SAPO24: Que retrato faz da Ucrânia nos dias que correm?
Embaixadora Ohnivets Inna Vasylivna: Depois de séculos de luta, a Ucrânia conquistou a sua independência apenas em 1991. Em 2004, a «Revolução Laranja» marcou o começo de uma mudança notória no pensamento democrático na Ucrânia e deu origem, assim, ao nascimento da nação política ucraniana.
A Revolução da Dignidade, mais conhecida por Euromaidan (fim do ano 2013 – início do ano 2014), mostrou o desejo firme da Ucrânia de se tornar uma parte do Ocidente, ou seja da Europa unida.
Como é sabido, desde então a Ucrânia tem lutado contra agressão militar russa no seu Leste, bem como tem tentado, através dos meios diplomáticos, libertar a sua península da Crimeia, ocupada pela Rússia.
Apesar disso, desde 2014, a Ucrânia também tem implementado as reformas, em particular na economia, esferas judicial e policial, de defesa, já tendo atingido um progresso significativo.
Diria, que hoje a Ucrânia é nova. É um país democrático e de direito que se torna cada vez mais atrativa para o investimento internacional e cooperação económica, em particular.
A primeira participação da Ucrânia na Eurovisão data de 2003. Porquê a estreia apenas nesse ano e o que motivou a participação? Há alguma razão de fundo?
É verdade que a Ucrânia, representada pelo cantor Oleksandr Ponomarev com a canção “Hasta la Vista", estreou-se no Festival em 2003. A Eurovisão é um projeto prestigioso. Sendo um país rico em talentos, a Ucrânia não podia deixar de participar. No ano seguinte, a cantora ucraniana Ruslana ganhou a Eurovisão-2004 em Istambul (Turquia) com a canção “Wild Dances”. Assim, a Ucrânia sediou o 50.º Festival Eurovisão da Canção em 2005.
Desde 2003, o país participou 13 vezes e venceu duas, tornando-se no primeiro país da Europa de leste a conseguir este feito. Porém, em 2015 não enviou nenhum concorrente. O que esteve na razão dessa decisão?
Em 2015 a Ucrânia não enviou o seu representante devido à complicada situação financeira causada pela guerra híbrida – militar e informativa — com a Rússia. Infelizmente, por este motivo, precisámos de gastar muito dinheiro, em primeiro lugar, para proteger a Ucrânia contra a agressão militar russa. Por exemplo, o orçamento militar da Ucrânia aumentou de 960 milhões de euros em 2014 para 1.6 mil milhões de euros em 2015.
Esta é a segunda vez na história da Eurovisão que a Ucrânia é o país anfitrião do festival. Qual a importância — política, económica e cultural — para o país em receber um evento como este?
Como eu já disse, a Eurovisão é um projeto prestigioso, e este ano é um dos maiores eventos na agenda cultural da capital ucraniana. A Eurovisão não é apenas as meia-finais e o final do concurso, mas um leque de shows (como os ensaios) e de outros eventos culturais. Claro que ser um país anfitrião de um evento deste tipo é muito importante quer politicamente, quer economicamente, quer culturalmente.
A votação no festival transcende, muitas vezes, a esfera artística e pode ser analisada com a lupa da geopolítica. Que países tradicionalmente votam na Ucrânia e em que países a Ucrânia deposita o voto? Que razões encontra para essa preferência?
Apesar de alguns peritos dizerem que nos últimos dez anos a Eurovisão deixou de ser apenas um concurso de canção e que há muita política nela, parece-me que os países continuam a votar de acordo com as suas preferências musicais. Importa, pelo menos, mencionar a votação do ano passado. A Ucrânia recebeu 12 pontos de júri de 11 países tais como a Polónia, a Letónia, a Eslovénia, a Geórgia, Israel, a Moldávia, a Dinamarca, a Sérvia, a Macedónia, a Bósnia e Herzegovina e São Marino. Não vejo nenhuma geopolítica nisso.
Mas é compreensível que, enquanto estamos em guerra com a Rússia, o júri da Ucrânia não dar nenhum ponto à Rússia e vice-versa. Porém, de acordo com os resultados da votação de espetadores, a Ucrânia recebeu 10 pontos da Rússia, dando 12 pontos ao cantor russo.
E como costuma ser o voto dos cidadãos ucranianos a viver em Portugal?
Acho que os cidadãos ucranianos a residirem em Portugal costumam votar a favor dos concorrentes ucranianos. Parece-me que é muito bom que, apesar de viverem no exterior, os cidadãos apoiarem o seu país de origem, quer através da votação na Eurovisão, quer através do envio de apoio humanitário aos seus compatriotas a lutarem pela integridade territorial e pela soberania da sua Pátria, como no caso dos cidadãos ucranianos.
Em 2016, a canção, que venceu a edição do festival, “1944", cantada pela artista Jamala, recebeu algumas críticas pela mensagem considerada política, algo que viola as regras do festival. Quer explicar-nos do que fala a canção? E qual a sua opinião sobre a polémica.
Sendo uma tártara da Crimeia, a península ucraniana que desde 2014 tem sido ilegalmente ocupada pela Rússia, a Jamala venceu com a canção “1944”. [O tema] é muito simbólico para os tártaros da Crimeia. É um facto conhecido que o poder soviético decidiu a expulsão total do povo tártaro da Crimeia, iniciando a deportação a 18 de maio de 1944. Apenas em 1989 o parlamento soviético reconheceu-a como ilegal e criminal. Durante a primeira onda da deportação (de 18 a 20 de maio), 180.014 tártaros foram expulsos da sua terra. Em 2014, o dia 18 de maio foi proclamado pelo Presidente da Ucrânia P.Poroshenko como o Dia da Luta pelos Direitos dos Tártaros da Crimeia.
Sendo muito dramática, a canção “1944” chama a atenção do mundo para os crimes contra a humanidade do passado. Como disse a própria Jamala, ao escrever a canção, ela foi inspirada pelas histórias sobre a tragédia vivida pelo povo tártaro contadas pela sua avó que também tinha sido deportada da Crimeia. Como se vê, a canção não tem nada a ver com política.
“1944” e a polémica que envolve a Ucrânia e a Rússia quanto à edição deste ano do festival têm um tema em comum: a Crimeia. As autoridades ucranianas decidiram impedir a entrada no país da representante russa no festival da Eurovisão deste ano. O que motivou essa decisão?
A Crimeia é matéria muito sensível para a Ucrânia. Como as regiões autónomas da Madeira e dos Açores são parte integrante do território português, a República Autónoma da Crimeia é parte integrante do território ucraniano. Porém, a 20 de fevereiro de 2014 a Rússia invadiu a península da Crimeia pelas suas forças de uniforme sem insígnia, ocupando-a e, após o referendo ilegal a 16 de março do mesmo ano, anexou ilegalmente a península ucraniana. A propósito, o Presidente da Federação Russa reconheceu a participação das suas forças armadas na ocupação da península ucraniana, afirmando ter dado as ordens ao Ministério da Defesa da Rússia para deslocar as forças especiais, fuzileiros navais e tropas aerotransportadas para a península ucraniana. De seguida, as autoridades ucranianas adotaram as regras de entrada e saída do território ucraniano temporariamente ocupado pela Rússia.
Como Yulia Samoylova, a concorrente russa, visitou ilegalmente à Crimeia, violando assim a legislação da Ucrânia, o Serviço de Segurança da Ucrânia proibiu a entrada dela no país durante um período de três anos. A Lei é igual para todos.
Podemos considerar esta uma decisão política?
Claro que não! O motivo da proibição da entrada é exclusivamente a violação da nossa legislação em matéria da entrada na Crimeia.
A decisão seria a mesma se, em vez da participação russa, estivesse em causa a participação de outro país? De Portugal, por exemplo?
Posso dizer-lhe, com absoluta certeza, que a entrada na Ucrânia de qualquer concorrente do Festival, quer português, quer outro, seria proibida se o mesmo violasse a nossa legislação.
Gostaria também de chamar a vossa atenção para o facto de que Yulia Samoilova não é a única cantora russa a quem se proibiu a entrada na Ucrânia devido à violação da legislação ucraniana referida. Essa lista contém cerca de 140 pessoas.
A proibição da participação da representante russa — via satélite, ao vivo e a partir de Moscovo — Yulia Samoylova com a canção "Flame Is Burning” pode ter pesadas sanções no futuro para a Ucrânia. Numa carta citada pela BBC, Ingrid Deltenre, diretora da União Europeia de Radiodifusão, alerta para o facto de a emissora pública ucraniana UAPBC poder “ser excluída de eventos futuros”. Como é que as instituições políticas e as autoridades ucranianas olham para esta posição da organização do festival? O que pode a Ucrânia fazer para inverter esta decisão?
Vamos ver o que acontecerá. Hoje em dia, o Festival está a passar na Ucrânia, o que, na minha opinião, significa que a União Europeia de Radiodifusão compreende a nossa posição em relação ao assunto em causa. Além disso, tal como nos anos anteriores, nomeadamente durante a Eurovisão-2005, a Ucrânia proporciona igualdade de oportunidades a todos os participantes do Festival. Mas o pré-requisito essencial é o respeito da legislação da Ucrânia.
Se a Rússia estivesse realmente interessada em participar na Eurovisão, Moscovo teria enviado outro concorrente que não tivesse violado a legislação ucraniana.
No mesmo documento, a diretora-geral dirigiu-se ainda ao primeiro-ministro ucraniano, Volodymyr Groysman, referindo-se que a proibição da participação terá "um profundo impacto negativo na reputação internacional [da Ucrânia] enquanto nação europeia moderna e democrática". Quer comentar esta afirmação?
Todos os países do mundo têm a sua própria legislação, incluindo a que regula a entrada no seu território nacional. Estou convencida de que, por exemplo, Portugal também proibiria a entrada no seu território por motivos da violação da legislação nacional vigente. Sendo um estado democrático e de direito, a Ucrânia respeita a legislação nacional de outros países, esperando que os façam o mesmo. Acho que isto é um princípio democrático fundamental.
Então, não vejo nenhum impacto negativo na reputação internacional da Ucrânia porque, ao tomar a decisão respetiva, o meu país apenas exigiu o pleno respeito da sua própria legislação. Posso dizer que os nossos parceiros, incluindo Portugal, compreendem isso.
De acordo com um estudo publicado pela eDreams, Portugal é o país com maior crescimento de turistas em Kiev, na semana em que se realiza o Festival Eurovisão. Com um crescimento de 162%, comparativamente igual período do ano passado, Portugal torna-se no sétimo país com maior número de turistas em Kiev. O turismo da Ucrânia tem alguma estratégia para a captação do turismo português? O que tem sido feito a médio e longo prazo para o seu incremento?
É uma estatística bastante impressionante. Avalia-se que o Festival, cuja arena principal foi montada no Centro Internacional de Exposições — um dos maiores centros de exposições da Ucrânia, tendo uma área total de 58 mil metros quadrados —, seja visitado por cerca de 20.000 pessoas e 1.500 jornalistas.
No mundo globalizado em que vivemos, o desenvolvimento do turismo contribui de forma bastante significativa para o desenvolvimento geral do país, em particular para o emprego e para a diversificação económica.
Claro que a Ucrânia não é exceção e toma medidas para desenvolver o turismo.
No ano passado, o Gabinete de Ministros da Ucrânia (o Governo da Ucrânia) aprovou a Estratégia de desenvolvimento do turismo para o período de 2016-2020 cujos objetivos principais são a criação das condições para o desenvolvimento sustentável do turismo e a transformação do turismo numa esfera mais rentável, integrada no mercado global, o que pode acelerar o crescimento económico e ajudar a aumentar o emprego e a modernizar estruturalmente a economia ucraniana.
Se tivesse de fazer um roteiro com cinco coisas obrigatórias que os portugueses não podem deixar de visitar ou fazer na Ucrânia, o que recomendaria?
Na verdade, cinco coisas é pouco porque, devido à sua história milenar, a Ucrânia é um repositório de valiosíssimos objetos, monumentos e obras-primas de interesse histórico e arqueológico. Para além disso, a Ucrânia tem muitos tesouros naturais e culturais devido à sua localização no mapa da Europa.
Cada cidade do país possui a sua própria marca. Por exemplo, a nossa capital, Kiev, é uma das cidades em mais rápido desenvolvimento na Europa e, sem dúvida, uma cidade mágica, com uma história e uma cultura únicas, que comporta em si uma combinação perfeita do melhor que a cultura mundial tem para nos oferecer. Num curto espaço de tempo, Kiev floresceu como uma cidade cheia de alegria e beleza, com grande número de museus, galerias de arte, teatros, salas de concertos, etc. Eu recomendaria aos visitantes portugueses que experimentassem em primeira mão tudo isso, especialmente a beleza da arquitetura das igrejas ucranianas que após séculos chegaram aos nossos dias.
E não se esqueçam de apreciar a cozinha ucraniana — é muito deliciosa.
Quer deixar alguma mensagem à delegação portuguesa representada por Salvador Sobral e pela canção ‘Amar pelos Dois’?
Boa sorte em Kiev! Que Salvador Sobral traga o prémio para casa! Espero que Salvador e a sua equipa, bem como os fãs portugueses, gostem da nossa capital.
Salvador Sobral representa hoje Portugal, com a música "Amar pelos dois", na primeira semifinal da edição deste ano do Festival Eurovisão da Canção. Em cada semifinal – a segunda realiza-se na quinta-feira – participam concorrentes de 18 países. A final é disputada no sábado por representantes de 26 territórios: os 20 qualificados nas semifinais, os denominados ‘Cinco Grandes’ (França, Alemanha, Itália, Espanha e Reino Unido) e o país anfitrião (Ucrânia). A primeira semifinal e a final (dia 13 de maio) serão emitidas em direto, a partir das 20:00, e a segunda semifinal em diferido, pelas 22:00, na RTP.
Recorde a entrevista do SAPO24 ao Salvador Sobral.
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