PARTE II

OS PORTUGUESES DA LÉGION ÉTRANGÈRE

1940‐1945

«Na noite de Natal, lampejos sombrios atravessavam o olhar dos legionários. Sentíamos, por vezes, que eles estavam desamparados, mais silenciosos do que de costume, prisioneiros da recordação de um berço, de uma mão materna que se aproximava para acalmar a febre de uma criança ou do perfume de cabelos que pertencem a um amor longínquo.

Quando os homens morriam em combate, era preciso reunir os seus haveres e prevenir a família. Foi nessa altura que descobri coisas que guardo preciosamente no fundo de mim mesmo, onde ninguém virá perturbá‐las. Elas hão‐de morrer comigo. Apenas o silêncio é digno de certas tragédias.»

Hélie Denoix de Saint Marc

CAPÍTULO VIII

LA RETIRADA

Milhares de fugitivos avançam num silêncio pesado, entre‐cortado pelo choro ocasional de uma criança ou o gemido dos feridos, aqui perto, e pelo eco da artilharia pesada e dos bombardeamentos aéreos, ao longe, abafado pela neve que se agarra aos Pirenéus, desde os cumes até ao caminho que o cortejo de refugiados vai transformando num lamaçal, apesar dos flocos que continuam a cair.

Joaquim dos Santos – ou será Waldemar Leónidas? – é um jovem alto para a época – um metro e 72 cm – magro, de cabelo negro e olhos castanhos. Por baixo do velho capote com que cobre a cabeça e o tronco tem frio, muito frio. Neste mês de Fevereiro de 1939, o vento que sopra chega gelado à fronteira franco‐espanhola de La Junquera/Le Perthus. Apesar do cansaço, bate com os pés no chão e com as mãos uma na outra, para se aquecer. Pode ser um anarquista dos que foram perseguidos pelos comunistas espanhóis, ou um comunista dos que foram perseguidos pelos anarquistas ou um simples socialista ou democrata republicano perseguido pelas tropas franquistas.

No caso de Waldemar Leónidas, o testemunho dos seus familiares aponta para que tivesse sido um comunista, em Portugal, e um anarquista, em Espanha. Mas uma coisa é certa. Para os Franceses, é um rojo, um vermelho que foge do avanço vitorioso das tropas franquistas. O general Franco acabou de ganhar a guerra contra a República e prepara‐se para instalar em Espanha uma ditadura que vai durar 35 anos, até Novembro de 1975, data da sua morte.

A mulher à sua frente tropeça, cai, e arrasta na queda o filho pequeno que segura pela mão. A mãe e o filho levantam‐se em silêncio e tornam a ocupar o seu lugar na longa fila que se estende até ao posto fronteiriço, serpente sinuosa e escura que contrasta com a brancura da neve. Ao seu lado, um refugiado leva no punho esquerdo fechado um pouco da terra de Espanha e os gendarmes têm de lhe dar algumas coronhadas para que largue a espingarda a que continua agarrado.

Maria João Lopo de Carvalho junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 13 de dezembro, uma quarta-feira, pelas 21h00. A autora traz "Os Cinco e o quadro desaparecido", editado pela Oficina do Livro.

Para se inscrever no encontro basta preencher o formulário que se encontra neste link. No dia do encontro receberá um e-mail com todas as instruções para se juntar à conversa.

"Os Cinco" é uma das mais conhecidas e bem-sucedidas séries literárias para crianças e jovens da autora britânica Enid Blyton, publicada e traduzida em vários países. Com o passar dos anos, deu origem a outras histórias, com as mesmas personagens, escritas por diferentes autores noutros países, como Sarah Bosse (Alemanha) e Claude Voilier (França).

Esta série literária de aventuras, escrita por Blyton entre 1942 e 1963, tem agora continuidade em Portugal pela mão da autora Maria João Lopo de Carvalho, pela Oficina do Livro (grupo Leya), a editora que detém os direitos e publicou os 21 volumes da coleção.

Maria João Lopo de Carvalho tem 61 anos, foi professora de Português e Inglês, criou uma escola de língua inglesa, trabalhou em publicidade e na Câmara Municipal de Lisboa e tem mais de 70 livros publicados, entre obras para adultos e para os mais novos.

Já no posto fronteiriço, um homem tenta explicar aos gendarmes e aos gardes mobiles que o velho senhor doente que se agarra a ele é «o grande poeta António Machado, o Paul Valéry espanhol». Os guardas não querem saber de poesia ou não percebem a algaraviada do refugiado, onde se mistura o castelhano e o catalão, com uma ou outra pincelada de francês, mas o comissário de polícia põe o seu carro pessoal à disposição de Machado para que vá até à estação de Cerbère. António Machado morreria poucos dias depois, a 22 de Fevereiro de 1939.

Joaquim dos Santos/Waldemar Leónidas atravessou a fronteira nessa altura, isso é certo. Como certo é que cinco anos mais tarde faria parte dos primeiríssimos poucos sol‐ dados a libertar Paris, a 24 de Agosto de 1944, vinte e quatro horas antes da chegada do resto do exército francês e dos Aliados. Certo também é que continuou o combate contra os nazis durante a campanha de libertação da França, altura em que é gravemente ferido. Mas quase todo o resto da sua fascinante vida, antes e depois de chegar a França, está envolto numa zona de sombra, a começar pelas razões que o levaram a mudar de nome.

Parte desse mistério é aqui revelado por Joana Algarvio, que o conheceu pessoalmente quando era ainda criança e conseguiu reunir alguma documentação sobre ele nos últimos anos. «Gostava de o homenagear porque era uma pessoa singular e [a sua] bravura e coragem não deveriam ficar esquecidas na história.»

Começando pelo princípio.

Joaquim dos Santos nasceu em Alcântara, Lisboa, no dia 28 de Janeiro de 1919. De acordo com Joana Algarvio, de cujos pais ele foi padrinho de casamento, Joaquim dos San‐ tos, numa data que se desconhece, «fugiu do regime ditatorial português, por ser comunista, e foi para Espanha, onde ingressou num movimento anarquista e se envolveu na Guerra Civil espanhola». Teria entre 17 e 20 anos, considerando que essa guerra começou em Julho de 1936 e acabou em Abril de 1939.

O movimento em causa deve ter sido a célebre Federação Anarquista Ibérica (FAI), embora seja invulgar e até surpreendente que um militante comunista tenha aderido à FAI, levando em conta a animosidade que existiu entre os dois movimentos durante os oito anos que durou a República espanhola, de 1931 a 1939.

Chegado a França, presume‐se que tenha tido o mesmo destino que a generalidade dos refugiados do sexo masculino e que tenha ido para um dos vários campos onde as autoridades francesas parquearam os rojos, na região dos Pirenéus, junto ao mar Mediterrâneo. Meses mais tarde, quando a França declara guerra à Alemanha, Joaquim dos Santos oferece‐se como voluntário para o exército francês no centro de recrutamento de Perpinhão, no sul do país.

Integrado num dos três RMVE ou na Legião Estrangeira francesa, com a matrícula 96.375, declara nessa altura que nasceu na Galiza, em Espanha. A razão é simples e foi válida para vários outros portugueses: se, de um modo geral, a França tratava mal os republicanos espanhóis, tratava ainda pior os estrangeiros que tinham combatido nas Brigadas Internacionais. Esses eram considerados ainda mais rojos que os outros rojos e, por conseguinte, ainda mais indesejáveis. Daí que muitos tenham optado pela artimanha de dizer que eram espanhóis, apostando na ausência de documentos de identidade e na ignorância linguística das autoridades francesas.

O rasto de Joaquim dos Santos perde‐se depois na massa anónima dos cerca de mil portugueses que foram voluntários do exército francês. Sabe‐se apenas que sobreviveu às batalhas contra o exército alemão em França ou na Noruega porque voltamos a encontrá‐lo no dia 30 de Julho de 1943, em Argel.

De acordo com o que contou a Joana Algarvio, estaria preso na capital argelina, não se sabe porquê, e nesse dia 30 de Julho de 1943 alista‐se no Corps Franc d’Afrique e é afectado à 9.ª Companhia. Em 24 de Julho de 1943, integra as Forças Francesas Livres (FFL), do general de Gaulle.

A hipótese de estar preso em Argel é contrariada por uma informação que consta da lista das FFL fornecida pela própria Fondation Charles de Gaulle. Aí se lê que Leónidas, apelido Waldemar, nascido a 28 de Janeiro de 1919, em Portugal, aderiu às Forças Francesas Livres em Junho de 1943, na Tunísia. Assim sendo, só depois terá ido para a Argélia.

Livro: "Os Soldados Fantasma"

Autor: José Manuel Barata-Feyo

Editora: Clube do Autor

Data de Lançamento: 23 de novembro de 2023

Preço: € 18,00

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A Fundação Charles de Gaulle cita o nome de 1177 homens e mulheres que combateram nas FFL. Não se sabe de acordo com que critério foi feita a lista em causa, mas alguma razão haverá para que seja dado a esses nomes um particular destaque de entre as várias dezenas de milhares de combatentes que fizeram parte das FFL. Na lista consta o nome de vinte e oito portugueses e portuguesas, alguns dos quais já referenciados numa precedente obra sobre os que combateram os nazis na França ocupada. Waldemar Leónidas é um deles.

«Algures», entre o momento em que sai de Espanha e se refugia em França, Joaquim dos Santos «terá mudado de nome para Waldemar Leónidas», conta Joana Algarvio. «É algo que sempre esteve envolvido em grande secretismo, no plano familiar. Aquando das nossas visitas a Paris, não podia tratá‐lo por Joaquim, tendo sido advertida várias vezes, quando era criança, para não o fazer. Estes pormenores, aliados ao facto de ter um escritório nos Invalides e de recebermos cartas suas dos «quatro cantos» do mundo, sempre fizeram com que eu achasse que havia algo mais.»

Chamemos‐lhe, pois, Waldemar Leónidas, senhor de uma vida singular mesmo naqueles anos conturbados. Os documentos militares certificam que ele está em Argel no dia 30 de Junho de 1943. Resta desmontar o quebra‐cabeças do que o conduziu até ali.

Em 1939, em França, Waldemar Leónidas alistou‐se como voluntário em Perpinhão e foi quase certamente integrado num dos três RMVE constituídos na altura. O facto de se ter apresentado em Perpinhão exclui a hipótese de ter sido voluntário de uma das três unidades então constituídas pela Legião Estrangeira francesa, os 11.º e 12.º REI ou num outro Regimento baptizado com o nome de 13.ª Demi‐brigade de la Légion (DBLE) – Meia‐Brigada da Legião Estrangeira –, na medida em que a Legião não recrutava na França metropolitana, mas sim na África do Norte.