tarefas domésticas sem me queixar. A minha mãe era igual à sua mãe, a minha avó viúva, que vivia na casa em frente da nossa, com uma pequena estrada a separar-nos. Primos, tios e tias também viviam perto. De resto, tínhamos familiares mais ou menos afastados dispersos pela povoação. 

A partir dos dez anos, aproximadamente, fui incumbida de passar todos os dias em casa dos meus bisavós ao voltar da escola para saber se precisavam de alguma coisa. A essa hora, já a minha mãe tinha lá ido levar o jantar, que eles apenas teriam de aquecer. Ao chegar, encontrava sempre a minha bisavó dentro de casa, -ocupada na cozinha, e, mais tarde, quando a sua saúde se deteriorou, deitada. A minha bisavó nunca me dizia grande coisa. Olhava-me com pena, algo que eu via igualmente nas expressões da minha avó e da minha mãe. Porque eu era rapariga. Nessa altura, a minha mãe já me dissera várias vezes que lamentava eu ter nascido, porque, sendo rapariga, estava condenada a uma vida inteira a trabalhar e sem grande liberdade. Os sortudos eram os meus irmãos, que poderiam correr mundo e a quem não faltariam escolhas, enquanto eu não as teria.

Lembro-me de, na minha adolescência, a minha mãe me falar de um ou dois rapazes da zona com quem achava que eu devia conviver mais. Não percebi a conversa; via-os quando me apetecia. Ocasionalmente, podia combinar qualquer coisa com algum deles, mas, se o via num dia, no seguinte já não me apetecia. Uma tarde, a minha mãe anunciou-me que eu ia jantar a casa de um vizinho. Jantar fora de casa era coisa que não fazíamos. Ocasionalmente, quando os homens se juntavam na quinta de um vizinho para ajudar nalguma tarefa, as famílias acompanhavam-nos e comíamos todos juntos, mas ouvir que iria jantar sozinha a casa de alguém era inédito. Quando lhe perguntei o motivo, foi-me respondido que, dessa forma, poderia passar algum tempo com um dos filhos desses vizinhos e conhecer melhor a família. Eu conhecia-os desde sempre, o que mais havia para conhecer? Ia e pronto, foi a resposta que tive. O meu irmão mais velho e esse rapaz eram melhores amigos, por isso perguntei-lhe sorrateiramente se sabia alguma coisa. Guardar segredos nunca foi com o meu irmão mais velho, que me revelou que as nossas mães se tinham lembrado de nos juntarem. As duas famílias saíam a ganhar com o casamento. Fiz o que me fora mandado e fui jantar com a família do rapaz. A mãe dele cozinhava melhor do que a minha.

Em menos de um ano, porém, logo que juntei dinheiro suficiente, fugi para a Austrália. Ainda não tinha dezoito anos. A minha mãe esteve ausente da minha vida até eu casar e lhe dar um neto. O facto de eu estar noutro país contribuiu para isso. Mesmo depois de eu lhe dar mais dois netos, de voltar a estudar, de tirar um curso e de conseguir um bom emprego, ela continuou a tratar-me por «Mrs. Stephen Morris» (é o nome do meu marido) nas cartas que me enviava. Jamais tivemos uma conversa emotiva ou pessoal. Em retrospetiva, vejo que fui uma sortuda. Afinal, na infância e na adolescência, tive alguém com quem conversar: o meu bisavô. Vôzinho, assim lhe chamava eu.

Chovesse ou fizesse sol, encontrava-o sempre na varanda coberta nas traseiras, no seu grande e confortável cadeirão, com um banco para os pés. Ao lado estava a cadeira da minha bisavó, mas raramente a vi ali sentada. Talvez o fizesse durante o dia, enquanto eu estava na escola.

Quando eu saía da cozinha para a varanda das traseiras, a porta de rede batia e isso fazia-o olhar. Ao ver que era eu, o seu rosto iluminava-se e a sua mão batucava no assento da cadeira da minha avó, convidando-me a sentar. Seguiam-se alguns minutos sem falarmos. Contemplávamos o pátio das traseiras, com o gigantesco castanheiro do lado direito e a horta do lado esquerdo; diante de nós, o cercado para os cavalos, e, ao lado, a vaca que lhes dava todos os dias o leite; as várias dependências e os barracões; e, ao fundo, a garagem e o portão por onde se saía para os dois pomares, por onde eu voltava para casa. Ao lado do castanheiro erguia-se o adorado diospireiro. Quase pareciam estar a competir. A mudança de cor da folhagem do segundo não só anunciava o fim do verão, como, também, que já podíamos comer os dióspiros. Um dióspiro deve colher-se apenas quando já está em vias de apodrecer, senão, ao comê-lo, ficamos com a boca desagradavelmente ressequida.

O dióspiro era a fruta favorita da minha bisavó e o Vôzinho tratava de assegurar que não faltavam. O problema era que a passarada não os apreciava menos. Quando se aproximava a altura em que estariam bons para comer, o Vôzinho atava cordas a ramos estratégicos, com um badalo em cada um. Cada corda teria cerca de cem metros e ele fizera-as atravessar o pátio e amarrara-as ao braço do cadeirão. Suponho que esta sua estratégia lhe exigia passar o dia inteiro ali sentado durante várias semanas, numa batalha com os pássaros pela posse dos dióspiros. Eu aparecia depois das aulas e a nossa conversa era pontuada pelo chocalhar dos badalos, porque bastava um pássaro abrandar de passagem e lá puxava ele uma das cordas. Acontecia muitas vezes pedir-me para puxar eu alguma e então desfazíamo-nos os dois, incapazes de aguentar o riso, porque eu adiava o momento de a puxar e deixava os pássaros cruzarem uma qualquer «linha vermelha» invisível no céu e quase alcançarem o seu objetivo. Queria vê-los voarem em todas as direções quando por fim puxasse a corda, ou seja, tratava-se de um apurado exercício de precisão e de timing. Sublinho que nenhuma ave foi magoada ao defendermos os dióspiros. E, ali sentada com o Vôzinho, estava onde me sentia mais feliz.

Ele perguntava:

— Que tal a escola, foi tempo bem aproveitado?

— Não. Hoje não aprendi nada de novo — respondia eu na maioria das vezes, fosse o caso ou não. Ficava-lhe sempre grata por se lembrar de perguntar, porque era sinal de que se preocupava comigo, mas não queria falar do meu dia, porque estava desejosa de ouvir a história que ele escolhera para essa tarde. Muito quieta, mal me atrevendo a respirar, aguardava que ele principiasse, porque então começava a magia.

Muitas vezes, aquelas minhas visitas ao Vôzinho eram como o «mostra e conta» que às vezes fazíamos nas aulas. Ele escolhera previamente um objeto, de que então me falava. Podia ser um postal com pormenores em folha de ouro e com a escrita já desbotada que ele trouxera da África do Sul, onde estivera aquando da Guerra dos Bóeres, e que lhe era precioso. Também me mostrou uma lança curta, que revelou ser uma arma original dos zulus, mostrando-me de seguida como se usava. A ponta continuava aguçada e perigosa. Ao segurá-la, senti assombro. Afinal, estava a manusear um objeto histórico, vindo de um lugar muito longe dali. Silencioso, o Vôzinho desviara, entretanto, o olhar para o cercado mais próximo. Mostrou-me aquela azagaia mais do que uma vez. Eu ficava a segurá-la até que a atenção dele se tornasse a fixar em mim, e então, com um sorriso, ele tirava-ma das mãos. Se eu começava com perguntas, a querer saber de onde viera aquela arma e como acabara em sua posse, ele punha fim à conversa dizendo simplesmente: 

— Foram tempos terríveis. A guerra é terrível.

No caso de outros objetos relacionados com a nossa história e com o nosso passado em comum com os maoris, o Vôzinho era mais falador. Tais artefactos tinham sido presentes e era com alegria que ele me contava quem lhos oferecera, pormenorizando onde e quando. Eu percebia que era uma honra ele confiar nas minhas mãos o objeto precioso de que nessa ocasião me estivesse a falar e manuseava-o com enorme cuidado. Fascinada, voltava-o nas mãos e via-o de todos os ângulos enquanto ouvia a explicação. Muitos desses objetos foram doados ao museu da região e lembro-me de os ver lá no começo da idade adulta, cada um com o respetivo cartãozinho a informar que fora temporariamente cedido pela família do proprietário. Ou seja, era também a mim que o museu se referia, porque eu era da família do proprietário!

Mais ninguém jamais me confiou alguma coisa que lhe fosse preciosa. Quando a minha bisavó perdeu as forças e passou a estar acamada, eu, boa menina que era, passava por lá a caminho da escola e lia-lhe os títulos das notícias no jornal da região entregue na véspera. Sobre o toucador estavam as joias dela — alfinetes de peito, colares de contas, e, num pequeno estojo, duas voltas de pérolas. Sentada na beira da cama, eu punha-me de pé, e, antes de deixar o quarto sem fazer ruído, passava sempre os dedos pelas pérolas. De todas as vezes, vigiando-me como um falcão, ela dizia o mesmo: «Não mexas nas minhas pérolas.» E, todos os dias, eu lhe desobedecia. Era como um jogo entre nós. A minha bisavó morreu ao fim de poucos anos e então um dia a minha avó entregou-me uma caixa e disse:

— Toma, ela quis que ficasses com isto. — Era o estojo com as duas voltas de pérolas. Ainda o tenho. As pérolas foram reenfiadas e continuo a usá-las.

Hoje sei que atribuir significado e importância aos objetos é intrínseco da nossa cultura. Na infância, um urso de peluche ou uma mantinha convertem-se naquilo a que os pediatras chamam «objetos de transição» — algo de material que representa alguém que cuida de nós e que nos traz uma sensação de segurança ao tornar-se um substituto do adulto que associamos a proteção quando ele não está presente. Tendo consigo um destes objetos, uma criança consegue dormir sozinha ou estar noutros lugares que não o lar. Mais tarde, e isto é algo que acontece com todos nós, os objetos ganham o poder de evocar determinado sítio ou um momento das nossas vidas. Podem tornar-se lembranças inacreditavelmente reconfortantes de boas experiências que tivemos, relacionadas com alguém ou com algum lugar, ou mesmo com uma memória. No meu caso, tenho as pérolas da minha bisavó, porém, não a recordo ao manuseá-las, mas sim ao Vôzinho. Para os mais idosos, tais objetos tornam-se uma porta para o passado. Para o Vôzinho, faziam também as vezes de uma introdução abreviada. Silencioso, ele passava-me o objeto para as mãos e eu sabia automaticamente que ele me ia falar do mesmo, não havendo, portanto, necessidade de ele começar por dizer: «Já alguma vez te falei de uma altura em que...?» E, tendo ele o feitio que tinha (era um homem tímido e reservado), eu sabia que seria um erro pedir-lhe que me mostrar especificamente alguma coisa. Da mesma maneira, jamais era insistente ou maçadora; seguia-o onde ele me quisesse levar. Cada um daqueles objetos era precioso e sacrossanto, e nenhum havia que não tivesse um trauma associado. De alguma maneira, percebi que o Vôzinho só falaria de determinado objeto quando se sentisse preparado para isso. Restava-me ter esperança de que chegaria a vez de ver cada uma das coisas que me interessavam. Instintivamente, soube que tinha de ser paciente, de o acompanhar naquele momento e de esperar que ele encontrasse um caminho.

Ainda hoje recordo nitidamente cada um dos objetos que ele me mostrou. Havia uma grande enxó maori (um machado, ou, na língua deles, um toki) talhado em nefrite, e, também, um manto de plumas. Tinham-lhe sido oferecidos pelo chefe kākahu da região. Pirongia, onde vivíamos, chamava-se anteriormente Alexandra. As Guerras da Nova Zelândia (ocorridas quando a Coroa britânica quis terras para os seus colonos e deparou com a resistência dos maoris) foram travadas não muito longe. Durante décadas, o relacionamento entre os pākehā (os brancos) e os maoris foi complicado. Contudo, não o era de todo para o meu bisavô, que viveu em comunidades maoris, onde trabalhou e fez amigos. O respeito que ele tinha pelos maoris era retribuído e contribuiu de maneira crucial para ele descobrir e se apegar à cultura maori, algo que partilhou comigo. Fui uma visita frequente — e bem-vinda — em Mātakitaki pā, o marae local.

Recordo igualmente duas cartas que Lorde Kitchener enviou da África do Sul para os pais do meu bisavô, explicando que estava a cuidar do seu filho mais novo, subitamente apanhado no meio de uma guerra da qual deveria estar bem longe. Os pais do meu bisavô, meus trisavôs, terão certamente ficado orgulhosos ao receber aquelas cartas, mas também aterrorizados pelo filho, que estava noutro continente, num lugar a respeito do qual eles pouco saberiam.

Sentada ao seu lado, eu manuseava cada um daqueles preciosos objetos e ouvia-o. Jamais o interrompia a menos que ele me fizesse alguma pergunta. Nunca senti o meu bisavô a pôr-me à prova ao perguntar alguma coisa, ao contrário dos meus professores e sobretudo dos meus pais, que, ao fazerem isso, era como se dissessem: «Mostra-me que estavas a prestar atenção.» Quando o meu bisavô me perguntava porque achava eu que os ingleses tinham combatido na África do Sul, eu respondia:

— Não sei, Vôzinho, não me contou nada que explique isso.

Ele sorria, anuía e replicava: 

— Nem eu sei e estive lá.

Chegou a dizer-me que tinha esperança de que eu deslindasse o mistério e lhe explicasse. Era também muito importante para o meu bisavô que eu compreendesse as batalhas travadas entre os maoris e os ingleses precisamente na região onde vivíamos. E que os britânicos jamais tinham tido o direito de entrar no nosso belo país convencidos de que podiam apossar-se do território. O meu bisavô orgulhava-se dos maoris por, nas palavras dele, «não se terem ficado» e terem escorraçado «essa canalha» de volta para Inglaterra. Senti sempre que as minhas respostas eram respeitadas. Ele jamais criticou uma que fosse, limitava-se a assentir, dando-me a saber que ouvira com atenção. Como poderia eu não querer ouvir o meu Vôzinho?

Muitas vezes, depois de me narrar algo, o meu bisavô detinha-se e dizia: 

— Deixa-te estar aqui comigo e vamos só ouvir.

E ali ficávamos os dois sentados. Inicialmente, julguei que estivéssemos a ouvir o silêncio. Mas depois comecei a dar-me conta dos sons que me rodeavam, tão familiares e quotidianos que praticamente se tinham tornado inaudíveis — os trinados das aves; os latidos distantes dos cães das outras quintas; a minha bisavó a mexer em tachos e panelas, saindo-lhe ocasionalmente raios e coriscos; ou a Daisy, a vaca para o governo da casa, a mugir no cercado, à espera da minha mãe, que em breve chegaria para a ordenhar. Depois, havia aqueles momentos extraordinários em que de facto escutava apenas o silêncio, o bater do meu coração e a respiração pausada do meu bisavô.

Então, erguia o olhar para aquele homem idoso e imponente, que eu achava tão belo, via-o fechar os olhos e abrir um sorriso e a sua respiração tornava-se como que imperturbável. Eu fechava os olhos, ouvia o som de «coisa nenhuma» e sentia que eu e ele estávamos a comunicar algo de muito profundo. E havia as raras ocasiões, mais especiais ainda, em que sentia a sua mão pousar na minha, e era uma sensação incomparável. Ficávamos assim, ali sentados, unidos naquele momento, até que viesse alguma interrupção, regra geral um som que nos fazia regressar dessa outra dimensão em que estávamos. Ou então era a minha bisavó que saía para o alpendre, quebrando o encantamento. Inevitavelmente, vinha dizer-me que me despachasse, que tinha de ir para casa. Eu olhava para o Vôzinho e aguardava a reação dele, que variava entre dizer-me «Vai lá, petiza» e dizer à minha bisavó que voltasse para dentro, que eu e ele ainda não tínhamos terminado a nossa conversa. Das vezes em que o ouvi dizer isto, senti-me a pessoa mais importante do mundo. Ali estava aquele homem de idade avançada, respeitado e admirado não só pela família, mas pela comunidade (cumpriu vários mandatos como presidente da Câmara Municipal de Pirongia), e a sua prioridade era conversar comigo.

As visitas terminavam todas da mesma maneira, com ele a dizer-me, em jeito de conclusão, que, se as pessoas parassem de falar e antes escutassem, aprenderiam mais. Depois:

— Agora vai lá, petiza. Amanhã há mais.

Ele sabia que eu voltaria, não por sentido de obrigação, por ser sua bisneta, mas por querer passar mais tempo com ele. Ao erguermo-nos, era como estar ao lado de um gigante. Os meus irmãos mais novos tinham medo do nosso bisavô por ele ser tão alto, mas, para mim, isso apenas reforçava o sentimento de que ele era o meu protetor — se havia um Amigo Gigante, como na história infantil, era ele.

Não éramos uma família de afetos, por isso nunca lhe dei beijos nem o abracei. A iniciativa do contacto físico partia sempre dele, ao pousar a sua mão na minha.

Em criança, aonde quer que fosse, ia a correr, mas, sempre que deixava a companhia do meu bisavô, atravessava o pátio tão vagarosamente quanto possível, e, no mesmo ritmo relutante, saía pelo portão traseiro e seguia pelo caminho que atravessava os pomares. A visita terminara, mas, sabendo o que me esperava, eu fazia tudo para protelar o regresso. Já perto de casa, começava a ouvir os meus irmãos à bulha — ou não fossem eles rapazes — e a minha mãe a ralhar em vão conforme a violência aumentava. Era sufocante. Na nossa casa, ninguém se ouvia, ninguém se escutava, muito menos a mim. Não estando no campo de visão da minha mãe, ali em casa eu tornava-me invisível. As bulhas entre os meus irmãos eram diárias e eu tratava de ficar afastada da confusão. Deixava a janela do quarto entreaberta e entrava por ali sem ninguém me ver, porque assim evitava ter de usar a porta das traseiras, que dava acesso à cozinha, onde a minha mãe parecia viver. Mas, infalivelmente, chegava o momento em que o meu irmão assomava ao meu quarto para me dizer que tinha de ir pôr a mesa para o jantar, tarefa que me fora atribuída em exclusividade. Tal como, depois da refeição, levantar a mesa e lavar a loiça era trabalho para as mulheres. Ainda assim, muitas vezes, o meu irmão mais velho ou o meu pai ajudavam-me a lavar e a arrumar a loiça. À mesa não se conversava, era uma regra, a menos que os nossos pais nos perguntassem alguma coisa — mas, como já disse, a opinião reinante era de que nós, crianças, nada tínhamos para dizer que valesse a pena ouvir.

Na verdade, o ato de escutar era declaradamente desencorajado em nossa casa. Quando eu entrava numa divisão e encontrava a minha mãe a falar com alguém da família ou com alguma amiga que a viera visitar, se me detinha um instante, ela entrava ao ataque. Acusava-me de ser «abelhuda» e mandava-me sair dali. E assim me via eu banida sem sequer chegar a cumprimentar a visita.

Sendo uma criança curiosa e que fazia perguntas, e que já percebera intuitivamente a importância das histórias e de ouvir o que os outros têm para dizer, esta atitude da minha mãe tinha em mim o efeito contrário ao que ela pretendia. Eu queria saber de que falavam os adultos. Queria saber tudo. Intuía haver coisas que não eram para os meus ouvidos, mas isso apenas fazia crescer a minha determinação em descobrir de que se tratava. Sabia muito pouco a respeito da minha família, mas era nítido que havia inúmeros segredos sussurrados.

Certo dia, ouvi a minha mãe e a minha avó conversarem a respeito da morte do pai de uma amiga minha. Foi um choque. Há dois dias que ela não aparecia na escola, mas eu não sabia porquê. Nunca percebi o motivo por que me esconderam o que acontecera; afinal de contas, tendo sabido, eu poderia ter reconfortado a minha amiga. Passaram-se semanas até ela aparecer na escola e então explicou-me que tivera de ficar em casa a tomar conta dos irmãos mais novos porque a mãe não saía do quarto. Depois disto, começou a ir à escola com cada vez menos frequência. Perguntei à minha mãe porque achava que a minha amiga estaria a faltar tanto e ela respondeu que, quando há pessoas a precisar de cuidados, há muitas coisas mais importantes do que ir à escola, e que o assunto não era da minha conta. Jamais mencionou a morte do pai da minha amiga.

Um dia, ocorreu-me que só as mulheres da família — a minha mãe, a minha avó, as minhas tias — não falavam comigo ou escutavam o que eu tinha para dizer. O meu pai não era conversador como o meu bisavô, porém, era muito bom ouvinte sempre que eu, a sua única filha, lhe queria dizer alguma coisa. Se, ao final do dia, o apanhava sozinho e de bom humor — e, sobretudo, sem a minha mãe por perto —, conversávamos.

Ele parecia sentir necessidade de se desculpar pela maneira como a minha mãe me tratava, procurando justificá-la como se fosse algo a que eu não devia dar importância. Explicava que a minha mãe não tinha mãos a medir com o trabalho de nos criar, a mim e aos meus irmãos, e que levava uma vida que não desejava para mim. Mas, na minha cabeça, isto que ele dizia nunca fez sentido. Tal como o meu bisavô, também o meu pai era um homem brando, que falava pausadamente e a quem nunca ouvi levantar a voz. Aos fins de semana ou durante as férias escolares, esforçava-se por passar algum tempo com o meu irmão mais velho e comigo. Íamos até aos cercados dos cavalos e ele contava-nos episódios da sua vida na Escócia. O meu pai era um homem de elevados princípios morais e com uma firme noção do bem e do mal. Detestava mexericos. Certa vez, espreitei às escondidas a cozinha, onde a minha mãe e a minha avó estavam à conversa. Ele entrou, serviu-se de um copo de leite e bebeu-o de pé sem que elas parecessem sequer dar pela sua presença.

Ficou assim durante um minuto ou dois, obviamente desagradado com o que estava a ouvir. Por fim, disse à minha avó que já lhe chegava de ouvir falar mal dos outros e que era altura de ela se ir embora. Ofendida, a minha avó avançou para ele, gritando ofensas e dizendo que ele era um forasteiro e que o seu lugar não era ali. Sem levantar a voz, o meu pai repetiu-lhe que fosse para casa. A minha avó agarrou num prato sobre a bancada e partiu-lho na cabeça. Ele limitou-se a dizer:

— Agora é que é mesmo altura de ir para sua casa.

A minha mãe acompanhou a sua até lá fora e pediu-lhe desculpa, assegurando que o meu pai fizera aquilo sem pensar. Entrei na cozinha e perguntei ao meu pai se estava bem. Ele abriu um sorriso rasgado, respondeu que estava impecável e que, provavelmente, a minha avó já queria fazer aquilo há anos. Apanhámos os dois os cacos do prato que ela partira.

Então, o meu pai disse-me que ele próprio sentia muitas vezes que o seu lugar não era ali. Ninguém atendia ao que ele dizia ou lhe pedia conselho. A família da minha mãe estava naquela região há cinco gerações. O meu pai nascera na Escócia e mudara-se para a Nova Zelândia em adulto. Para os habitantes locais, ele e a sua família eram desconhecidos. Um de dezasseis irmãos, o meu pai fora dos últimos a nascer. Estudara Medicina durante quatro anos, até que abdicara do sonho de ser médico especialista para se alistar no Exército britânico e servir como médico de guerra. Mal disse uma palavra a respeito do serviço militar, apenas que, quando terminou, já não podia regressar à vida que levara antes de se alistar, por isso viera para a Nova Zelândia. Amanhar a terra era a única atividade que lhe dava prazer. Estou convencida de que o meu pai nunca se sentiu inteiramente aceite pela família da minha mãe ou pela comunidade de Pirongia. Por outro lado, isso não parecia incomodá-lo.

Um dos meus grandes arrependimentos é nunca lhe ter perguntado grande coisa a respeito da sua família. Sei isto e aquilo, mas que, somado, não dá nada de substancial. Nessa altura eu ainda não aprendera que, quando queremos saber alguma coisa, antes de mais há que perguntar. Na verdade, se algo me fora ensinado, fora que nunca, em circunstância alguma, devemos fazer perguntas. Esperei que ele tomasse a iniciativa de me falar da sua vida, como o Vôzinho fazia. Ou talvez, de tanto ser desencorajada de fazer perguntas pela minha mãe e pela sua família, achei que o meu pai reagiria da mesma maneira. Já ele talvez não me tenha contado grande coisa por estar tão habituado a que a família à sua volta mostrasse pouco interesse no que ele teria para contar. Arrependo-me profundamente de não me ter esforçado por conhecer melhor o meu pai, de não lhe ter pedido que me contasse histórias do seu passado e que partilhasse comigo as suas esperanças e os seus sonhos. Ele sabia que eu visitava o meu bisavô quase todas as tardes e amiúde perguntava «Que tal estava o velho hoje?», ouvindo então o meu relato minucioso de tudo o que eu própria ouvira. Sabia que eu adorava ouvir histórias, nem que fosse a mesma contada várias vezes, contudo, nunca fez como o meu bisavô. Sabia também que eu nunca partilhava com a minha mãe uma palavra a respeito das visitas ao Vôzinho, até porque ela estava convencida de que eu ia lá por obrigação. Como se enganava!

Quando, em plena idade adulta, dei por mim a trabalhar nos serviços de assistência social de um grande hospital, descobri que não me era difícil ouvir os pacientes, as suas famílias e os seus prestadores de cuidados. Pensava muitas vezes no meu bisavô e em como aquelas tardes com ele me tinham treinado para ouvir e escutar o que me era dito no trabalho. Só ouvindo eu podia fazer alguma coisa, só escutando eu podia tentar ajudar aquelas pessoas. Muitas vezes, apenas termos alguém que nos ouça já é suficiente, é tudo quanto precisamos que façam. No olhar do Vôzinho, vi quanto bastasse para hoje ter a certeza de que conversar comigo o reconfortava, como se ter finalmente alguém que o escutava e com quem podia partilhar as suas experiências lhe trouxesse paz interior.

Considerando como futuramente daria por mim a conhecer e a conversar com sobreviventes do Holocausto de idade muito avançada, penso nessa altura da minha vida em que ouvia as histórias do meu bisavô e associo os pormenores — a idade dele, a sua vida que se aproximava do fim e a necessidade de falar com alguém que prestasse atenção. Possivelmente, fui a pessoa certa no momento certo. Quando o meu pai atingiu essa idade, já eu estava casada, tinha filhos pequenos e vivia noutro país. É inevitável perguntar a mim mesma: terá ele encontrado o seu ouvinte, talvez alguém na equipa do lar onde viveu o último ano da sua vida?

Histórias de Esperança
créditos: Editorial Presença

Livro: Histórias de Esperança

Autor: Heather Morris

Editora: Editorial Presença

Preço: 14,31 €

Graças ao êxito dos meus romances O Tatuador de Auschwitz e A Coragem de Cilka, e por estarem ligados a um período atroz da História da humanidade, tive o privilégio de conhecer muitas pessoas que viveram experiências semelhantes às de Lale, Gita e Cilka. Por todo o mundo, em diferentes países e em todo o tipo de eventos e de espaços, sobreviventes do Holocausto vêm ouvir-me e dedicar algum do seu tempo — por vezes, apenas alguns minutos, mas, regra geral, mais do que isso — a partilhar comigo histórias das suas vidas. No fim desses eventos, muitas vezes dou por mim a ouvir as histórias mais espantosas, histórias de sobrevivência e de amor, histórias de esperança. Também recebo mensagens e cartas de pessoas de todo o mundo que, tocadas por esses dois livros, tomam a iniciativa de me contactar para partilhar comigo as suas experiências. O que mais me tem surpreendido, e sensibilizado, é a quantidade de pessoas que me contacta ou que vem falar comigo para me contar uma história sem ligação com o Holocausto. São também sobreviventes, mas porque sobreviveram à doença, a mortes trágicas nas famílias ou a conflitos ocorridos em anos recentes. Em comum, todas têm a circunstância de ter lido a história de Lale e de Gita, aí encontrando esperança. Esperança de que também as suas vidas se irão compor. Esperança de que os filhos e os netos terão boas vidas apesar de eles estarem a sofrer, ou talvez porque estão a sofrer.

O modo como homens e mulheres de idade avançada conseguem, de forma breve e sucinta, contar-me histórias de muito sofrimento e de muitas lágrimas e rematar dizendo «mas tive uma boa vida» é, para mim, motivo de continuado assombro e inspira-me um profundo respeito, porque verifico uma vez e outra que todas estas pessoas «normais» são tremendamente inspiradoras e que os seus exemplos nos dão força. As suas histórias acontecem no nosso dia a dia, o que as torna a nossa história viva, e isso merece reconhecimento. Não estão a pedir algo em troca. Apenas querem ser ouvidas por alguém que não mostre indiferença perante o que elas viveram e que valide as suas escolhas, graças às quais ainda cá estão. Para mim, essas histórias são uma dádiva e considero um enorme privilégio tê-las ouvido. Poder transformar algumas em obras de ficção mudou completamente a minha vida. E acredito sinceramente que tudo isso se deve ao facto de eu ter aprendido a saber ouvir.

Num anoitecer no começo de 2020, dei por mim em Israel, na sala de estar de uma mulher de 92 anos, uma sobrevivente de Auschwitz que conhecera Lale e Gita. Mais adiante contarei como tal aconteceu. Sentadas, ouvimos a sua filha ler alto, traduzindo do hebraico para que eu entendesse, o testemunho da sua falecida tia, irmã da idosa ao meu lado. Pois bem, essa mulher é uma de três irmãs cuja história espero contar no meu próximo romance. Amiúde recordo as palavras que encerram aquele testemunho escrito, que a família guarda consigo. «Não nos julguem.» 

Com lamentável frequência, há aqueles que expressam junto de mim a má opinião que lhes inspiram as escolhas de Lale, escolhas essas que lhe permitiram sobreviver ao Holocausto. Sim, amiúde ele driblou as regras. Sim, ele sobreviveu e muitos não, de resto uma culpa que carregam todos os sobreviventes do Holocausto. Mais vezes do que gostaria, sou obrigada a morder a língua e a reconhecer que todos temos direito à nossa opinião, enquanto, para dentro, grito: Nenhum de vocês tem o direito de julgar. Não estavam lá, não sabem como foi, são incapazes de imaginar, ainda que achem que conseguem. Nenhum de vocês pode afirmar que, nas mesmas circunstâncias, teria feito assim ou assado. Nessas ocasiões, apresso-me a sublinhar que nenhum desses que criticam as escolhas de Lale, de Gita e de Cilka esteve detido num campo de concentração. Aliás, muitas vezes não se tratou sequer de uma decisão ou de uma escolha, mas de mera sorte, de uma oportunidade que surgiu ao cruzarem-se com alguém que, coisa rara naquele contexto, foi capaz de um ato de bondade. 

Nestes nossos tempos modernos, numa cultura obcecada com a juventude, é como se, ao alcançarmos certa idade, nos tornássemos invisíveis, a menos que sejamos celebridades — mas, então, mulheres famosas são muitas vezes criticadas e ridicularizadas. Um avô ou avó, um vizinho ou vizinha de idade avançada, o idoso ou idosa com quem colidimos na rua ao não reparar na sua presença — todas essas pessoas guardam no íntimo histórias de sabedoria, e, dispondo-nos a ouvi-los, talvez víssemos as nossas vidas incalculavelmente enriquecidas por essa experiência. Nós — e, aqui, incluo-me nas fileiras dos «invisíveis» — não queremos dizer-vos como viver as vossas vidas. Também não queremos acautelá-los quanto aos erros que cometemos, para que vocês não os repitam. Pelo contrário. Cada um tem de cometer os seus erros; não há outra maneira de aprender. Mas, ao disporem-se a ouvir sobre o percurso e a experiência de vida dos que vos são mais próximos, talvez descubram uma maneira de aprender mais rapidamente com os erros que irão cometer. Poderão descobrir que alguém próximo passou por uma situação parecida ou de alguma maneira relevante para o problema que de momento enfrentam. Ouvir os outros, mas ouvi-los de verdade, traz muitas recompensas. Isso posso eu assegurar.

Há uma pandemia a assolar o mundo. Uma pandemia que está a vitimar idosos em número muitíssimo mais alto do que vitima os mais jovens. É-nos pedido distanciamento social e quarentena, sendo isso a demonstração de que respeitamos os nossos familiares idosos e os amigos de idade avançada, pois só assim eles estarão em segurança. Uma dor de garganta ou uma fungadela de alguém mais jovem poderá revelar-se fatal para um idoso. Ninguém negará que a riqueza moral de uma nação pode ser medida pelo tratamento que reserva aos que ajudaram a erguê-la. Ler sobre todas as pessoas de tantas comunidades e de nacionalidades diferentes que se voluntariaram para dar assistência aos que se encontram isolados e sem recursos económicos que lhes permitam comprar bens essenciais é uma poderosa lição. Muitos desses que precisam de ajuda pertencem ao grupo identificado como o dos «seniores». Já ouvi contar casos em que os gestos atenciosos foram tantos que o idoso em questão teve de pedir aos familiares e amigos que abrandassem, que não tinha barriga para tanta comida!

As atitudes compassivas e generosas para com os mais idosos variam conforme a comunidade e a cultura. Enquanto eu lia alto para a minha bisavó ou ficava sentada a ouvir o meu bisavô, a minha mãe assegurava-lhes as melhores refeições que fosse capaz de cozinhar. Com cinco filhos para alimentar, e, muitas vezes, os homens que vinham ajudar nos trabalhos da quinta, a minha mãe tinha um lema: «Damos de comer aos animais, depois aos idosos, depois aos bebés. Os restantes vêm a seguir.» Sempre achei cómico que, para ela, os animais estivessem primeiro do que os humanos. 

O meu bisavô era amado e respeitado, mas não unicamente por ser o ancião da família. Todos sabíamos que, na juventude, ele estivera na guerra. Na minha família, os que tinham combatido numa guerra, muitos sacrificando a vida, eram recordados quase com reverência. E ninguém respeitava mais a sua memória do que o meu bisavô.

O Vôzinho deixara a Nova Zelândia e rumara à África do Sul para lutar no conflito que ficou para a História como a Guerra dos Bóeres (1899-1902). Na prática, tratou-se de uma guerra pela independência — as «repúblicas Bóeres», que correspondem hoje à atual África do Sul, quiseram expulsar o Império Britânico. Tal como sucede em tantos conflitos, esperava-se, dos homens novos que estavam nas colónias, que se alistassem e combatessem ao lado do Exército britânico. O meu bisavô nunca deveria ter lá estado. Era ainda demasiado jovem. O seu irmão mais velho quis alistar-se e a mãe deles pediu ao Vôzinho que acompanhasse o irmão até Auckland, para ele não ir sozinho. Ao longo de três dias e de duas noites, os dois irmãos fizeram a cavalo um trajeto de cerca de duzentos quilómetros, dormindo pelo caminho no celeiro deste e daquele agricultor que lhes dava guarida e alguma coisa para comer. Ao amanhecer, tornavam a fazer-se à estrada. 

À cabeça dos requisitos para integrar o Exército britânico (na altura, a Nova Zelândia ainda não tinha o seu) estava o desembaraço a galopar. O meu bisavô viu o irmão fazer o teste — percorrer a galope o trajeto que lhe fora indicado. Então, outro oficial que ali estava disse-lhe que o fizesse também e o meu bisavô obedeceu. Conclusão: galopava melhor do que o irmão. Pediram-lhe que assinasse um papel e ele assim fez. Acabava de se alistar. Um mês depois, os dois irmãos fizeram pela segunda vez o trajeto até Auckland, e, juntos, levando os seus cavalos (sim, os soldados tinham de levar os seus próprios cavalos!), embarcaram num navio rumo à África do Sul. O meu bisavô tinha tão-só dezasseis anos. A mãe suplicara-lhe que não fosse. Fora um engano; ele era muito novinho. Mas, reza a lenda familiar, o pai do meu bisavô disse-lhe: «Deixa o rapaz decidir.» Ora, contou-me o Vôzinho, estava fora de questão o seu irmão James ser o único a ir viver aventuras. Claro que o motivo não foi realmente esse, mas antes ele não querer deixar o irmão ir sozinho para tão longe, sem ter alguém da família por perto. Afinal, para trás ficariam quatro irmãs e outro irmão que, treze anos mais novo do que ele, ainda mal andava.

Chegando à África do Sul, o meu bisavô viu-se em formatura juntamente com os outros. Iam ser inspecionados pelo marechal de campo Horatio Herbert Kitchener. Ao ser-lhe perguntada a idade, confessou ter apenas dezasseis anos. Kitchener mandou tirarem-no do grupo dos combatentes e nomeou-o seu «ajudante». Nesta categoria, far-lhe-ia recados e acompanhá-lo-ia a todo o lado. Seguidamente, o marechal de campo escreveu à mãe do meu bisavô na Nova Zelândia, a dizer-lhe que tomaria conta do seu filho e que lho enviaria de volta são e salvo. A minha trisavó recebeu duas cartas do marechal de campo Kitchener, que hoje estão num museu local. Por várias vezes segurei essas cartas e, ciente do enorme valor que lhes dava a minha família, pude lê-las e admirar a caligrafia elegante. Anos depois, ao visitar o museu, fiquei inchada de orgulho ao ver exposta a coleção de artefactos e de recordações do meu bisavô, incluindo essas cartas, cada objeto acompanhado de um pequeno cartão a informar que fora temporariamente cedido pela minha família. E, tal como prometera, Kitchener enviou o meu bisavô são e salvo de volta para junto da mãe, a minha trisavó. E também James, o irmão mais velho, regressou à Nova Zelândia.

Eram estas as histórias que o Vôzinho me contava naquelas tardes em que me sentava com ele na varanda coberta nas traseiras. Que, com dezasseis anos, correu a África do Sul com o marechal de campo Kitchener. Ou que visitou tribos africanas. Contou-me a respeito de campanhas militares cuja estratégia soube de antemão, por ter uma posição tão próxima de Kitchener. Todos os preciosos artefactos que trouxe consigo ao regressar à Nova Zelândia, e que deixava que eu manuseasse enquanto me explicava como ficaram na sua posse, encontram-se expostos num museu. Seria fácil criticar negativamente Kitchener e o seu papel na África do Sul. Muitos já o fizeram. Pela minha parte, estou-lhe grata por ter zelado pela segurança do meu bisavô. Graças a isso, nasci e tocou-me viver toda esta maravilhosa aventura, tão rica e tão cheia de recompensas. Custa a crer que, por vezes, possa ser tão simples, não é verdade? Deixando de lado a História e a política, são os pequenos atos de humanidade que ecoam ao longo de gerações.

Eu sabia que o meu bisavô nunca falava abertamente sobre esse período da sua vida com mais ninguém, que as coisas que me contava eram um segredo nosso, que eu não devia partilhar com ninguém. Disse-me em mais do que uma ocasião que a minha bisavó não queria que ele falasse do assunto. Soa familiar, não? Nunca o ouvi falar da sua vida com nenhum outro membro da família, numa conversa a dois ou em reuniões familiares. E, em várias ocasiões, não me escapou a aguda tristeza na sua voz ao falar-me da brutalidade da guerra, que ele testemunhara e que era mais brutal ainda quando o alvo eram os africanos.

Muitas vezes, calhou estar por perto e ouvir adultos da minha família comentarem que o meu bisavô estava cada vez mais rabugento e ensimesmado. Aos meus olhos, parecia que ele era sobretudo ignorado por todos eles, recebendo a minha bisavó todas as atenções. Ainda que raramente o Vôzinho tivesse gestos de afeto comigo (não os tinha com ninguém, na verdade), de cada vez que o via, algo que aconteceu diariamente durante vários anos, ele recebia-me com um sorriso caloroso e uma palmadinha afetuosa no braço — ou uma piscadela de olho, caso alguém da família estivesse por perto. Desde pequena, soube que, para uma pessoa em particular — aquele homem — eu era especial. Acredito que o ajudei, porque o ouvi e porque ele foi de uma tremenda importância para mim enquanto criança. Numa família em que o afeto e gestos que o demonstrassem eram inexistentes, o meu bisavô foi um enorme consolo quando eu mais precisava.

Em abril de 1971, deixei a pequena cidade neozelandesa onde vivia e rumei à grande Melbourne, na Austrália. Antes de ir para o aeroporto, fui até Auckland visitar o meu bisavô na casa de saúde para os veteranos de guerra, onde ele esteve internado por um curto período de tempo. Estávamos numa varanda coberta que dava para um jardim, um cenário não muito diferente do que eu conhecia das visitas que lhe fizera em pequena. Desta vez, porém, falei sobretudo eu. Partilhei com ele a minha necessidade de abrir as asas e voar e ele replicou que deixar o lugarejo onde crescera e onde todos me conheciam para encontrar o meu lugar neste mundo era o melhor que eu podia fazer. O meu bisavô morreu no dia 29 de setembro, cinco meses depois desta conversa. Não regressei para o funeral. Não senti que precisasse de o fazer. Ele sabia o afeto que eu lhe tinha. Preferi chorar sozinha a sua morte. Os meus netos são ainda pequeninos. Por enquanto, da avó, apenas precisam que ela lhes diga que os ama muito, que adora estar com eles e que está sempre interessada no que eles tiverem para lhe contar. E, embora ainda tão pequenos, são já uns ótimos contadores de histórias. Algo que aconteça no infantário ou na escola merece, da sua parte, um relato minucioso, regra geral com gestos expressivos a acompanhar. Ouço-os com toda a atenção e adoro ver a sua alegria ao contar tais peripécias. As suas expressões não mentem.

Quando eles crescerem, tenho esperança de conseguir ser, para cada um, alguém como o meu bisavô foi para mim — alguém que, haja o que houver, estará disponível para ouvir o que eles tiverem para partilhar, seja muito ou pouco importante, porque o que conta é proporcionar-lhes esse espaço para serem ouvidos. E, se eles fizerem o mesmo comigo, pode ser que lhes conte algumas das histórias que tive oportunidade de ouvir ao longo da minha vida. Poderei inclusivamente falar-lhes do Vôzinho.

Inteirando-nos de que alguém da família ou um amigo guarda algum objeto, grande ou pequeno, valioso ou não, pelo qual tem grande estima, que tal perguntar-lhe o motivo? Que tal dar-lhe oportunidade de partilhar connosco o que o liga tanto a esse objeto, talvez algo com valor monetário, ou então algo tão simples como um berlinde, mas que, para essa pessoa, terá um valor incalculável? Independentemente do que seja, estar-lhe-á associada uma história. Seguem-se algumas ideias sobre como tentar que os idosos que fazem parte das nossas vidas partilhem connosco o seu passado.

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Oh, quem me dera ter-lhe perguntado a respeito de…

Quem não reconhece este sentimento, tão frequente quando morre um familiar ou amigo de idade avançada que nos era muito querido? Na agitação das vidas ocupadas que levamos, amiúde é-nos difícil disponibilizar algum tempo para nos sentarmos a ouvir histórias que talvez já tenhamos ouvido uma dúzia de vezes. O meu conselho é: reservem esse tempo, pois quando a oportunidade passar, não regressará.

Perguntas Simples

Com a idade, mesmo no caso de quem sofre de Alzheimer ou de doenças associadas à demência, é comum as memórias mais antigas ganharem nitidez. Possivelmente, os nossos pais ou os nossos avós recordam os primeiros anos da infância ou da escola com uma clareza que não lhes era possível quando andavam ocupados com as suas vidas profissionais. Tendo uma relação próxima, podemos perguntar-lhes quais eram os seus brinquedos favoritos, como foi o primeiro dia de escola ou mesmo qual a memória mais antiga que guardam. Tudo isto são, em regra, pontos de partida seguros, a partir dos quais eles poderão viajar de volta ao passado, mas uma pergunta específica, normalmente motivada por alguma coisa que estamos a fazer juntos, pode também ser uma boa maneira de iniciar uma conversa. Imaginemos, por exemplo, que estamos a beber um chá e a comer uma fatia de bolo. Podemos perguntar:

«Em criança, qual era a tua comida favorita?»
«Na tua casa, quem cozinhava?»
«Onde faziam as refeições? Por volta de que horas?»
«Tinham lugares fixos à mesa?»
«Tinhas o teu prato ou a tua caneca?»

Perguntas diretas deste tipo, surgidas naturalmente de algo que estejamos a fazer juntos (neste caso, lanchar chá e bolo), cujas respostas serão simples e factuais, podem levar alguém de idade avançada a partilhar os seus sentimentos a respeito dos pais e dos irmãos, da sua casa de infância e do lugar que sentiam ter na família e no lar. Enquanto ouvimos com atenção a resposta, podemos perguntar pormenores, mas nunca de uma forma invasiva. Talvez o nosso interesse disponha essa pessoa a partilhar connosco revelações a respeito das suas vidas.

Uma relação de confiança entre alguém idoso e alguém mais jovem leva tempo a construir — sei-o pela minha experiência com Lale —, mas, começando devagar e com calma, com perguntas enganadoramente simples, como as que acima sugeri, teremos uma base sólida para a conversa que poderá surgir daí. Podemos sempre usar uma das perguntas simples que refiro como trampolim para reflexões mais profundas:

«Lembras-te de no outro dia me dizeres que adoravas os bolinhos que a tua mãe fazia para acompanhar o chá? Como era quando ela os fazia? Deixava que a ajudasses? E depois, qual era a sensação quando ela punha uns quantos no teu prato?»

Com estas perguntas, na realidade estaremos a iniciar uma conversa sobre a infância dessa pessoa de idade. Simplesmente, uma pergunta específica resulta bem menos abstrata e ameaçadora do que se abordarmos diretamente o tema. A resposta poderá conduzir o idoso a outras reflexões sobre a sua infância, estabelecendo connosco uma relação de confiança e de curiosidade pelo outro que enriquecerá tremendamente os dois. Não há sensação mais maravilhosa do que ver alguém sorrir inadvertidamente ou incapaz de conter uma risadinha ao recordar algo que então partilha connosco.

Usar Objetos

Uma chávena de chá (no meu caso, quando visitava Lale, uma chávena de um café horrível!) é um ritual caseiro que nos reconforta. Servimo-lo, bebemo-lo e talvez se siga uma segunda chávena, mas, se o idoso não estiver com disposição para se perder em reminiscências, estarão esgotadas as oportunidades que tal ritual oferece para que essa pessoa se sinta segura ao abordar o passado. Caso sintamos ter chegado a um beco sem saída e beber uma terceira chávena esteja fora de questão, recomendo o recurso a um objeto para encorajar a conversa. 

Como já disse, de cada vez que ia visitar o meu bisavô, era frequente ele ter consigo algum objeto para me mostrar — por exemplo, as cartas que Kitchener escrevera aos seus pais, o toki ou as suas medalhas. Confiava nas minhas mãos cada um desses objetos preciosos, e então, enquanto eu os admirava e examinava de todos os ângulos, ele explicava-me de onde tinham vindo e contava a história que lhes estava associada. Instintivamente, eu mantinha o olhar no objeto, em vez de procurar o contacto visual com o meu bisavô, e estou convencida de que isso lhe dava o espaço de que ele precisava para se concentrar e revisitar mais livremente o passado. Não se sentia obrigado a ficar atento às minhas reações ao que ia dizendo. Não é necessário manter de forma continuada o contacto visual com alguém que, em conversa connosco, recorda o passado. Na verdade, eu aconselharia evitá-lo, para que o olhar dessa pessoa possa viajar livre. Possivelmente, ela não estará sequer a olhar para nós, estará algures nas suas memórias, noutro tempo e noutro lugar. Tem de se lhe permitir isso pelo tempo que desejar.

Certa vez, a minha amiga Jenny contou-me a respeito de uma visita que fez à sogra, uma mulher idosa, que ia deixar a casa onde vivera durante mais de sessenta anos, por isso ela foi ajudá-la a empacotar as coisas. Enquanto guardavam fotografias e bibelôs em caixas e acondicionavam cada móvel, a sogra da Jenny falou de cada um daqueles objetos com carinho e em pormenor. Explicou onde e quando comprara cada um, ou quem lho oferecera, e a importância que tinha para si. Segundo a Jenny, a sua sogra era uma mulher muito reservada e normalmente sem inclinação para contar algo de mais pessoal, porém, ao partilharem aquela tarefa, e por via dos objetos que juntas estavam a empacotar,
a sua sogra encontrou uma maneira de lhe transmitir uma parte importante da história da família.

Se visitamos com regularidade alguém de idade avançada, porque não levar connosco algo que poderá avivar recordações? Se essa pessoa mencionou uma viagem que fez, por exemplo, podemos levar um mapa ou algumas fotografias desse lugar para ver juntos. Ou talvez tenha o hábito de se sentar numa cadeira antiga em particular, a sua cadeira, e, nesse caso, podemos perguntar-lhe onde a comprou ou como veio parar à sua sala. Possivelmente, haverá fotos emolduradas. Podemos escolher uma e pedir autorização para a ver de perto, e, não reconhecendo alguém que surja na imagem, podemos perguntar de quem se trata e onde e quando foi a foto tirada. Algum ornamento ou outras fotos poderão motivar mais recordações e encorajar mais histórias. Mas atenção: é preciso ser cuidadoso ao manusear tais objetos. Se estão à vista ou se foram guardados durante muitos anos, tal demonstra a que ponto são preciosos — não necessariamente pelo valor material, mas pelo que representam.

Reflexões

Por esta altura, estará estabelecida a confiança e ter-se-á criado uma ponte entre gerações. Talvez o idoso tenha partilhado connosco episódios divertidos da sua vida e, havendo laços familiares, inclusivamente recordações respeitantes à nossa infância. Tudo isto nos fará ver essa pessoa idosa sob uma nova luz, enquanto alguém autossuficiente e animado de vigor, com um passado e com experiências que viveu e que deseja partilhar. Ao sentirmos que conquistámos o direito de abordar o seu passado um pouco mais em pormenor, podemos sugerir-lhe reflexões sobre algumas lições aprendidas ao longo dos anos.

De novo, em regra prefiro não fazer isto de forma direta. Na minha experiência, pedir explicitamente «dicas» sobre a vida resulta quase sempre em conselhos práticos não solicitados — e devo admitir que eu própria já os dei muitas vezes, o que não é errado. Refiro-me a recomendações do tipo «os sapatos devem estar sempre bem engraxados», «não faças aos outros o que não queres que te façam a ti» ou «veste roupa interior lavada, porque nunca se sabe quando iremos parar ao hospital». Ora, neste caso, não é o que se pretende. O que me interessa — e que interessará igualmente o leitor, suponho, visto que está a ler este livro — tem que ver com reflexão. Aqui vai uma maneira possível de tentarmos lá chegar… 

Porque não perguntar a esse idoso o que diria ao seu eu da juventude se nesse momento estivessem sentados frente a frente? Tendo oportunidade de se encontrar com essa sua versão mais nova, possivelmente insegura e ansiosa, como lhe transmitiria confiança? Que conselhos lhe daria? O que a aconselharia a evitar e o que lhe recomendaria que acolhesse de braços abertos? Podendo revelar-lhe de antemão o seu maior motivo de orgulho na vida, qual escolheria? Uma cadeira vazia poderá ajudar a pôr em prática este exercício; podemos sugerir ao idoso que imagine o seu eu mais jovem ali sentado, e, dessa maneira, estaremos ambos fixados na cadeira, evitando a intensidade do contacto olhos nos olhos. Podemos perguntar o que veste esse eu mais jovem; se estará a dar ouvidos à sua versão idosa ou se o mais provável é não lhe ligar nenhuma; e mesmo qual a sua postura física na cadeira. Não devemos apressar o idoso; estabelecer uma verdadeira conexão com esse eu mais jovem exigirá tempo e calma. Por outro lado, trata-se de um exercício que poderá resultar deveras emotivo e proporcionar, a quem estiver no papel do ouvinte, uma inesquecível lição de vida.

Devo dizer que não usei esta abordagem com Lale. A necessidade que ele tinha de contar a sua história, por dolorosa que fosse, era tão urgente que apenas tive de o ouvir prestando atenção. A minha única tarefa consistiu em estabelecer uma relação de confiança, para depois o seguir onde ele me quisesse levar. Quando sentia que podia ou que devia, tentava saber mais pormenores — sempre de uma forma não intrusiva. Embora a maioria dos idosos não seja sobrevivente do Holocausto, muitos terão de ser persuadidos a contar a sua história e alguns poderão sentir que nada têm de excecional para partilhar. Pessoalmente, discordo. Cada um de nós vive uma vida que não é igual à de mais ninguém, portanto, cada um de nós tem coisas para dizer que merecem ser ouvidas. Espero ter animado o leitor a tentar algumas destas estratégias para iniciar uma conversa com alguém de idade avançada. Garanto que não será tempo desperdiçado.