INTRODUÇÃO

Pretendo mudar a vossa perspetiva sobre o mundo. Mais especificamente, pretendo mudar a vossa forma de ver o mapa do mundo, centrando a vossa atenção na parte azul que cobre 70% da imagem e passando as cores telúricas para segundo plano. Esta mudança de ênfase da terra para o mar faz com que muitas tendências e padrões da história mundial se destaquem de modo único. Antes do desenvolvimento da locomotiva, no século XIX, a cultura, o comércio, as epidemias e os conflitos deslocavam-se mais depressa por mar do que por terra. A abertura das rotas marítimas resultou ocasionalmente em transformações imediatas, mas o fenómeno mais frequente foi lançar as bases do que depois foi erroneamente interpretado como mudanças súbitas. O melhor exemplo são as redes comerciais do oceano Índico, as mais antigas das quais foram inauguradas há, pelo menos, quatro mil anos por navegadores que viajaram entre a Mesopotâmia e os estuários do rio Indo. No princípio da era cristã, há dois mil anos, o subcontinente indiano era ponto de partida e destino para os mercadores e mendicantes do Mar Arábico e do golfo de Bengala. Estas atividades estão praticamente ausentes dos registos escritos, nos quais não consta qualquer figura comparável a Gilgamesh ou a Ulisses, e, apesar do conjunto cada vez maior de provas arqueológicas, continuam a ser quase ignoradas. Por conseguinte, a chegada posterior ao Sudeste Asiático de comerciantes muçulmanos do subcontinente indiano e do Sudoeste Asiático, de mercadores chineses de diversas religiões e dos cristãos portugueses parecem surpresas históricas. Os Portugueses nunca tinham estado nos mares das monções, que se estendem da África Oriental à Coreia e ao Japão, mas os outros eram herdeiros de tradições antigas e interligadas de navegação e comércio que ligavam, havia muito, a África Oriental ao Nordeste Asiático. Este livro apresenta muitos exemplos similares de regiões marítimas que foram discretamente exploradas antes de os acontecimentos as colocarem na ribalta histórica.

Antes de abordarmos uma história marítima do mundo — como autores ou leitores —, devemos fazer duas perguntas: O que é a história marítima? O que é a história mundial? As respostas têm tanto que ver com a perspetiva como com a temática. A história mundial é a investigação sintética de interações complexas entre pessoas com antecedentes e orientações distintos. Por conseguinte, transcende o enfoque mais tradicional dos historiadores em comunidades distintas em termos políticos, religiosos ou culturais, consideradas primariamente a uma escala local, nacional ou regional. A história marítima, enquanto tema de investigação interdisciplinar e inter-regional, é um ramo da história mundial que cobre tópicos óbvios como a construção naval, o comércio marítimo, as explorações oceânicas, as migrações humanas e a história naval. No entanto, considerada como perspetiva, a premissa da história marítima é que o estudo dos acontecimentos que ocorrem na água ou que com ela estão relacionados oferece uma visão singular dos assuntos humanos. Por conseguinte, o historiador marítimo recorre a disciplinas como a arte, a religião, a linguística, o direito e a economia política.

Uma forma alternativa e, talvez, mais simples de abordar a pergunta «o que é a história marítima?» é respondendo à sua pergunta gémea: O que é a história terrestre? — a visão a partir da terra é a nossa perspetiva-padrão. Imaginemos um mundo de pessoas presas à terra. A antiga diáspora grega teria tido um carácter diferente e teria sido empurrada para outras direções sem navios para conduzirem os Eubeus, os Milésios e os Atenienses a novos mercados e para sustentarem os contactos entre as colónias e as pátrias. Sem o comércio marítimo, nem os Indianos nem os Chineses teriam exercido a sua influência substancial no Sudeste Asiático, e a região teria sido poupada aos sobrenomes de «Indochina» e «Indonésia» (literalmente, «Ilhas Indianas») — aliás, estas nem sequer teriam sido povoadas. Os vikings da Escandinávia medieval não se teriam espalhado tão depressa nem tão extensivamente como fizeram, o que lhes permitiu alterar a paisagem política da Europa medieval. E sem marinheiros, a história dos últimos cinco séculos teria de ser imaginada de novo. A época da expansão marítima ocidental resultou de atividades marítimas sem as quais a Europa poderia ter continuado a ser um canto marginalizado da massa continental euroasiática, de costas para o que a Europa latinizada chamou Mare Tenebrosum e os falantes de árabe Bahr al-Zulamat, o «mar da escuridão». Os Mogóis, Chineses e os Otomanos teriam ofuscado as entidades políticas divisivas e sectárias da Europa, que não teriam conseguido colonizar ou conquistar as Américas, nem desenvolver o tráfico de escravos transatlântico, nem garantir uma presença imperialista na Ásia.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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No século passado, assistimos a uma mudança colossal na abordagem à história marítima. A história marítima era um domínio reservado aos antiquários, cujos especialistas se centraram em «navios e barcos antigos, modelos de navios, imagens, etnografia, questões lexicográficas e bibliográficas e bandeiras», e cujo enfoque recaía na conservação e interpretação dos materiais facilmente disponíveis. Por conseguinte, a atenção dos historiadores foi direcionada para a história marítima e naval europeia, mediterrânica e norte-americana. Os feitos marítimos foram sempre vistos como um fenómeno peculiarmente europeu que só ganhou uma verdadeira importância em 1492, com a histórica viagem de Colombo para as Américas. Por conseguinte, a história traduziu-se, direta e exclusivamente, na explicação de como os Europeus usaram a sua tecnologia marítima e naval superior para se imporem ao resto do mundo.

Usar a «idade clássica da navegação à vela» da Europa, nos séculos XVI–XVIII, como modelo para o resto da história marítima é sedutor, mas desaconselhável. Embora as mudanças globais provocadas pelos navegadores e a dinâmica da Europa marítima tenham uma importância inquestionável para a compreensão do mundo a partir de 1500, as realizações marítimas foram mais dispersas e os seus efeitos mais complicados do que essa narrativa sugere. A supremacia europeia foi tudo menos inevitável. Mais importante ainda, a concentração nos últimos cinco séculos da Europa distorceu a nossa interpretação do registo marítimo de outros períodos e lugares, bem como a nossa apreciação da sua relevância para o progresso da humanidade. Não existe nenhum paralelo para a relação quase simbiótica entre a política comercial e naval — à qual poderíamos chamar «complexo naval-comercial» — característica da expansão marítima europeia. Não existe nada semelhante na Antiguidade Clássica, na Ásia ou na Europa, antes do Renascimento, e os laços estreitos entre as estratégias navais nacionais e o comércio marítimo prevalecentes na época em causa praticamente desapareceram no século XXI. O período do domínio marítimo da Europa Ocidental foi crucial, mas é uma bitola enganadora para analisar outras eras.

Esta visão mundial eurocêntrica foi reforçada pela crença generalizada entre os historiadores ocidentais de que a raça era uma explicação suficiente para «a desigualdade das sociedades humanas». No século XIX e no princípio do século XX, a manifestação material mais evidente da superioridade racial foi o poderio marítimo e a capacidade dos Europeus de alargarem a sua hegemonia para a criação e manutenção de impérios coloniais ultramarinos a meio mundo de distância. Este fenómeno deu origem à generalização anistórica de que existem povos marítimos, como os Gregos e os Britânicos, e povos não-marítimos, como os Romanos e os Chineses. Tais considerações dissimulam realidades complexas. Dito de outro modo, o grau em que diferentes nações usam o automóvel ou o avião depende da economia, da industrialização, da geografia e de outros fatores, e não passa pela cabeça de ninguém atribuir a utilização do automóvel ou do avião a tendências raciais ou étnicas. Em reação a este pressuposto de uma superioridade marítima europeia ou norte-americana inata, vários autores procuraram restabelecer o equilíbrio escrevendo histórias marítimas explicitamente etnocêntricas ou nacionalistas acerca dos não-europeus. Estas correções valiosas revelaram escritos e outras provas indígenas anteriormente inexplorados da atividade marítima de povos considerados com pouco ou nenhum legado marítimo, mas tenderam a criar as suas próprias versões de excecionalismo marítimo.

Quando esta tendência começou a desaparecer, Fernand Braudel, com o magistral O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na Época de Filipe II (1949), inaugurou uma nova abordagem à história marítima. Os historiadores marítimos que procuram ver para lá dos paradigmas nacionais, inspirados pela brilhante análise de Braudel da interação entre a geografia, a economia, a política e as histórias militar e cultural, aceitaram como válido tratar os mares e as bacias oceânicas como unidades coerentes de estudo, tendo surgido, nos últimos cinquenta anos, uma superabundância de livros sobre oceanos e mares específicos. Este exercício elucidativo permite-nos considerar as ligações interculturais e transnacionais sem referências constantes à ficção mutável das fronteiras políticas. Porém, ao mesmo tempo, corremos o risco de substituir um conjunto de fronteiras terrestres arbitrárias por uma divisão igualmente arbitrária do oceano mundial. Não existe muito consenso sobre a divisão das águas do mundo em conjuntos diferenciados, denominados baías, golfos, estreitos, canais, mares e oceanos, e, na prática, os marinheiros raramente aceitam distinções definidas à distância. Um antigo epigrama grego reconhece com uma simplicidade perfeita a unidade do oceano mundial:

Todo o mar é mar […]
Reza, se quiseres, por um bom regresso a casa,
Mas Aristágoras, aqui sepultado, descobriu
Que o oceano se comporta como um oceano.

Este livro procura examinar as formas como as pessoas entraram em contacto umas com as outras através dos mares e dos rios e como disseminaram os seus produtos agrícolas e manufaturados e os seus sistemas sociais — da língua à economia e à religião. Não ignoro os momentos cruciais da história marítima, mas procuro apresentá-los num contexto mais lato para mostrar que as mudanças de abordagem aos sistemas marítimos podem ser vistas como indicadoras de mudanças maiores para além do mar. Centro-me em alguns temas: como a atividade marítima alargou as esferas comerciais que partilhavam certos tipos de conhecimento — de mercados e práticas comerciais ou de navegação e construção naval; como a difusão ultramarina das línguas, das religiões e das leis facilitou as ligações inter-regionais; e como os governantes e os governos exploraram a atividade marítima através da tributação, da proteção comercial e de outros mecanismos para consolidarem e aumentarem o seu poder.

Delineei esta história como uma narrativa para mostrar, região a região, o processo intencional pelo qual as regiões marítimas do mundo foram ligadas. Porém, esta não é exclusivamente uma história da água salgada. A atividade marítima inclui não só viagens no mar alto e costeiras, mas também a navegação interior. Os ilhéus poderão ter razões óbvias para se fazer ao mar, mas a exploração de rios, lagos e canais foi crucial para o crescimento de países com grandes territórios continentais. O centro da América do Norte tornou se economicamente produtivo devido à sua acessibilidade pelos rios São Lourenço e Welland, pelos Grandes Lagos e pelo rio Mississípi e seus afluentes. Nenhum destes corredores teria concretizado o seu potencial sem o desenvolvimento de tecnologias marítimas — o motor a vapor, no caso do Mississípi, e as comportas e represas, no caso dos Grandes Lagos.

A geografia da água, do vento e da terra molda o mundo marítimo de formas evidentes, mas a atividade marítima só se torna uma força determinante na história com a combinação certa de condições económicas, demográficas e tecnológicas. No século XV, poucos observadores terão imaginado a prosperidade futura de Espanha e Portugal devido às peregrinações dos seus navegadores no Atlântico Oriental. Ao demandarem uma rota para as especiarias da Ásia, deram com as Américas, uma fonte de riqueza incalculável sob a forma de ouro e prata, de matérias-primas para os mercados europeus, de novos mercados para os fabricantes europeus e de territórios — «virgens», na perspetiva dos Europeus — para o cultivo de culturas recém-descobertas ou transplantadas, como o tabaco e o açúcar. A intervenção papal nas disputas das terras entre portugueses e espanhóis resultou numa série de bulas e tratados que dividiram a navegação do Atlântico e do Índico não-cristãos entre Portugal e Espanha, contribuindo para explicar a razão pela qual a maioria dos povos das Américas do Sul e Central se compõe de católicos falantes de espanhol ou português.

A perspetiva marítima dificulta a nossa compreensão da expansão dos Estados Unidos «para o Oeste». A Califórnia tornou-se um estado em 1851, dois anos depois da descoberta de ouro em Sutter’s Mill, quando o território era praticamente desconhecido para os americanos do Leste e o número de cidadãos dos Estados Unidos na costa do Pacífico era de poucos milhares. Graças à capacidade extraordinária da marinha mercante americana, dezenas de milhares de pessoas chegaram a São Francisco de navio, um modo de transporte mais rápido, mais barato e mais seguro do que a viagem transcontinental, apesar de a distância coberta ser mais do que quatro vezes maior. Os Estados Unidos conquistaram o interior do continente — os atuais «estados sobrevoáveis», mas que na altura se poderiam apropriadamente designar por territórios circum-navegáveis — com um movimento de tenaz a partir de ambas as costas e não através de um movimento terrestre a partir do Leste.

Livro: “O Mar e a Civilização - Uma história marítima do mundo”

Autor: Lincoln Paine

Editora: Edições 70

Data de Lançamento: 27 de julho de 2023

Preço: € 39,90

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Contudo, a maior parte dos autores tende, por padrão, a celebrar os navios, marinheiros, portos e comércios isolados do mundo terrestre, ou a reconhecê-los apenas para explicar acontecimentos particulares, como a chegada da Peste Negra ao norte de Itália, as viagens dos vikings aos mares Negro e Cáspio (por rio) e à Europa Ocidental e à América do Norte (por mar), as invasões mongóis do Japão e de Java, no século XIII, ou muitas outras diásporas de pessoas, flora e fauna. No entanto, quando situamos a nossa relação coletiva com os oceanos, mares, lagos, rios e canais no centro da narrativa histórica, vemos que uma grande parte da história humana foi moldada pelo acesso ou falta de acesso das pessoas a águas navegáveis. Por exemplo, tendo em conta a impressão enraizada dos ocidentais não-muçulmanos sobre o islão como uma religião de nómadas do deserto, é notável que o país com a maior população de muçulmanos ocupe o maior arquipélago do mundo. A Indonésia não tem camelos, mas tem muçulmanos e hindus — em especial, na ilha de Bali —, o que é particularmente curioso quando pensamos nas proibições hindus de ir para o mar. Se estas duas religiões estão tão ligadas à terra, como conseguiram atravessar o oceano? Será que mudaram com a passagem do tempo? Ou será que as nossas impressões sobre a sua natureza estão erradas? Segundo o Alcorão: «Não viste que o navio corre no mar com o auxílio de Deus, que, assim, vos ensina parte dos Seus mistérios? Nisso há certamente sinais para todos os perseverantes, os agradecidos.»

Os «sinais» indicam que a adaptação tecnológica e social da humanidade à vida na água — para comércio, guerra, exploração ou migração — tem sido uma força motriz na história humana. Todavia, muitas histórias têm relutância em aceitar isto. Em Armas, Germes e Aço: Os Destinos das Sociedades Humanas, Jared Diamond mal dedica uma página à «tecnologia marítima», que para ele significa as embarcações e não a capacidade de navegar nem nenhuma outra competência associada. O que isto tem de curioso é que o tráfego marítimo foi central para a difusão de muitas das tecnologias, ideias, plantas e animais que o autor discute com tanto detalhe, não só entre continentes, mas também nos continentes e ao seu redor. Ao ignorar praticamente os aspetos marítimos da sua história, Diamond ignora essencialmente os meios de transmissão e, nos casos de algumas invenções muito importantes, as coisas transmitidas.

Noutro exemplo, J. M. Roberts, autor de Breve História do Mundo, diz que a sua narrativa é «a história dos processos que transportaram a humanidade das incertezas e perigos da vida primitiva e da vida pré-civilizada para as incertezas e perigos muito mais complexos e muito diferentes de hoje […] Por conseguinte, o critério para a inclusão de dados factuais foi a sua importância histórica, ou seja, a sua importância efetiva para os processos principais da história e não o interesse intrínseco ou algum tipo de mérito». Roberts refere a navegação interior e marítima e sublinha a importância da primeira, por exemplo, na colonização russa da Sibéria, no século XVII, mas avança para os fins sem mencionar os meios nem os processos. Roberts refere que, entre Tobolsk e o porto de Okhotsk, no Pacífico, a 3000 milhas de distância, existiam apenas três portagens. Não fala, contudo, dos navios usados, nem da fundação de povoações intermédias, nem do impacto do comércio fluvial no desenvolvimento da Sibéria. E nem sequer menciona os rios, o que equivale a falar da rota fluvial de Pittsburgh para Nova Orleães sem mencionar o rio Ohio ou o Mississípi.

Se Diamond ou Roberts tivessem escrito há um século, é provável que as suas obras tivessem incorporado muito mais conteúdos marítimos. O facto de não ser assim reflete as mudanças na perceção pública do mundo marítimo, dado que as marinhas mercante e de guerra deixaram de ser tão atrativas como quando os paquetes e cargueiros oceânicos enchiam os cais de Manhattan, Hamburgo, Sydney e Hong-Kong. No princípio do século XXI, os navios e as companhias de navegação são o tecido da globalização. Os navios transportam cerca de 90 % do comércio mundial e o número de navios oceânicos triplicou nos últimos cinquenta anos. No entanto, a natureza da navegação causou a transferência dos terminais de carga para locais afastados das cidades portuárias tradicionais, e uma percentagem crescente das frotas mercantes mundiais navega com bandeiras de conveniência — ou seja, os armadores, na demanda de menos regulação e impostos, registam os navios em países que não são os seus. Por conseguinte, ao contrário do que acontecia no século XIX e no princípio do século xx, os navios deixaram de ser emblemas do progresso e do prestígio nacionais.

Embora o avião tenha substituído o navio nas rotas de passageiros mais longas — transatlântica, entre a Europa e os portos «a oriente do Suez» ou transpacífica —, mais de 14 milhões de pessoas fazem anualmente um cruzeiro, um número muito superior ao transportado pelos paquetes antes de o avião a jato os ter tornado obsoletos, em meados do século passado, quando os nomes das companhias de navegação eram tão conhecidos (e muito mais respeitados) como são hoje os das companhias aéreas. A ideia de as pessoas irem para o mar por prazer era quase impensável há 150 anos. O sector dos cruzeiros, já para não falar no dos iates e da navegação recreativa, deve o seu crescimento a mudanças na economia e na tecnologia, a movimentos de reforma social que melhoraram as condições amiúde miseráveis dos passageiros e das tripulações e a alterações nas atitudes em relação ao meio ambiente marinho. Estes fatores também deram origem ao aparecimento de uma apreciação consciente do mar na pintura, na música e na literatura, e estabeleceram as condições para o interesse das pessoas pelo mar como espaço histórico interpretado através de museus, filmes e livros.

De facto, vivemos numa era profundamente influenciada pela atividade marítima, mas a nossa perceção da sua importância mudou quase 180o em duas ou três gerações. Vemos prazer onde os nossos antepassados viam perigo, e saboreamos os frutos do comércio marítimo sem nos darmos minimamente conta da sua existência, mesmo quando vivemos em cidades que com ele enriqueceram. Ao considerarmos o rumo da história humana, devemos ter em conta esta mudança e recordar que a nossa relação coletiva com a atividade marítima sofreu uma metamorfose profunda em apenas meio século.

A ideia para este livro começou a tomar forma quando eu estava a escrever Ships of the World: An Historical Encyclopedia, que é essencialmente um conjunto de biografias que procuram explorar as razões da fama ou infâmia de determinados navios e situá-los num contexto histórico mais lato. Algumas destas histórias transitaram inevitavelmente para esta obra. Não obstante, apesar de os navios serem integrais na narrativa, este livro tem menos que ver com navios do que com as suas cargas: pessoas e a sua cultura, as suas criações materiais, os seus produtos agrícolas e rebanhos, os seus conflitos e preconceitos, as suas expectativas e memórias. Ao considerar a escrita do livro, guiei-me pelas palavras do historiador naval Nicholas Rodger, que escreveu: «Uma história geral naval teria imenso valor, e, mesmo que a primeira pessoa que a tentar escrever falhe redondamente, terá o mérito de estimular outros académicos.» O âmbito desta obra vai muito além da história naval, o que implica mais riscos, mas espero que, pelo menos, inspire novas explorações desta dimensão fascinante do nosso passado comum.