Introdução

Em 1798, um editor parisiense chamado Pierre Didot decidiu aventurar-se na pornografia. Encomendou 16 gravuras exuberantes que representavam posições que iam das mais básicas às mais extraordinariamente atléticas. Para manter um certo nível de classe, mascarou todo o projeto com duas camadas de respeitabilidade histórica*.

O título dava a entender (erroneamente) que se tratava de uma reminiscência das mais notáveis obras eróticas do Renascimento: I Modi, ou As Posições. Esta coleção de 16 gravuras e 16 sonetos foi considerada tão perigosamente explícita pela Igreja Católica, que duas tiragens completas foram apreendidas e destruídas, tendo a obra sobrevivido apenas em fragmentos insuficientes e sob uma reputação marcada pelo escândalo.

Além disso, Didot deu a cada uma das posições um título clássico inspirado na mitologia ou na história greco-romana, tendo também escrito algumas páginas com explicações históricas quase-intelectuais; na Gravura VI, Hércules dá bom uso à sua famosa força levantando Deianira completamente do chão, a Gravura X representa Baco a fazer amor com uma Ariadne a fazer o pino e, na Gravura XVII, vemos Eneias a passar os dedos por trás de uma Dido ajoelhada.

A posição XIV chama-se «a Messalina». Estamos num bordel romano e Messalina — imperatriz do mundo conhecido, mulher do imperador Cláudio — está deitada numa cama com pés de leão, disfarçada de prostituta vulgar. Mal conseguimos ver o rosto do cliente anónimo e musculado que se prepara para a penetrar, mas não importa. Messalina tem a perna pousada no ombro do homem e a mão nas suas costas, para o puxar para ela. A gravura ilustra uma passagem famosa da Sátira Sexta de Juvenal, do século II d. C., em que o poeta afirma que a imperatriz, desesperada por alimentar um impulso sexual insaciável, esperava que o marido adormecesse para se disfarçar com uma peruca loira e um manto e sair sorrateiramente do luxuoso palácio do Palatino para se meter na ruas escuras de Roma até chegar a um bordel decadente.

Ali, Messalina ia para um quarto, abafado e malcheiroso, despia-se e colocava-se à venda sob o nome falso «Licisca» (Lobinha). Namoriscava e fodia por algumas moedas de cada vez e só de manhã, quando o Sol já estava a levantar-se e a madame começava a ficar irritadiça, é que ela decidia, a contragosto, ir-se embora. Voltava ao palácio suja — com o suor dos amantes e a fuligem das lamparinas a óleo barato na pele — e mais feliz, mas, segundo Juvenal, ainda não completamente satisfeita.

O texto que acompanha a Gravura XIV descreve a prodigiosa vida sexual da personagem principal. Messalina, diz-nos a prosa, dormiu com todos os oficiais do palácio do marido; na verdade, quase não havia nenhum homem em Roma que não pudesse
gabar-se de ter estado com a imperatriz. Afirma que ela assassinou alegremente homens que, extenuados pelas constantes necessidades da imperatriz, deixavam de ter o vigor ou a capacidade de a satisfazer. O texto acaba com a afirmação de que o nome de Messalina nunca iria morrer; iria perdurar ao longo dos séculos para rotular qualquer mulher com apetites sexuais desenfreados e nunca haveria de ser ultrapassado no que respeita à reputação de devassidão.

Hugo Gonçalves junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 11 de abril, uma quinta-feira, pelas 21h00. Consigo traz "Revolução", o seu último livro, editado pela Companhia das Letras.

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Neste aspecto, pelo menos, Didot não se enganou. Nos séculos que se seguiram à execução de Messalina, no ano de 48 d. C., o nome da imperatriz tornou-se merónimo de femme fatale, a mulher que ousava expressar desejo sexual. Num manuscrito iluminado da França medieval, encontramos uma Messalina com um aspecto extraordinariamente descontraído a arder nas chamas eternas da perdição, entretida num furioso debate com os imperadores Tibério e Calígula sobre quem tinha pecado mais. Os panfletários revolucionários franceses lançavam calúnias a Marie Antoinette, afirmando que era uma nova Messalina, ao passo que a irmã, a poderosa rainha de Nápoles, Maria Carolina, era descrita por um observador como uma mulher que combinava «toda a lubricidade de uma Messalina e os gostos pouco ortodoxos de uma Safo». Nos subúrbios britânicos dos anos 20 do século XX, uma mulher condenada por convencer o amante a assassinar o marido foi imortalizada como a «Messalina dos subúrbios» e, nos anos 30, a empresa Player’s Cigarette produziu cartões, que acompanhavam os maços de cigarros (no âmbito de uma série sobre «beldades famosas»), que mostravam uma Messalina, com lábios pintados de batom vermelho e o vestido a descair de um ombro, estirada num leito, a despejar um copo de vinho para o chão, numa arrogância e presença de espírito que saltavam à vista. O cartaz de lançamento do filme de 1977 Messalina, Messalina! mostra a imperatriz que dá nome ao filme numa túnica sem costas e com uma racha até ao cimo das coxas; o slogan promete aos espectadores «as diversas aventuras amorosas da mais insaciável devoradora de homens». Messalina tornara-se o arquétipo da «mulher de má fama», uma personificação monstruosa da intersecção entre a fantasia masculina e o medo masculino.

O legado de Messalina na consciência cultural ocidental acaba por não ser surpreendente, dado o tratamento que a imperatriz teve nas fontes da Antiguidade. Depois de ser executada, foi vítima de damnatio memoriae; o nome de Messalina foi raspado dos monumentos, as suas estátuas foram destruídas e a sua reputação não foi alvo de nenhum tipo de proteção. Com rédea livre para revelarem os seus piores instintos, historiadores, poetas e até cientistas do sexo masculino fizeram a festa, acusando Messalina de adultério, ganância, prostituição, bigamia e assassínio, ao mesmo tempo que lidavam com as inquietações que tinham a respeito da moralidade e do poder das mulheres.

A ação combinada da destruição e do abastardamento da história de Messalina dificultam a reconstrução de um relato «factual» preciso da vida da imperatriz. Muito do que se sabe é discutível e até os factos mais básicos são alvo de debate. Para dar só um exemplo: estima-se que a imperatriz tenha nascido entre 17 d. C. e 26 d. C. Para uma mulher que, muito provavelmente, não chegou aos 30 anos, a diferença de quase uma década na data de nascimento é crucial. Se assumirmos que nasceu no ano 17 d. C., Messalina teria cerca de 21 anos quando casou com Cláudio, em 38 d. C., e cerca de 31 quando morreu, em 48 d. C. No entanto, se afirmarmos que nasceu em 26 d. C., teria apenas 22 anos quando morreu. Este dado tem consequências óbvias para a nossa análise da mulher e das suas ações. Seria uma virgem que se casou com um homem com o triplo da idade? Uma adolescente a explorar a sua sexualidade? Uma rapariga fora de pé numa corte onde grassava uma intriga política que ela não compreendia? Ou seria Messalina uma jovem mulher bem ciente do seu poder sexual e perfeitamente capaz de conspirar com os melhores?

*

Será, então, Messalina uma causa perdida para um historiador? Talvez eu esteja a ser tendenciosa, mas diria que não.

Pelos padrões da Antiguidade, Messalina viveu num lugar e num tempo sobre os quais temos uma enorme quantidade de informação. Os cerca de 100 anos que antecedem e que sucedem o nascimento da imperatriz são talvez a era mais bem documentada da história ocidental antes do Renascimento. A sociedade romana neste período era imensa, aberta e ostensivamente instruída. O povo habitava uma paisagem urbana saturada pela escrita: as leis e os decretos eram inscritos em pedra ou bronze; eram esculpidas elogias aos falecidos em túmulos construídos ao lado das estradas; havia placas a indicar os nomes das pessoas representadas em estátuas e os respetivos feitos; e todas as paredes livres eram cobertas por pichagens a dizer quem evitar, em quem votar… e quem foder.

As pessoas instruídas sabiam ler e escrever, tanto em latim como em grego. Conheciam todo um corpo de literatura de cor — os épicos de Homero, as tragédias de Ésquilo, os discursos de Demóstenes — e distribuíam citações com presunçosa familiaridade pelas cartas que trocavam. E a troca de cartas era constante. A correspondência constituía a espinha dorsal do império administrativo; foi o novo serviço postal imperial (o cursus publicus), instaurado por Augusto para levar as diretivas e os relatos de uma ponta à outra do Império, que possibilitou que o vasto domínio romano fosse governável a partir da capital. Além disso, a escrita epistolar começou a ser vista como uma forma de arte quando Cícero e Plínio, o Jovem, começaram a compilar vastos volumes de correspondência privada. No Capitólio, os arquivos senatoriais preservavam minutas, julgamentos e decretos para referência futura.

A literatura também teve um período próspero: na obra Eneida, Virgílio deu finalmente a Roma um épico capaz de rivalizar com os dos Gregos; Catulo e Ovídio abriram os corações com elegias nostálgicas a amores proibidos; Horácio, Pérsio e Juvenal aperfeiçoaram o novo género de sátira mordaz e peculiarmente romano. Os textos do século I a. C. ao século I d. C. não demoraram a ser reconhecidos como clássicos de uma era dourada da literatura e viriam a ser preservados para a posteridade nas bibliotecas das abadias, ao longo dos séculos da Idade Média cristã, como cópias de cópias de cópias, por monges que respeitavam a sua importância literária ou que os consideravam ajudas necessárias para o ensino do «latim clássico lídimo».

O tempo de Messalina deixou um rasto não menos indelével na paisagem física do que na paisagem literária. A elite imperial construiu monumentos concebidos para suportarem as agruras do tempo. Muitos deles vieram mais tarde a ser recuperados e inseridos no tecido da Cidade Eterna da Igreja Católica; os templos dos velhos deuses tornaram-se as igrejas do novo, os arcos e as colunas foram reaproveitados para adornar os palácios dos nobres. Noutros locais, a preservação da paisagem da Itália de Messalina foi mais fortuita. A erupção do Vesúvio em 79 d. C., embora tenha sido uma tragédia para os habitantes de Pompeia, congelou uma cápsula do tempo da vida quotidiana das cidades e vilas romanas tal como era realmente — e não como foi desenhada e repartida para fins comemorativos — em meados do século I d. C.

A partir destas fontes distintas, podemos criar um quadro muito rico do mundo em que Messalina viveu: as leis, as normas sociais, as instituições políticas e redes familiares, a economia, a aparência, os ideais e as inquietações. A partir do momento em que compreendamos o ambiente em que Messalina viveu — e no qual foram escritas as primeiras histórias da sua vida —, poderemos andar para trás e perguntar-nos se as histórias que nos contam são plausíveis ou não e, se não forem, analisarmos os preconceitos e os motivos ocultos pelos quais podem ter sido criadas.

Trata-se de um processo delicado, mas também proveitoso. Às vezes, as ficções que uma sociedade engendra sobre si própria dizem-nos quase tanto sobre essa sociedade como os factos. Talvez cheguem até a dizer-nos mais. Os acontecimentos podem dar-se por acaso, mas, num mundo em que a história oral abundava e os materiais de escrita eram caros, a criação de uma história exigia um esforço concertado — consciente ou inconsciente — de invenção e seleção.

As histórias contadas sobre Messalina dificilmente poderiam ser mais sensacionais. Derruba um dos homens mais ricos e mais poderosos de Roma porque gosta do jardim dele; assassina homens que se recusam a dormir com ela; desafia a prostituta mais conhecida de Roma para uma competição de vigor sexual de 24 horas e vence; planeia um golpe para derrubar o imperador e casa-se publicamente com o amante enquanto o marido está fora.

Ao contrário da personagem «a Messalina» — uma mulher definida inteiramente pela sua sexualidade —, que se viria a desenvolver mais tarde na tradição cultural ocidental, a verdadeira Messalina foi uma potência política, bem como sexual. As alegadas intrigas da imperatriz, a queda súbita e o processo tremendamente eficaz de assassínio de carácter que se dá depois da sua morte revelam muito sobre o funcionamento interno das novas políticas da corte que emergiu quando Roma passou de República a Império, num processo de desenvolvimento em que, como vou tentar mostrar, Messalina desempenhou um papel de destaque. Foi uma mudança que aterrou os historiadores contemporâneos originários da antiga classe senatorial. A política passou a ser algo que não eram capazes de controlar, uma coisa obscura e fugidia que ocorria atrás de portas fechadas, que era definida em função de rivalidades políticas e facciosismos internos, e que se desenrolava sob a forma de suspeitas de envenenamentos e acusações falsas, em vez de assembleias e debates públicos.

Livro: "Messalina"

Autor: Honor Cargill-Martin

Editora: Minotauro

Data de Lançamento: 4 de abril de 2024

Preço: € 25,90

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É um processo que hoje não nos preocupa menos. A eleição de Donald Trump em 2016 deveria deitar por terra o mito — tão em voga durante o século XX — segundo o qual a História pode ser explicada de forma sistemática sem qualquer recurso ao indivíduo, ao irracional ou à emoção. Na Casa Branca de Trump, o carácter, o ego e as relações pessoais alteraram indubitavelmente o rumo da presidência. Não vou tentar demonstrar com estas generalidades que os Clássicos continuam a ser cruciais para o nosso entendimento da política moderna: não são cruciais, são interessantes (o que é melhor) e, em geral, os novos problemas mundiais que enfrentamos na atualidade exigem soluções novas. Pelo contrário, a nossa experiência da política contemporânea da personalidade deveria lembrar-nos que não devemos subestimar o poder do temperamento pessoal, do amor, da luxúria, dos laços familiares, do ciúme, do preconceito e do ódio como motores de verdadeira mudança histórica. Os académicos, a maior parte deles do sexo masculino, ignoram desde há muito tempo Messalina enquanto objeto de estudo sério, rejeitando relatos históricos da sua vida por os considerarem pouco fiáveis e por verem a mulher apenas como uma vadia sem ideias. Mas vou defender que a história de Messalina é fundamental para a história do seu tempo, da qual não pode, aliás, ser arredada; é uma história que nos obriga a confrontarmo-nos com todas as irracionalidades incomensuráveis que definem este período da histórica política romana.

Os problemas que encontramos quando tentamos compreender Messalina deverão ser reconhecidos como uma parte da sua história e como uma parte da história das mulheres da Antiguidade em geral. Por mais rico que o corpus literário que sobrevive do mundo clássico seja, quase não conta com vozes femininas. Há fragmentos das poetisas Safo e Sulpícia, mas, de um modo geral, as «palavras» das grandes mulheres da História e dos mitos da Antiguidade — mulheres extraordinárias e poderosas como Helena, Medeia, Antígona, Pentesileia, Artemísia, Lucrécia, Cleópatra, Lívia, Boudica — são escritas por homens. O lamento amargo de Medeia «entre os seres com psique e pensamento, quem supera a mulher na triste vida?» foi escrito com a pena de Eurípides; o grito de guerra de Boudica foi composto por Tácito. Vezes sem conta, encontramos estas personagens femininas transformadas em protótipos ou pesadelos da feminidade ao serviço de uma mensagem de um autor do sexo masculino.

É uma tendência de que ainda não conseguimos desenvencilhar-nos completamente ao longo da evolução dos últimos 2000 anos: a nossa cultura ainda parece ter dificuldade em confrontar-se com a complexidade da mulher. As personagens femininas modernas continuam a tender para o preto e branco, ao contrário do que acontece com as congéneres masculinas; ainda há menos espaço na consciência cultural para a heroína complexa do que para o herói complexo.

As mulheres que têm palavras escritas para elas por autores do sexo masculino são as exceções; o mais comum é as mulheres da história da Antiguidade não falarem, nem serem chamadas à conversa, de todo. A mulher ideal no mundo da Antiguidade era calada, modesta e reservada; nas cortes gregas, a simples menção de uma mulher num discurso público era o equivalente a
chamar-lhe vadia. No início do século i d. C., esta era a inscrição no túmulo de uma mulher chamada Murdia:

o louvor de qualquer boa mulher tende a ser simples e parecido, porque as boas qualidades naturais das mulheres […] não suscitam uma descrição muito variada. Fazer as mesmas coisas que todas as boas mulheres fazem deveria ser suficiente para lhe conferir uma reputação digna. Afinal, é mais difícil para as mulheres merecerem novos louvores quando as suas vidas são marcadas por tão pouca variação. Por isso, devemos celebrar as virtudes que lhes são comuns… a minha querida mãe merece os maiores elogios de todos, porque em modéstia, honestidade, castidade, obediência, tecelagem, zelo e fidelidade esteve à altura e foi o perfeito exemplo para qualquer outra mulher idónea.

A «boa» mulher, ocupada com os deveres domésticos, não tinha interesse para a maioria dos escritores gregos e romanos, pelo que estes acabavam por não a mencionar nas suas obras. Este silêncio intensifica-se para lá do mundo da elite. Para reconstruirmos as vidas das mulheres mais pobres — sejam raparigas escravas, mulheres de artesãos ou prostitutas —, temos de recorrer a louça partida, volutas de fusos gastas, marcas de queimaduras deixadas em chãos antigos junto a braseiros e fragmentos de pichagens antigas.

O facto de sabermos tão pouco sobre a vida de Messalina antes do casamento, ao ponto de nem sequer sermos capazes de lhe atribuir uma data de nascimento com total confiança, não é um acidente anómalo de distração histórica, mas uma indicação de um pressuposto cultural: as mulheres simplesmente não tinham interesse enquanto as suas vidas não se cruzassem, em grande medida, com as dos homens. Este pressuposto estava tão enraizado que se reflete na língua: nem o grego antigo nem o latim têm um termo específico para uma mulher adulta não casada. A obscuridade e a falta de voz da «verdadeira Messalina» — que, em todos os relatos que se fizeram da sua vida, nunca teve direito a um momento de discurso direto — são o reflexo da obscuridade e da falta de voz da grande maioria das mulheres da Antiguidade.

O aviltamento de Messalina é a melhor introdução que podemos ter para os perigos do estudo da condição feminina no seio da patriarquia misógina a que chamamos o berço da civilização, da racionalidade e da liberdade ocidental. Mas as inquietações geradas por uma mulher poderosa — pior, uma mulher poderosa e jovem, pior ainda, uma mulher poderosa e jovem que não tem medo de expressar a sua sexualidade —, que permeiam, de uma forma que salta à vista, todas as frases escritas sobre Messalina, são mais do que uma boa introdução para as realidades do preconceito da Antiguidade. Além disso, continuam a ser perfeitamente reconhecíveis para o leitor moderno. O que também não é difícil de reconhecer são as muito previsíveis respostas que estas inquietações suscitam: escândalo sexual e a apresentação da mulher como vadia ou como um ser emocionalmente irracional. A história de Messalina — na medida em que a conseguimos reconstruir — é, em certos aspectos, uma história muito moderna: a história de uma mulher que ousa agitar o poder num mundo de homens e que sofre as consequências desta escolha.

Mais importante do que qualquer relevância que Messalina possa ter no mundo moderno é colocá-la no lugar que lhe é devido na narrativa histórica. A história de Messalina não é uma parábola da mulher enganada; Messalina não é apenas uma  mulher inocente vítima de uma narrativa misógina. Foi formatada pela patriarquia brutal no seio da qual viveu e trabalhou e que, em alguns casos, perpetuou.

A história de Messalina é, de certa forma, a história da consolidação do poder imperial em meados do século I d. C. e da transformação constitucional de Roma de uma república para o que era uma monarquia em tudo menos no nome. Augusto tinha instaurado uma autocracia e lançado as sementes para um sistema dinástico, mas o verdadeiro toque de génio residiu no abrandamento da velocidade desta transformação e respetiva revelação. O processo ainda estava em andamento quando Messalina e Cláudio chegaram ao poder, em 41 d. C., 25 anos depois da morte do primeiro imperador, Augusto. Como imperatriz,  Messalina viria a tornar-se uma participante ativa na lenta revolução da paisagem política romana, procurando novas formas de exercício do poder que exploravam ou contornavam as velhas instituições da vida pública romana dominadas pelos homens. Messalina criou modelos de poder feminino que viriam a ser usados pelas sucessoras e que viriam a ajudar a definir as ideias romanas sobre o que significava ser «imperatriz».

Messalina foi, como irei defender, uma figura crucial na história da Roma imperial do século I. A nossa obsessão com a sua vida sexual ensombrou este facto em prejuízo não apenas da sua memória, mas também do nosso entendimento do período.

Prelúdio

Cronistas de Messalina na Antiguidade

Grande parte do que sabemos sobre a vida de Messalina vem de uma série de fontes escritas em latim e grego nos séculos que se seguiram à sua morte, nomeada e principalmente as obras Anais, de Tácito; As Vidas dos Doze Césares, de Suetónio; e História Romana, de Dião Cássio. Tácito e Suetónio foram quase contemporâneos, tendo vivido por volta da viragem do século II d. C.; por sua vez, Dião escreveu cerca de um século mais tarde, por volta da viragem do século III. Cada uma das obras está escrita num formato diferente e cada autor tinha os seus próprios preconceitos, que temos de compreender antes de começarmos a desfiar as apresentações que fazem de Messalina. Há outras fontes que também fazem referência a Messalina, claro, mas serão apresentadas à medida que se tornarem pertinentes.

Públio Cornélio Tácito nasceu apenas alguns anos depois da morte de Messalina, em meados dos anos 50 do século I d. C. As origens deste historiador são algo obscuras, mas parece ser oriundo de uma família da nobreza rural do que agora será o norte de Itália ou o sul de França; eram seguramente ricos e suficientemente bem relacionados para darem ao filho a melhor das educações na cidade de Roma. Tácito mostrou-se prometedor e não demorou a embarcar numa carreira pública sob os auspícios do imperador Vespasiano, tendo celebrado um casamento vantajoso, obtido cargos de magistrado e, provavelmente, entrado no Senado durante o reinado do imperador Tito, no início dos anos 80 d. C. Foi subindo a hierarquia paulatinamente — numa carreira que nunca foi travada pela tirania de Vespasiano — e fez-se cônsul em 97 d. C.

Como muitos dos seus congéneres senadores, Tácito revelou desde cedo uma veia literária, mas, depois de ter sido cônsul, começou a dedicar-se mais seriamente à história. A primeira obra que escreveu, Historiae, cobriu o período decorrente entre a queda de dois tiranos: Nero em 69 d. C. e Domiciano em 96 d. C. Na introdução a esta obra, Tácito prometia que no trabalho seguinte trataria da história mais contemporânea dos reinados de Nerva e Trajano, mas, quando chegou a altura, mudou de direção e decidiu centrar a atenção ainda mais atrás para escrever aquele que continua a ser o melhor relato da dinastia Júlio-Claudiana, a primeira e mais notável dinastia romana.

Os Anais, é este o nome da obra, foram escritos depois da experiência de Tácito como governador da província da Ásia, talvez no final dos anos 10 e no início dos anos 20 do século II. Os 16 a 18 livros da obra completa apresentavam uma narrativa contínua do período que decorreu entre a acessão de Tibério e a queda de Nero. Na introdução, Tácito reconheceu que «[t]udo quanto se escreveu no governo de Tibério, de Cláudio, de Gaio e de Nero é mentiroso em consequência do medo; e o que depois da morte deles se publicou tem o mesmo carácter por estarem os ódios ainda muito recentes». Tácito, porém, afirmava que iria escrever a história daqueles tempos «sem ódio nem afeição, porque nenhuns motivos tenho para isso».

A ambição de justiça e imparcialidade de Tácito era admirável, mas impossível de colocar em prática. Quando se sentou para escrever os Anais, Tácito era senador havia quase 40 anos, bem mais de metade da sua vida. O estatuto de senador era fundamental para a sua identidade, sobretudo por se tratar de um estatuto que conquistou sozinho como novus homo (um homem novo) de uma família de cavaleiros rurais. Além disso, teve as suas próprias experiências de tirania, nos anos de despotismo de Domiciano; no entanto, foi a este imperador que Tácito deveu os maiores progressos na carreira, facto que teve de reconhecer e que lhe deve ter ocupado o espírito de culpa. A história da dinastia Júlio-Claudiana foi a história da transformação de Roma, de república senatorial para autocracia. E Tácito não poderia, de forma nenhuma, manter uma posição de neutralidade.

Os temas da tirania, da dinastia e da corrupção constitucional permeiam toda a estrutura dos Anais. Tácito começa a narrativa não com o reinado de Augusto, mas com a acessão do sucessor, Tibério, o momento em que se torna claro e indubitável que Augusto tinha criado não só um domínio pessoal, mas uma dinastia quase monárquica. E este é um tema que também se evidencia no contraste entre o conteúdo e a estrutura da obra de Tácito. Os Anais estão escritos, como o nome indica, num formato analista em que a narrativa é dividida por anos, que são apresentados pelos nomes dos cônsules que os presidem. Tratava-se da forma mais tradicional de escrita da história romana, prevista para um período em que os magistrados senatoriais controlavam os eventos do ano. Ao usar esta estrutura para contar uma história cada vez mais dominada por caprichos pessoais e política cortesã, Tácito chama-nos constantemente a atenção para as mentiras e hipocrisias do início do Império.

Tácito queria marcar uma posição e a história de Messalina tinha o potencial de lhe ser muito útil. O poder que ela detinha como imperatriz (uma posição completamente inconstitucional sem precedentes republicanos) demonstra a aproximação de Roma a uma monarquia e o afastamento em relação ao regime senatorial. Os rumores segundo os quais Messalina havia usado esse poder para satisfazer a própria ganância, fantasia e insaciabilidade sexual eram exemplos perfeitos da perigosa instabilidade e corrupção da nova política da corte. A história de Messalina era um exemplo demasiado tentador para ser contado com imparcialidade por Tácito.

Há um outro fator de cariz prático que nos impede de usarmos Tácito como fonte: só uma parte dos Anais sobreviveu e os livros 7 a 10, que abarcam todo o reinado de Calígula e o início do de Cláudio, estão completamente perdidos. Tácito não nos deixa nenhuma ideia sobre o surgimento de Messalina; encontramo-la, no que sobrevive da narrativa, imediatamente antes da queda.

Suetónio terá provavelmente nascido numa família de cavaleiros que parece ser oriunda de Hipona (na atual Argélia), por volta do ano 70 d. C. Era apenas uma geração mais novo do que Tácito e, por ser protegido de Plínio, o Jovem, amigo do autor dos Anais, poderá tê-lo conhecido, mas tiveram carreiras e produções literárias com trajetórias bastante diferentes. Em vez de enveredar por uma carreira senatorial pública, Suetónio integrou a administração imperial, exercendo funções de conselheiro literário, bibliotecário e secretário de correspondência dos imperadores Trajano e Adriano, antes de ser dispensado (por uma infração desconhecida) do serviço imperial, nos anos 20 do século II.

Suetónio tinha amplos interesses intelectuais e escreveu monografias sobre temas tão diversificados como cortesãos famosos e nomes dos ventos. No entanto, o seu principal interesse era a biografia, e é a obra As Vidas dos Doze Césares — 12 biografias de 12 imperadores, de Júlio César a Domiciano — que nos interessa aqui. Naquela época, talvez ainda mais do que hoje, a biografia era um género distinto de escrita de história; tratava-se de histórias de homens famosos, tanto bons como terríveis, que tinham fins didáticos e cuja narrativa era regida por convenções estruturais proscritivas há muito definidas.

Enquanto biógrafo, o principal interesse de Suetónio eram os biografados. Tinha um reconhecido faro para as historietas espirituosas e as Vidas têm tanto de estudos de carácter como de relatos históricos. O conteúdo também é definido por ideias ancestrais sobre o que fazia um homem, e as mulheres só aparecem quando afetam ou revelam diretamente o desenvolvimento do imperador em questão. Enquanto Tácito está interessado em Messalina pela forma como ela reflete a moral e as condições políticas do seu tempo, Suetónio interessa-se sobretudo pela forma como a imperatriz reflete a moralidade e a personalidade do marido.

Embora provavelmente o senador Tácito e o secretário imperial da ordem equestre Suetónio tenham visões muito diferentes sobre as suas identidades, alianças e metas literárias, são homens que escrevem num contexto semelhante. Movem-se nos mesmos círculos sociais — com ligações a Plínio, o Jovem, e às cortes imperiais de Trajano e de Adriano — durante o início do século II d. C., uma era em que o discurso sobre a tirania e o bom governo estava muito presente, uma vez que a nova dinastia no poder procurava ativamente definir-se por oposição ao despotismo e à instabilidade dos antecessores.

A nossa terceira grande fonte, Dião Cássio, escreveu num contexto completamente diferente. Nascido em meados dos anos 60 do século II d. C., em Niceia (no noroeste da atual Turquia), só viria a começar a escrever a História Romana no início do século III. Viveu em tempos menos estáveis do que aqueles que deram a Tácito e a Suetónio espaço para trabalho académico: estes testemunharam o início da série dos famosos «Cinco Bons Imperadores»; Dião testemunhou o fim, com a morte de Marco
Aurélio, em 180 d. C.**  Os anos que se seguiram foram marcados por uma sucessão de tiranias, guerras civis e crises provinciais,
e, durante grande parte desse período, a carreira de Dião manteve-o no cerne da ação.

Embora descendesse de uma poderosa família bitínia, Dião (tal como o pai antes dele) construiu uma carreira senatorial proeminente em Roma, tendo servido o Império como general militar e governador provincial, e exercendo funções de cônsul duas vezes antes de regressar à sua província natal de Bitínia e Ponto, quando se retirou, em 229 d. C. A complexidade da identidade cultural de Dião reflete-se na natureza da sua obra: trata-se de uma história de Roma — muitas vezes motivada por preocupações senatoriais sobre a constituição, a liberdade e a tirania — escrita na língua e na tradição literária do grego clássico.

Ao contrário de Tácito e de Suetónio, Dião não escolheu um subgénero de escrita da história (analista, biográfica, etc.) que pudesse limitar-lhe o alcance ou a estrutura. Decidiu, sim, escrever a história de Roma desde a lendária chegada de Eneias a Itália até ao momento em que ele próprio se reformou, no final da terceira década do século III d. C. A obra — que, no total, viria a contar com 8 livros — demorou cerca de 22 anos a ser concluída: 10 para a pesquisa e 12 para a escrita. A estrutura é, de um modo geral, cronológica, mas Dião permitiu-se mais flexibilidade do que Tácito, apresentando historietas sem data, sempre que se revelam úteis para os arcos de desenvolvimento das personagens, ou combinando fios narrativos que abarcam vários anos numa única secção, para fins de concisão e clareza.

Nem toda a História Romana de Dião subsiste. A parte da obra que abarca o período que decorre entre 69 a. C. e 46 d. C. (e que, portanto, engloba a maior parte do reinado de Messalina) sobreviveu nas próprias palavras de Dião, preservada numa tradição de manuscritos que foram sendo copiados ao longo dos tempos. O resto subsiste apenas parcialmente, em citações e resumos elaborados por autores posteriores.

*

Nenhum dos nossos três historiadores principais foi contemporâneo direto de Messalina e os relatos que fazem das suas aventuras não são, como é óbvio, em primeira mão. Pelo contrário, estes autores fiaram-se numa rede de fontes perdidas a que raramente fazem referência explícita, sendo altamente inconsistentes quando o fazem. Algumas destas fontes eram oficiais: a acta diurna, por exemplo, que se constituía como um registo diário de todos os compromissos oficiais, bem como dos processos e discursos; e a acta senatus, um arquivo das minutas das reuniões do Senado, que estariam disponíveis para Tácito e Dião, dado o estatuto que tinham como senadores. O cavaleiro Suetónio podia não ter acesso direto à acta senatus, mas tinha outra vantagem: era secretário e arquivista dos imperadores Trajano e Adriano, uma posição que lhe dava acesso privilegiado a notas privadas e a correspondência imperial, que, por vezes, cita diretamente. Estes três historiadores terão também feito uso de relatos escritos
coevos — discursos transcritos, histórias recentes e autobiografias — e de tradições orais.*** Quando relata a história da queda de Messalina, Tácito, por exemplo, declara: «refiro fielmente o que eu mesmo tenho ouvido e o que já antes de mim homens velhos escreveram».

Por fim, é importante salientar que a visão romana da história é fundamentalmente diferente da nossa. A escrita da história na Antiguidade era vista não só como uma reconstrução da realidade histórica, mas também como um exercício de criação literária, e os textos destes três historiadores preocupam-se despudoradamente com as personagens, a narrativa, o contexto, o género, a retórica e a alusão textual. As personagens femininas eram particularmente suscetíveis a estes processos de manipulação narrativa. Em geral, tinham vidas muito menos documentadas do que as dos homens — as suas ações não soíam aparecer nos registos oficiais como as acta e o seu poder era quase sempre exercido por meio de canais privados de influência —, pelo que as suas histórias eram mais passíveis de serem arrevesadas. A componente criativa da escrita histórica tem muito para oferecer ao historiador moderno — quando devidamente analisadas, as escolhas literárias dos historiadores dizem-nos muito sobre as suas ideias e os seus preconceitos —, mas pode ser perigosamente enganadora se a inventividade não for reconhecida.

* O livro foi publicado com o título L’Arétin d’Augustin Carrache, ou recueil de postures érotiques, com gravuras do artista Jacques Joseph Coiny.

** Os «Cinco Bons Imperadores» foram Nerva, Trajano, Adriano, António Pio e Marco Aurélio.

*** Agripina, sucessora de Messalina, por exemplo, escreveu uma autobiografia. Embora não tenha chegado até nós, deve ter sido uma leitura fascinante (ainda que tendenciosa).