PREFÁCIO

POR TANIKAWA TETSUZŌ

Dos escritores do Japão moderno, Natsume Sōseki é, sem dúvida, o mais amado. Nascido em 1867, morreu em 1916. Mas, desde a sua morte, vinte anos ou mais se passaram sem que as suas obras deixassem de alcançar um público muito vasto. A coisa é rara no nosso Japão de hoje, onde a fama dos escritores tem apenas uma duração muito efémera. Quem acompanha atentamente jornais e revistas pôde ver, passado apenas um mês da sua morte, os autores que neles apareceram desaparecerem. A literatura, é bom que se veja, apoiada no jornalismo, na publicidade, no cinema, e que pode ser classificada sob o rótulo de Taishū bungaku, «literatura popular». É esta literatura que tem o favor da multidão. A literatura, pelo contrário, a que chamamos Jun-Bungaku, «literatura pura», tem um número muito reduzido de leitores. No entanto, é privilégio da obra de Sōseki conter ambas as literaturas e, assim, tocar, hoje como no primeiro dia, toda a escala das classes sociais.

Se acabei de fazer esta distinção entre literatura pura e literatura popular, é para me ater à estrutura da nossa literatura japonesa atual. Esta mesma distinção seria, sem dúvida, inútil se eu falasse do romance ocidental, no qual, creio eu, há muito se aceita que o verdadeiro romance é aquele que, amalgamando as características de uma e outra literatura, toca desde o início o universo dos leitores. Além disso, o facto de Sōseki ter tocado todo o Japão não significa, longe disso, que tenha alcançado a universalidade dos mestres do romance ocidental. Não posso, com toda a justiça, fazer de Sōseki um pioneiro do romance, no sentido absoluto do termo. Mas gostaria, aqui mesmo, de tentar especificar a sua originalidade especificamente japonesa.

Insiste‑se, muitas vezes, no conhecimento ocidental de Sōseki. Sei muito bem que Sōseki, especialista em literatura inglesa, teve, até aos quarenta anos, de ser professor para viver; que ocupou a cadeira de Inglês na Universidade Imperial de Tóquio; que as suas palestras, publicadas desde então, testemunham as mais brilhantes qualidades de exposição; que os seus alunos da época tinham uma estima intelectual unânime por ele; e que, até ao estrondoso êxito do seu romance Sou Um Gato, que decidiu a sua vocação de romancista, todo esse passado atesta a influência da cultura europeia na formação de Sōseki. E quando digo europeia, não me refiro somente à cultura inglesa. Sōseki leu os modernos franceses, alemães e russos. Mas não é nessas várias influências ocidentais que encontraremos a própria base da inspiração de Sōseki.

É Desta Que Leio Isto: Em abril recebemos Richard Zimler

Richard Zimler junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 20 de abril, pelas 21h.

O livro escolhido para leitura é "A Aldeia das Almas Desaparecidas I - A floresta do avesso", o primeiro volume da mais recente saga do escritor — e um reencontro com a família Zarco.

Nascido em 1956 em Roslyn Heights, subúrbio de Nova Iorque, Zimler escolheu o Porto como novo lar em 1990, onde lecionou na Escola Superior de Jornalismo e na Universidade do Porto durante 16 anos. É onde ainda mora, tendo obtido a nacionalidade portuguesa em 2002.

Foi a partir da Invicta que iniciou uma carreira que já conta com 12 romances publicados, o último dos quais dividido em duas partes: "A Aldeia das Almas Desaparecidas II - Aquilo que procuramos está sempre à nossa procura", acabado de lançar, fecha o díptico iniciado com o volume I.

Zimler conta com uma série de best-sellers bem recebidos tanto pela crítica e como pelo público, como "O Último Cabalista de Lisboa", "O Evangelho segundo Lázaro" ou "Anagramas de Varsóvia".

Quanto a "A Aldeia das Almas Desaparecidas I — A floresta do avesso" é um regresso de Zimler aos Zarco, família de judeus sefarditas cuja saga atravessa vários séculos.

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Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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A cultura telúrica de Sōseki é uma cultura oriental. Como todos os jovens da sua época, Sōseki tinha uma sólida cultura chinesa, e sobressaía na composição de poemas chineses. Cultura chinesa: cultura, também, propriamente japonesa. Seguindo o seu colega Masaoka Shiki, renovador genial do haicai de Meiji, Sōseki, antes mesmo de se aventurar no romance, manipulava o haicai como um mestre. Em suma, é a esta cultura oriental, com raízes profundamente implantadas nele, e não ao seu conhecimento do Ocidente, que Sōseki deve a sua originalidade de romancista. Mas em que é que esta cultura oriental marcou, exatamente, Sōseki?

Desde as suas mais longínquas origens, há, na tradição da cultura oriental, uma forte tendência para fugir das perturbações vulgares da vida social para procurar refúgio no seio da Natureza tranquila. À nossa palavra japonesa bunjin, «letrado», permanece ligado um odor a eremitério. Diz‑se: «Viva em correspondência com a flor, a ave, o vento, a Lua.» Também dizemos: «O vento e a corrente.» E esta dupla encerra, por assim dizer, toda a estética do nosso Extremo Oriente. E tal é de facto a primeira tendência de Sōseki, que se expressa não de uma maneira fácil e popular, mas na sua essência mais profunda. É fácil perceber como a fórmula da prosa ocidental moderna está distante desta estética. E teria, sem dúvida, isolado Sōseki definitivamente do resto do mundo, se não houvesse nele outra tendência, esta infinitamente humana, e que, por vezes, faz do ermitão letrado um romancista, no sentido ocidental da palavra. A abrangência da obra de Sōseki atesta‑o. E, no entanto, uma contradição inextricável, nem mesmo o êxito dos seus romances mais humanos poderia separar Sōseki do tipo de elevação de onde o eremita nele olhava para a raça humana. Tal é o duplo movimento entre o qual Sōseki jamais poderia deixar de oscilar.

Assim se explica tudo em conjunto e que o romancista em Sōseki jamais alcançasse a plena influência dos grandes mestres do romance ocidental, e que durante este tempo nunca, até hoje, deixasse de nos ser caro a nós, Japoneses.

*

Kokoro, publicado em 1914, é um romance do género psicológico. No fim do romance, encontramos esta frase: «A única coisa profunda que senti neste mundo é o pecado que está no homem.» Por ter sentido profundamente o pecado que está sobre o homem, um homem fecha‑se na solidão e depois mata‑se. Tal é, narrativa e pensamento, o enredo de Kokoro. Traída pelos mais próximos, a personagem central do romance começa por se despojar da estima que tinha pelo universo dos homens. Mas, logo de seguida, chega a ponto de ele próprio trair o melhor amigo: então, despoja‑se também da estima em que se apoiava. E o pecado do homem está sobre si.

A composição do livro, dividido em três partes, é simples. O Eu do romance, estudante, encontra a personagem a que doravante chamará Mestre, e cujo encanto enigmático o atrai dia após dia. Um pouco à maneira de um herói de romance policial, o estudante procura desvendar o segredo do Mestre: e, passo a passo, o leitor é conduzido ao cerne da trama. Esta é a primeira parte. A segunda parte forma uma espécie de digressão de volta à sua província, o estudante cuida do seu pai moribundo. A parte central do romance é a terceira. O Mestre, antes de se matar, escreveu ao estudante, e para ele, o seu testamento moral, a sua confissão. Esta confissão, ao mesmo tempo que desvenda todos os mistérios, torna visível o tipo de necessidade interior que, pouco a pouco, empurrou o Mestre para o suicídio.

Receio que haja, neste longo romance de análise, estados de espírito que desconcertam o leitor ocidental. Aliás, eles já agora escapam aos jovens do nosso Japão moderno. Porque é que, por exemplo, o Mestre não confessa à mulher, que é, no fundo, a causa do drama, que certa vez traiu por ela o seu amigo mais querido? Por medo, disse o Mestre, de manchar, mesmo com um único remorso, o mínimo pensamento da sua mulher. Mas não é precisamente este silêncio demasiado obstinado que, causando a desgraça tanto do Mestre como da sua mulher, provoca o drama? Drama evitável, a meu ver, e que o herói teima em não evitar. E este é, sem dúvida, o ponto fraco do romance. No entanto, esta atitude inexplicável talvez restasse explicá‑la pelo nosso antigo código moral japonês: atitude toda ela de estoicismo e silêncio.

Além disso, na ordem dos costumes, certas cenas do final de Meiji darão ao leitor ocidental uma impressão de estranheza: a vida dos estudantes, as relações entre homens e mulheres, as relações familiares entre as pessoas do campo. Imagens, no entanto, que formam o pano de fundo muito natural do romance e, vistas por olhos estrangeiros, permanecem um precioso marco na história mutável do nosso moderno Japão.

Uma derradeira observação. Ao receber o testamento do Mestre, o estudante deixa a cabeceira do seu pai moribundo para correr, mas demasiado tarde, para junto do Mestre. Que um filho prefira um pai espiritual ao seu pai biológico é, de certa forma, uma revolta do indivíduo contra o social preestabelecido. Significa isto que Sōseki ficou do lado da nova ordem contra a velha ordem? Não acredito. Sōseki não tem nada de espírito rebelde. E se há uma contradição aí, deve‑se menos ao viés do romancista do que à complexidade variável do próprio tema do romance. A sabedoria aqui não é apontar, do ponto de vista de uma lógica imóvel, as contradições da obra, mas aceitar a obra como um todo e pelo que ela é: reflexo desta verdadeira vida, que é, para todos os homens, plena de embates, incessantemente. Aqui, de novo, talvez o Kokoro de Sōseki toque no humano e seja mais universalmente apreciado do que eu mesmo ouso esperar.

BREVE NOTA DO TRADUTOR SOBRE O TÍTULO

Quando viu a luz do dia — ou, em rigor, foi vendo, porque saiu em folhetins no jornal Asahi Shimbun, em 1914 —, este romance de Natsume Sōseki (1867–1916) tinha como título 先生の遺書, ou seja, meio transliterado, meio traduzido, Kokoro: o Testamento do Mestre. Quando mais tarde apareceu publicado em livro, o título já estava abreviado: Kokoro. Perfeito para o mercado japonês, onde é um êxito de vendas imbatível, mas indecifrável para o resto do mundo.

Como o leitor verá, na terceira parte, que constitui o testamento do Mestre (sensei, 先生, no original), superabunda o termo «coração»o tal kokoro do original. Na falta de melhor termo? Talvez, mas certo é que em português o termo «coração» é igualmente polissémico, vai muito além do órgão central da circulação sanguínea. O kokoro japonês é também assim, e designa ao mesmo tempo os conceitos de afeição, espírito, coragem, determinação, sentimento e até cerne das coisas. É esta amálgama que o leitor deve ler na palavra «coração», e que também serve a elevada complexidade psicológica desta obra. O nosso «coração» também é mais do que parece, e tal veio‑nos já da Antiguidade. Com efeito, tanto Empédocles como Aristóteles, entre outros pensadores, situavam o nous (o princípio racional da alma, como o denominou Platão) no coração. Era neste órgão físico que morava a alma sensitiva, sendo, por isso, a sede do conhecimento sensitivo, da memória e da imaginação. Temos resquícios deste conceito na língua. Assim, quando dizemos que sabemos alguma coisa de cor (de memória) ou de cor e salteado (muito bem), é a este conceito de coração como sede da inteligência e da memória que nos estamos — sem nisso pensarmos — a referir. Porque, afinal, o português medieval tinha o termo cor, ou seja, coração, que nos veio do latim cor, cordis.

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[...] uma sombra assustadora atravessava por vezes o meu coração, como uma flecha negra. [.] Esta sombra era o pecado que está sobre o homem. A única coisa profunda que senti neste mundo foi o pecado que está sobre o homem. Foi este sentimento [...] que me deu vontade de ser chicoteado na rua por cada um dos desconhecidos com que me cruzava. E, subindo degrau por degrau a escada desta expiação, foi este mesmo sentimento que me levou, não contente em chamar o chicote dos outros, a desejar chicotear‑me a mim mesmo. E, mais ainda do que querer chicotear‑me, a querer destruir‑me a mim próprio.

N. S.

Primeira parte — O Mestre e Eu

I

Sempre lhe chamei Mestre: é por isso que neste livro também só lhe chamarei Mestre, sem revelar o seu verdadeiro nome. Não é tanto que aos olhos do mundo eu o receasse fazer. Mas este nome Mestre é para mim o mais natural. Sempre que me recordo dele, «Mestre» está nos meus lábios; assim como também quando escrevo, o mesmo nome está sob a minha pena. Nem me ocorre recorrer a frias iniciais.

Conheci‑o em Kamakura. Naquela época, eu ainda era estudante em plena juventude. Estávamos nas férias de verão e um dos meus amigos aproveitara para ir a banhos de mar. Por carta, pediu‑me com insistência que me juntasse a ele. Reuni algum dinheiro e decidi partir. Mas demorei dois ou três dias a juntá‑lo e não estava em Kamakura senão havia três dias quando, subitamente, o amigo que me convidara recebeu da sua província um telegrama que o avisava: «Mãe doente.» Mas o meu amigo duvidava. Havia já algum tempo que os pais o empurravam, na sua terra, para um casamento que não lhe agradava. De acordo com os usos daquele tempo, ele era demasiado jovem para se casar. Mas, sobretudo, e era isto o importante, ele não a amava. Assim, fugindo da província onde devia passar as férias, veio descansar não muito longe de Tóquio.

Mostrou‑me o telegrama e pediu‑me conselhos sobre o que devia fazer. Para dizer a verdade, eu tão‑pouco sabia. Mas se na verdade a sua mãe estava doente, ele era moralmente obrigado a regressar para junto dela. Tanto é assim que, por fim, decidiu ir‑se embora e, tendo vindo procurá‑lo de propósito, fui deixado só.

O recomeço das aulas ainda estava distante. Tanto podia permanecer em Kamakura como voltar a Tóquio. Resumindo, decidi ficar algum tempo no albergue. Filho de um ricaço de Chugoku, o meu amigo não tinha dificuldades. Mas o nosso liceu era severo, a nossa juventude uma juventude pouco viciada e a nossa vida material era pouco mais ou menos a mesma. Assim, deixado só, não me dei ao trabalho de mudar de albergue.

Kokoro
créditos: Editorial Presença

Livro: "Kokoro"

Autor: Natsumé Sôséki

Editora: Editorial Presença

Tradução: Helder Guégués

Preço: € 14,31

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O albergue situava‑se num quarteirão pouco frequentado de Kamakura. Um longo caminho através dos campos separava‑nos de bilhar, gelados, todos esses luxos. E se fôssemos de riquexó, custaria vinte sen. No entanto, em todos os lados havia inúmeras villas. E a proximidade da praia conferia a este bairro uma localização privilegiada para os banhistas.

Todos os dias eu ia ao mar. Entre velhas cabanas de colmo enegrecidas pelo fumo, descia à praia. E que em tal bairro pudessem viver tantos desses citadinos nunca deixou de me surpreender: tantos eram os homens e mulheres que, idos para ali em vilegiatura, se agitavam na areia. Às vezes o mar, como um banho público, estava tão cheio de cabeças negras que parecia fervilhante. Mas entre todas essas pessoas eu não tinha um único conhecido. Envolto na animação de tal paisagem, contentei‑me em estender‑me na areia; ou então, na água, oferecendo os joelhos ao choque das ondas, divertia‑me a saltar em círculos.

Foi justamente nesta confusão que descobri o Mestre. Havia duas casas de chá na praia e, apenas com o acaso a orientar a minha escolha, eu adquirira o hábito de frequentar uma delas. Menos privilegiados do que os donos das vastas villas do bairro de Hasé, onde cada um tem a sua cabina balnear, os banhistas deste recanto da praia não podiam prescindir daquilo a que poderíamos chamar uma cabina comum: para nós, estes dois abrigos. Ali bebíamos chá, ali descansávamos; e ainda enxaguávamos ali o fato de banho, e lavávamos ali com água doce o corpo pegajoso de sal, depositava‑se ali o chapéu, a sombrinha. Eu não tinha fato de banho. Mas tinha medo de ser roubado e nunca tomei banho até ter confiado tudo a esta casa de chá.

II

Foi nesta mesma casa de chá que vi o Mestre pela primeira vez. Despia‑se para ir tomar banho. Eu acabava de sair da água e expunha ao vento o meu corpo molhado. Entre nós os dois, cem cabeças negras se interpunham como tela, e se não fosse um pormenor particular, não sei se, no fim de contas, não teria deixado o Mestre passar sem sequer reparar nele: havia na praia uma tal confusão, e eu sentia a cabeça tão vaga! Mas logo de seguida o meu olhar caiu sobre o Mestre, porque estava um europeu com ele.

Esse europeu era tão branco que, assim que voltei para a casa de chá, ele atraiu a minha atenção. Estava vestido com uma yukata de verão: atirou‑a negligentemente para cima de um banco, depois, de braços cruzados, de frente para o mar, levantou‑se, sem nada no corpo a não ser os mesmos calções de que todos nós nos servimos. Isto foi o que primeiro me impressionou. Dois dias antes, prolonguei o passeio até à praia de Yuigahama e ali, acocorado na areia, observei por muito tempo como os europeus se banham. A duna onde eu estava sentado dominava bem de perto a porta das traseiras do hotel europeu. Enquanto descansava, observei as pessoas a saírem para tomar banho. Todos eles, tantos quantos eram, cobriam as costas, os braços e as coxas com um fato de banho comprido. Sobretudo as mulheres tomavam muito cuidado em esconder a carne. A maioria deles até envolveu a cabeça num boné de borracha: castanho, azul‑celeste, azul‑marinho, viam‑se estes bonés a flutuar entre as ondas. Depois deste espetáculo, que aquele europeu vestido unicamente de calções permanecesse sem constrangimento diante de nós parecia‑me uma coisa extraordinariamente rara.

O europeu, contudo, baixava os olhos para um japonês curvado ao seu lado; disse‑lhe algumas palavras. O japonês apanhava a sua toalha caída na areia. Ele imediatamente cobriu a cabeça com ela e dirigiu‑se para o mar. Este homem era o Mestre.

Por simples curiosidade, observei as silhuetas dos dois homens descerem lado a lado em direção à praia. Eles iam em frente, pisando as ondas. A multidão de banhistas agitou‑se ruidosamente sobre este fundo ligeiramente inclinado: eles atravessaram‑no e, tendo chegado a um local menos concorrido, começaram a nadar. Até que as suas cabeças se tornaram pequeninas, eles seguiram para o mar. Depois, ainda em linha reta, regressaram à praia. De volta à casa de chá, sem se darem ao trabalho de se molhar com água doce, secaram‑se, vestiram o quimono e desapareceram subitamente.

Após a sua partida, sentado no mesmo banco a fumar cigarros, pensei vagamente no Mestre: «Claro, já vi esta cara antes!» Mas, por mais que esforçasse a memória, a hora e o local desse encontro escapavam‑me completamente.

Era uma época em que eu, embora sem problemas, morria de tédio. Assim, no dia seguinte, calculando bem o meu tempo, voltei à casa de chá. O europeu não viera, e o Mestre estava sozinho, de chapéu de palha. O Mestre tirou os óculos, pousou‑os sobre um banco, pôs rapidamente a toalha na cabeça e, em passos estugados, desceu para a praia. O Mestre, como na véspera, abriu caminho entre os ruidosos banhistas e, sozinho, começou a nadar. De súbito, quis lançar‑me no seu encalço. Fazendo a água salpicar à minha volta, meti‑me no mar até onde tinha pé. Mas o Mestre não seguiu o seu caminho da véspera; traçando uma espécie de curva, tomou uma direção inesperada e voltou para a margem. Assim, falhei o meu objetivo. De volta à terra firme e balançando os braços a pingar, voltei para a casa de chá. Mas, já cuidadosamente vestido, o Mestre saía passando por mim.