Comparado a Ícaro, personagem da mitologia grega que queimou as asas ao tentar voar junto ao sol acabando por cair no mar Egeu, o piloto do helicóptero "Allouette" conta o susto que apanhou quando a multidão em fúria se pendurou no aparelho, que ficou "cheio de mossas causadas pelos paus e pedras que lhe tinham atirado".

"Ninguém protegeu o presidente da Assembleia, ninguém me protegeu a mim, ninguém tirou a carga e o pipo, foi tudo para o chão. Aterrei em Monsanto, saí do helicóptero e ia matando os que me tinham dito que a segurança estava garantida", relata o antigo piloto no livro da jornalista, que integrou as redações da RTP, SIC e Visão, entre outras, e recebeu vários prémios, entre os quais da UNESCO.

Luís Araújo diz que só quando foi dormir é que nesse dia é que percebeu o que tinha passado. "Quando me deitei à noite é que parei e pensei: Que grande cagaço! Iam-me matando ali, depois de andar na guerra!"

Quem o ía matando foram os manifestantes, cerca de 100 mil, maioritariamente trabalhadores da construção civil em luta pela assinatura de um contrato coletivo de trabalho, que cercaram o Palácio de S. Bento entre os dias 12 e 13 de novembro, em pleno PREC (Processo Revolucionário em Curso), onde decorriam os trabalhos da então Assembleia Constituinte.

Os manifestantes impediram deputados e funcionários de sair durante 36 horas, tendo também a residência oficial do primeiro-ministro, contígua ao Palácio de São Bento, sido controlada, com o então chefe do Governo, Pinheiro de Azevedo, sequestrado. A sessão da Constituinte só seria retomado no dia 18 de novembro desse ano.

Isabel Nery indica que nos muitos anos que se seguiram a este episódio de "Ícaro", o nome de código que utilizou na operação, Luís Araújo recebeu "inúmeras condecorações", mais de uma dezena de "Medalhas de Ouro e de Prata" por serviços prestados, mas o próprio desvaloriza a maioria dessas distinções.

"Não quero ser nenhum herói... só três ou quatro medalhas é que valem, as outras são por vinhos e petiscos", assume, apesar de manifestar orgulho numa das condecorações, "a Cruz de Guerra por salvar um camarada, que levou tiros" e Luís Araújo ficou para o socorrer.

Isabel Nery remata o livro com o risco para o país que poderia ter representado a missão de "Ícaro". "Arriscada. Inopinada. Incongruente".

"A missão, que nem resgata ninguém, nem mata a fome aos reféns, podia ter precipitado o país para a guerra civil. Podia ter sido a tragédia. Como todo o ano de 1975. Especialmente novembro de 1975", escreve a jornalista, concluindo: "Podia, mas não foi. Graças à perspicácia do seu piloto. Herói de um país que se libertou do jugo ditatorial pela mão dos militares, mas que, por temor ou ingratidão, os desfocou na fotografia da História".